domingo, 6 de dezembro de 2009

A menina do poema

Eu mal conheci Isadora, mas fazer o quê, se Manuel Bandeira lhe deu um poema ao nascer? Foi meu amigo Ernesto, primo dela, quem me contou. Não acreditei. Para provar, ele trouxe um livro da casa de seu tio Ely, um médico importante da cidade, e me apontou direitinho onde ficava o texto. Tinha cara de verdade. Lá nas últimas páginas da edição das Obras completas do Manuel Bandeira. Quando soube da história e li o poema, devia ter 11 anos. Isadora ia pelos 6. Eu não passava de um quase, e aquela menina gorducha espevitada já tinha um poema só seu, e nem sabia ler.
Em “Isadora”, o poeta graceja com a recém-nascida pela menção a Isadora Duncan, a célebre dançarina da Belle Époque que inspirou os pais da menina a batizá-la asim. Nome que sugeria em português um anagrana para as palavras “dançarina” e “dançar”. Em redondilha menor, dizia isto: “Pois que és Isadora,/ Dança, dança, dança/ Não direi agora/ Que ainda és criança/ A idade da trança,/ Dança, dança, dança/ Dança até cansares/ Dança, dança, dança/ Como na Ásia dançam/ As moças de Java./ Pois que és Isadora/ Dança como outrora,/ Como linda outrora/ Dançava, dançava/ Isadora Duncan.” Em seguida o poeta se foi, Ernesto me disse; morreu ainda matutando a elegia. Talvez a derradeira entre tantas que dedicou a meninas como Rosalina, Leda Letícia, Joanita, Isá. A folha manuscrita da poesia chegou às mãos do pai de Isadora feito um atestado de além-óbito.
Eu nem quis saber de Isadora, mas tudo concorreu pelo avesso. Eis-me adolescente, tomado por ela, pelo ritmo que Bandeira imprimia ao nome e um corpo futuro de bailarina que eu imaginava numa volúpia depois do amanhã. O poema era uma cartinha para o instante em que Isadora pudesse compreender tudo. E então, açodada pela melopeia dos versos, escolheria dançar como dançasse a Duncan, ficaria famosa. E contaria a um repórter de revista (eu) que tudo vinha daqueles 16 versos, que ela toda só tinha existido para saltar do poema ao palco. Previ tudo, mas me esqueci. Ainda bem, porque não se cumpriu, como quase todas as profecias - salvo a do repórter.
Anos depois meu irmão namorou Giselle, irmã mais nova de Isadora. As três filhas do doutor Ely (a terceira era Fernanda) ganharam poemas de presente de Bandeira, que era amigo do médico gaúcho, oftalmologista que muitas vezes, quando ia ao Rio, fornecia receitas ao poeta. Dos três poemas que Bandeira lhe deu, só o de Isadora consagrou-se no cânone do escritor. De sorte que cheguei mais perto do poema famoso, pois quase virei concunhado da musa... Aos 17 anos ela estava mais magra e bonita. Mal e mal falamos, se é que falamos. Eu a via só de longe, esperando ainda que o poema ganhasse músculo. Mas nada. Isadora cursou Letras, fez plástica no nariz, casou-se e teve uma filha.
Não me lembrava mais dela até me contarem de sua morte, em uma mesa de cirurgia de lipoaspiração, aos 35 anos. O poema “Isadora” sai agora de novo em livro. Só ele evoca, sem quase ninguém saber, a linda outrora que jamais dançou.

sábado, 28 de novembro de 2009

O mágico do Mosteiro

Não costumo escrever quando estou tomado de emoção. Em geral, o que faço nessas condições sai ruim. Tenho a necessidade de medir, de meditar sobre o fato que vivenciei. Ficar à distância de mim mesmo sempre foi um método preventivo eficaz. Mas agora vou me dar ao luxo de me comover, e suportar as conseqüências do ato.


No sábado, fomos as minhas filhas, minha mulher e eu, passear no centro da cidade. Visitamos casas de instrumentos musicais e de chapéus perto da rua Casper Libero. Atravessamos o viaduto Santa Ifigênia, imaginando o que os suicidas pioneiros não pensaram quando se lançaram lá de cima. Ao chegar ao mosteiro de São Bento, topamos com um homem de cerca de 40 anos, gordo, barbado, vestido festivamente e com um leve sorriso a fazer gestos teatrais; “Venham ver a mágica! Venham ver a mágica!, convidava. “Cheguem aqui, por favor!” Ele mostrou os truques de sempre: o lenço vermelho que desaparece, a adivinhação do baralho e a caneta que se desmaterializa. O mágico, na verdade, parecia interessado em vender o segredo dos truques. Um mágico que mendigava uns trocados para contar os segredos, não aquele astro que cobra entrada para o espetáculo. O mágico sorria para atrair uma freguesia improvável, que nesta altura do século teria curiosidade infantil de conhecer truques tantas vezes repisados e desvelados. Talvez um suicida em potencial do viaduto, que tenha se valido do último recurso de que dispunha para achar um sentido na vida.

Eu abomino que me contem segredos de mágica, e lhe virei o rosto (agora me arrependo). Minhas filhas ficaram indignadas. Míriam, tomada de compaixão, comprou duas mágicas, duas por cinco reais.. Um sujeito magro e alto que nos olhava de longe, com aspecto desmazelado, veio para perto das meninas e as levou de lado para lhes explicar o segredo. Eu fiquei longe, não olhando mais para o artista patético que continuava a gesticular e falar, para atrair outras crianças, ou outros passantes comovidos. Mantive distância de uma emoção que agora se manifesta incontrolável. Estou com lágrimas nos olhos, porque penso no mágico e seu assistente, dois pobres homens, lutando para sobreviver por um método completamente fora de moda e ineficaz a nossos olhos sovados no cinismo e na indiferença. Eu não quis me emocionar com isso, e agora pago me emocionando em dobro. Nem todos os suicidas do viaduto juntos me provocariam esse sentimento.

Agora me ocorre uma hipótese. Talvez essa dupla de cidadãos de rua, o mágico e seu assistente, atuem não para vender segredos de polichinelo, mas estejam lá para provocar justamente a emoção que me causaram. Feios, sujos, desvalidos e comoventes. Não disse? O texto resultou piegas... Pouco importa: a vida nos surpreende com os truques mais antigos.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Capitu sim ou não?

É a carioca mais falada em São Paulo. Não passa um dia sem que eu ouça o nome de Capitu. A moça alta, de rosto quadrado, nariz afilado, cabelos escuros e olhos grandes, claros e arrevezados parece viva, e não feita de letras. Ela se estabeleceu de tal modo na imaginação das pessoas, que chego a pensar que a personagem está ofuscando o seu criador, Machado de Assis. Agora a intrigante personagem dá nome a uma minissérie de televisão. Era o que faltava para virar celebridade.
Assim como o Sherlock Holmes enterrou seu criador, Conan Doyle, Capitu devora Machado - e no ano de celebração do centenário de sua morte. Capitolina pulsa e fascina. E Machado? Apesar de venerado, sua imagem pública não passa de uma escultura em bronze miúda na porta do prédio da Academia Brasileira de Letras. Agora ele a estátua é lembrada porque deu à luz a femme fatale brasileira.
Capitu surge no romance Dom Casmurro, publicado no fim de 1899. Quando eu tinha uns 20 anos, muito tempo atrás, achei um exemplar da segunda edição do livro. A Tipografia Garnier Irmãos imprimiu em Paris uma segunda tiragem em abril de 1900. Certamente Machado aprovou o volume – quem sabe tenha folheado este aqui... Talvez isso não signifique nada, mas me sinto privilegiado por ter conhecido Dom Casmurro nessa tiragem específica. Nas incontáveis situações que o li, sempre faço uma descoberta.E me inebrio ao folhear as páginas amarelecidas e rever as palavras em velha ortografia. Assim, Capitu é “Capitú”, com acento no final, o que faz com que pareça um nome ransgressivo, até ortograficamente. Porque melhor que ler Dom Casmurro, é deslê-lo. É voluptuoso perseguir os rastros do enredo a contrapelo, como um legista das artes.
Reler é sempre um desler. Dom Casmurro prova que a obra de arte muda com o tempo – e com os leitores. Em 110 anos, o livro foi submetido a tantos leitores, leituras e versões. O interesse vem de uma dúvida vulgar: teria Capitu traído Bentinho com o melhor amigo dele, Escobar, ou é uma vítima, a Desdêmona do Otelo Brasileiro?
É a conversa de bar mais antiga do mundo. Aposto que ela o enganou – se não por atos, pelo menos em palavras. No velório de Escobar, Bentinho nota que Capitu traga o cadáver com o olhar. São os “olhos de ressaca” que engolfam o amante, morto por afogamento. Os olhos carregam-no de volta ao mar, para espanto do narrador inseguro. Treme de pavor do desejo dela. Naquele instante, como em outros, o ciúme denso de Bentinho lança Capitu e Escobar ao adultério. O enredo é dele, afinal...

domingo, 22 de novembro de 2009

Natal apressadinho

Natal apressadinho



Para um andarilho compulsivo, nada é melhor que o Natal. Costuma ser um tal de decorar casas, lojas e templos, um tal de querer surpreender quem passa pela rua, que eu tenho vontade de ter crianças de novo só para levá-las a passear, e ver a expressão de espanto no rosto delas, iluminada pelo pisca-pisca de milhões de lâmpadas colorididas.
Mas neste ano aconteceu algo paradoxal. O desaquecimento econômico e financeiro global deu mais brilho à cidade. Os pinheiros de Natal e as luzes surgiram muito antes do tempo, ainda em outubro. .As lojas já estão superdecoradas, com anões e alces de Walt Disney e as nevascas falsas, ao som de “Jingle Bells”. Diante de um shopping center, um Papai Noel autômato gigantesco vira a cabeça de um lado para outro para atrair visitantes. Do rádio à internet, passando pela televisão, a festa já se instalou.
O motivo é tosco. A recessão faz com que os comericantes venham com muita sede ao pote. Eles que esperavam um natal como o do ano passado agora estão com medo de ver suas mercadorias encalharem. É o frenesi da oferta, embalada em maus presságios de demanda. Algo adequado à ocasião, não é mesmo?
Enquanto isso, a “noite feliz” de verdade tem sofrido abalos em várias frentes. Anos atrás, os padres deram início à decadência quando anteciparam o horário da Missa do Galo. Por temor de desagradar aos fiéis, a missa passou da meia-noite para as 7 da noite. Os moradores de um bairro famoso na Zona Norte por suas casas decoradas estão desistindo do Natal por temer a invasão noturna dos turistas – e a depredação do patrimônio. E se aparecer um Papai Noel na sua frente, tome cuidado. Há uma gangue fantasiada do bom velhinho pronta para assaltar você.
Talvez eu esteja sendo melodramático. Um caminhante da minha laia, que tudo fuça com curiosidade mórbida, tende a exagerar nos sentimentos. Devo estar triste porque não há mais ninguém lá em casa que acredite em Papai Noel. Ando por aí e me sento no meio-fio da calçada para observar quem sabe aquilo que quero ver. Deliro. E assim dou vazão ao meu pessimismo incontinente. O leitor me desculpe, mas nâo consigo evitar esta azia da alma.
O pior de uma festa é antecipá-la sem que tenhamos tempo de esperar por ela.. Pelo andar do assédio, quando o Natal propriamente dito chegar, não terá sobrado nada, nem compras e nem esperança. O Natal virou uma festa pela qual você não espera, pois ela corre atrás de você. Que medo!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

São João... sem quentão

O governador baixou mais uma lei: fica proibida a venda de quentão e vinho quente em quermesses nas escolas. Porque, segundo o dignitário, vinho quente e quentão são bebidas alcoólicas – e, portanto, inadequadas ao consumo de menores. Trata-se de mais uma medida moralizadora de alta eficácia com que o governo nos presenteia. Depois do saquinho de cocô de cachorro e das leis seca e antifumo, nada mais oportuno que proibir que nossas crianças bebam álcool em pátios de escola, e os adultos também.
É uma atitude histórica. Desde a Idade Média, em Portugal, onde a bandalheira começou, os pequenos bebiam vinho quente, enquanto dançavam em torno da fogueira para celebrar São João. Com a descoberta do Brasil, o gentio introduziu a maldita da cachaça, que, associada a especiarias do Oriente – cravo, canela, açúcar –, deu origem ao insidioso quentão. Quantas gerações não foram conspurcadas e precocemente extintas por conta da beberagem que moveu tantas quadrilhas idiotas do folclore luso-brasileiro!?
Outras gestões, diga-se em louvor, rechaçaram o balão, que tantos danos causaram ao Brasil e ao mundo. Hoje quem o cultua merece a cadeia. Agora criminaliza-se o folclore, que não deixa de ser o pior inimigo da saúde, do progresso e das inovações sociais.
Se nós, brasileiros, desejamos vencer o complexo de vira-lata, cumpre que costumes indecorosos sejam eliminados de nossos folguedos populares, se não os próprios folguedos. Em vez de quentão, ofereçamos coca-cola e o brasileiríssimo guaraná. E se elas quiserem uma bebida quente, vendamos chá de boldo para o estômago. E a farmacopeia indígena pode inspirar os operadores de quermesses... desde que evitem o cogumelo e o Santo Daime.
Após a abolição do quentão, que tal substituir a fogueira pelo forno microondas? Seria mais seguro, higiênico e pedagógico. O microondas desempenha melhor o papel de totem tecnológico. Fogueiras só produzem fuligem e perigo. Desde a era medieval, quantas moleques não pularam da quadrilha diretamente às garras do diabo ao tentar pular fogueira?
Outra sugestão diz respeito aos trajes caipiras. Para que vestir andrajos, bigodes de carvão e chapéus de palha que só rebaixam o homem do campo e seus ideais de agronegócio? O governo pode tornar ilegal esse traje ridículo. É fundamental aprovar uma lei que institua a vestimenta de cauboi nas quermesses, cuja tradição é mais elegante, e conta com muitos seguidores. Aliás, vamos chamar São João de outra coisa. Basta de crendices com santarrões. Que tal Festa do Cauboi de Junho? O veto ao quentão dá início a uma nova era iluminista, sem os riscos do fogo.

Papo de técnico

O futebol é a metáfora da vida, já ensinaram os cronistas do passado, Pois tudo o que está em jogo toca a alma humana: o desejo de vencer, a ambição, a glória e o fracasso. Por isso o futebol envolve tanto. É o espaço trágico e cômico da catarse dos sentimentos mais primitivos do torcedor. Mas ultimamente a prática futebolísitca vem perdendo o sentido de drama. Tudo se tornou mais complexo e relativo. E isso não ocorre por causa da torcida, e sim das equipes. São elas que separam o discurso da realidade em campo.

Os treinadores ensinaram os jogadores a falar como autômatos que fizeram cursos de gerenciamento corporativo, em especial os de gestão de pessoas. O pioneiro foi Vanderlei Luxemburgo. Foi ele que lançou no início dos anos 90 a neurolinguísitica aplicada à bola. A neurolinguísitca é um ramo da psicologia comportamentista, que reduz o ser humano à condição de roedor facilmente manipulável. E as teorias gerenciais que se seguiram derivam da mesma mentalidade, hoje tão comum no mundo das empresas. Não é por outro motivo que os técnicos dão palestras de autoajuda para gerentes de banco e fábricas de carro. O resultado é obviamente o mais completo autoengano.

Algumas declarações soam ridículas pelo artificialismo. É como se todos tivessem passado por uma lavagem cerebral e, pior, querem arrastar os torcedores à mesma condição. Treinadores e jogadores rezam por idênticas regras fixas do manual de inteligência emocional. Eles reconhecem a força do adversário, por pior que seja. Para o próximo jogo, admitem que têm chances iguais ou até menores de vencer, mesmo que a partida seja contra um timinho. Todos são modestos e só faltam dizer que vão festejar a derrota com a torcida adversária. E tudo foi “previsto no plano”, inclusive os fracassos mais vexaminosos. Todos estão vacinados contra multas e futuras demissões. Afinal, o adversário pode ser o próximo empregador.

Esses profissionais querem que o futebol vire a metáfora da gestão de empresas. Sem saber, planejam matar o futebol. Assistimos à ascensão dos treinadores-gestores e seus geniais subgerentes. Para triunfar, eles precisariam expulsar do campo a realidade. Os times estão cada vez mais esquizofrênicos e não sabem lidar com a sujeira dos gramados. Porque, a despeito da lógica do autoengano, o futebol continua a ser o domínio da barbárie, do palavrão, das pedradas e da violência. Não há palavras hipócritas suficientes para derrotar o acaso... e a vida.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

O segredo dos palestrantes

O que seria do mundo sem os palestrantes? Talvez um lugar melhor. Você já deve ter reparado como esta cidade virou alvo privilegiado deles. De epidemia nos anos 90, passou a endemia incurável.. E o assédio é de 7 dias por semana, 24 horas por dia. De repémte você está no emprego e o RH faz a convocação para todos assistirem a uma palestra sobre as lições do boto amazônico para a liderança. Abundam especialistas em generalidades as mais inimigináveis: esportistas falam das lições de vitória aplicadas ao trabalho; ex-filósofos montam cursos de treinamento para atendentes de telemarketing...
Todo acadêmico fracassado percebe que fazer palestra em empresa é lucrativo. Conheço vários gênios promissores na universidade que desistiram dos ideais para faturar alto. Não os condeno, porque a carreira universitária é mal-remunerada e frustrante, e não há boa instituição que escape da pasmaceira e da rede de inveja. Acaba sendo mais lucrativo discorrer superficialmente sobre assuntos no qual o acadêmico se aprimorou, mesmo que para uma audiênica de zé-manés. Estes formam o público-alvo dos palestrantes, já que a formação no Brasil é mais que deficiente..
Em terra de cego, palestrante é pensador. Os olhinhos brilham quando ele discorre sobre superação e cita neurolinguística, psicanálise ou uma proposição de Wittgenstein. O público se sente recompensado, mesmo que seja com vidrinhos de mais falso brilho intelectual. “Vou usar este aforismo na próxima reunião!”, pensa o gerente que assiste à apresentação.
As palestras são aulas-shows divertidas, até porque os especialistas usam datashow para projetar figurinhas e frases de efeito, em corpo bem grande, para todo mundo entender. Cada conferencista guarda o seu sistema de exibição. Há o piadista ou o que faz passos de funk para acordar a patuleia..Também tem o palestrante professoral, defendendo autoajuda como se fosse doutorado em Oxford.
Que reis do sofisma ele são. Usam exemplos para sustentar um argumento assertivo que em geral não se apoia na realidade. Os palestrantes vendem tudo como se fosse “o Segredo”: da força do pensamento positivo à Arte da Guerra de Sun Tzu, do Cristo à física quântica..
As pessoas já não creem em mais nada nem têm padrões éticos ou lógicos claros. O restulado é que viraram reféns do engano. Os palestrantes preenchem a lacuna da nossa ignorância. O problema é a superpopulação desses sábios de araque. Daqui a pouco serão tantos que vai ter gente bradando manual corporativo na rua, feito pregador de Bíblia.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Solidão embutida

Tenho visto nos trens e ônibus pessoas que conseguem usar o tempo para ouvir música. Antigamente era difícil topar com alguém de pé, absorto em uma música. Tudo ficou mais fácil.com a popularização dos tocadores de mp3. Agora você pode embarcar num ônibus da periferia e deparar com pelo menos cinco pessoas silenciosas, com o olhar oco, prestando atenção nas suas canções favoritas. Isso não acontecia aqui cinco anos atrás, e eu já havia notado o fenômeno do mp3 no metrô de Nova York e nos ônibus londrinos. A sensação inicial foi de estranhamento.
As tecnologias mudam os hábitos. Mesmo com todas as vantagens, os tocadores digitais criaram a mais terrível forma de isolamento urbano: ouvir música em volume alto sem que os outros notem ou se irritem. Eu me pergunto se essa mudança é positiva. A música educa e altera a sensibilidade. Mas os tocadores de mp3 estão gerando novas espécies de zumbis urbanos. As pessoas embutiram a solidão e agora dialogam menos. Ouvir música sem prestar atenção nos barulhos em torno é a forma mais triste de andar sozinho, de evitar contato.
Para demonstrar minha tese, fiz um teste e percorri o mesmo trecho – cerca de 200 metros, atravessando o Terminal Parque Dom Pedro II - várias vezes, nos horários de maior movimento. Em cada uma, toquei um estilo de música. Escutei o som dançante de Rihanna e tudo me pareceu eufórico, mesmo quando notei que um sujeito me seguia. Curti as canções melosas de James Blunt e quase dormi enquanto a multidão me dava encontrões. Ouvi o Acústico MTV de Paulinho da Viola e me deu pena da miséria. Prestei atenção na monumental Sinfonia nº 6 de Anton Bruckner, e as pessoas pegando ônibus me lembraram a mecanização do filme Metrópolis, de Fritz Lang, mas elas estavam marchando em protesto..
Nessas quatro andadas no mesmo trecho, sob condições parecidas, o passeio ganhou ares de variedade. Foram pelo menos quatro significados para o mesmo evento: festa, meditação, crítica social e saga épica. Isso quer dizer que a solidão sonora injetou no meu cérebro várias realidades virtuais a partir do mesmo ambiente real. O mp3 player separou o mundo concreto do universo dos signos, aquilo que eu via do que eu imaginava. E juntou elementos distintos de forma inaudita. Isolado em minhas preferências no meio da multidão, eu me senti delirando, num curto-circuito existencial. Resolvi deixar o aparelhinho em casa. Vou voltar aos de barulhos do mundo.

sábado, 24 de outubro de 2009

Crônica: modo de operar

Gente me para na guia da calçada só para comentar o último texto que fiz publicar neste jornal. Imagino que isso aconteça com outros cronistas deste e de outros periódicos. É uma experiência estimulante e nova, pelo menos para mim, que nunca antes havia tentado escrever sobre a cidade. Fazer crônica envolve atos de compreensão (e ocultação) mútua entre aquele que escreve e aquele que lê.

Devo dizer que há muito tempo sou cronista, mas de espetáculos, discos, filmes e livros. A esse tipo de cronista cultural denomina-se crítico. O crítico é alvo de sentimentos extremos. Ou é detestado ou amado – e o pior que lhe pode acontecer está em ser ignorado pelo leitor. A indiferença lhe é mortal. O crítico faz um esforço para aparecer, à custa de resenhas de obras de arte alheias.

A exemplo dos críticos, os cronistas também mendigam atenção. Acredito que os cronistas da cidade surgiram dos resenhistas. Em um belo dia, talvez em Paris ou Londres no século XIX, o assunto artístico faltou, a ópera deixou de ser apresentada. Como conseqüência, o jornalista encarregado de cobrir a vida cultural da cidade – era chamado de folhetinista – ficou sem outra opção que ir para fora ver no que dava. A crônica nasceu da ausência do que dizer e que fazer. O romance de folhetim também, com a vantagem de não precisar recorrer ao mundo real.

Assim, o cronista pode ser definidio como uma espécie de crítico sem obra de arte, de romancista a suaves prestações. Ou então, um crítico que atribui à vida cotidiana a condição de obra artística. Para arrancar do chão uma observação ou um olhar que interesse ao leitor, ele precisa suar a camiseta. Deve possuir habilidade literária e ficar atento ao mundo que o rodeia, ser sensível e dotado de presença de espírito.

Não é fichinha reunir tantos pré-requisitos em uma cidade que mais isola que reúne, dispersa mais que prende a atenção. Num tal ambiente, o desafio do cronista parece invencível. Talvez seja mais suave falar de uma cidade cercada de história e paisagens bonitas por todos os lados. Mas o esforço de revelar os detalhes ocultos em um lugar turbulento como este fornece ao cronista uma razão de existir e conversar com o leitor. A crônica não passa de uma arte menor, rezam os especialistas. Eu não a vejo assim. Para mim, ela é o sudoku poético das ruas: um jogo de decifração.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Capital dos pombais

O destino dos bairros de São Paulo é verticalizar. Tudo tende a ser substituído por um imenso pombal branco e cinza. Pombais é como a gente chama pejorativamente essas torres que andam brotando por aí, nos lugares mais absurdos. Surgem no meio de uma favela, ou no coração de uma vila tradicional. Os pombais estão varrendo SP de Leste a Oeste.
Conto o que vejo. No início do ano, fui convidado a participar de uma reunião da comunidade da capela de São Miguel Arcanjo, no Belenzinho. Na pauta, o futuro do bairro. Isso porque a Zona Leste já não é a mesma. As humildes casas térreas estão indo embora. No lugar, chegam os prédios – e, com eles, novos moradores. Como abrigar tanta gente numa capelinha fundada por uma família na década de 1930? O dilema daquelas pessoas é escolher entre se isolar num gueto ou converter a capela numa igreja. Gueto está fora de questão, avisou o padre. Eu me meti na história e retruquei: será que a ampliação não significa o fim da paróquia e a substituição por outra realidade?
A História marcha apesar dos nossos desejos. Viver no século XXI tira o fôlego. Alguém se lembra de Moema vinte anos atrás? O bairro ainda lembrava uma cidade do interior, com sobrados, praças, lojas e prédios médios. Outro dia tentei passear por lá e me espantei com edifícios residenciais de 20 e 30 andares. É impossível reconhecer alguns trechos antes familiares. Os prédios que pareciam grandes hoje são anões perto dos condomínios monstruosos. E o meu hábito de andar pelo meio-fio virou esporte radical por lá...
E assim a paisagem urbana vai mudando. Fui atrás de horizontes na Praça do Por-do-Sol, em Pinheiros. Encontrei só prédios surgindo ao longe, como bombas de efeito retardado. No início parecem inofensivos, mas logo o trânsito adensa, a aparência enfeia, sol desaparece, o vento sopra e apaga a esperança de uma cidade civilizada.
O emblema do futuro de SP reside no passado. Mora na avenida do Estado, no Centro. Trata-se do edifício São Vito. Construído em 1959, ele foi o precursor dos torreões que enxameiam o espaço urbano. Com 27 andares e 3 mil moradores, o prédio virou cortiço vertical. Agora a Prefeitura estuda sua demolição e a reurbanização da área.Aí eu me lembro daquele verso de canção: se for pra desfazer, porque é que fez? Se é para um dia a gente ter de recuperar a paisagem perdida, para que fazer o que será desfeito? Já sabemos o final do enredo dos pombais nascentes. Eles vão destruir a arquitetura e o resto de verde e poesia da cidade. Basta contemplar o São Vito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Choque de zonas

Em qualquer cidade, a divisão do território do município em zonas deriva de uma decisão do plano diretor. Mas em São Paulo essas diferenças formais se traduzem em ilusões de identidade. A vastidão da mancha urbana faz com que os habitantes de cada região tentem se encaixar em uma série de características e valores comuns. E assim compartilham culturas distintas entre si. Não se trata de um apartheid ou um zoneamento de classes, embora a origem da Zona Leste seja proletária e a Zona Sul abrigue as mansões e prédios mais ricos. Mas hoje em dia o Tatuapé da ZL é quase um bairro nobre, e do ladinho do Morumbi espalham-se favelas gigantescas. Como as camadas sociais se misturam, resta aos habitantes de cada área se agarrar a uma série de traços distintivos, como modo de falar, comportar-se e até enxergar o mundo.
Quantas vezes não me disseram que o pessoal da Zona Leste é mais simpático e atencioso que os cruéis esnobes da Sul, ou que aquela menina possui um sotaque meio caipira da Oeste? Na periferia, os membros ricos e pobres das cooperativas culturais recebem gente de outros lugares como extracomunitários.
Um amigo meu chamado Tonico costuma jurar que a Zona Norte é a origem de todos os males que infestam o município, de sinistros a indivíduos inescrupulosos, passando pelas frentes frias e tempestades. E o mais curioso é que ele consegue provar que todos os mosquitos e dias nublados nascem e se criam no Tremembé, e de lá partem com o fito de aterrorizar a cidade inteira. No final de demonstração, Tonico dispara, com seu acento de paulistano tradicional, com o “erre” marcado: “Você pode notar que o que digo é verdade. De onde vieram os piores casos criminais ultimamente? Batata: da Zona Norte!”
Talvez seja paranóia ou bairrismo. Porque Tonico é natural da região oposta, a Sul.... e nunca pôs os pés em Santana. Toda vez que cruza a fronteira dos Jardins, diz que se sente um forasteiro na própria terra natal. Segundo ele, as falas, hábitos, as modas, as filosofias, tudo muda... Tanto que ele decidiu sofrer por amor no próprio bairro, para não experimentar choque cultural. Quando quer ver coisa diferente, vai à ZL como se fizesse um safári no Zimbábue. Nas profundezas de Vila Unhokuné e adjacências, Tonico age como um orientalista que se deparasse com exotismo em cada esquina. “Na ZL, me chamam de americano e na ZN, sou africano!”, orgulha-se.
Eu, que não nasci aqui, acho insignificantes todas as supostas diferenças culturais entre quadrantes. Mas quem sabe não esteja notando o quanto se alterou o meu jeito de ser e falar nestas minhas três décadas de Oeste...

Datas extremas

Durante mais de dois dois anos, segui pelo meio-fio, persegui o que não se via ou não se queria ver, aqui da fronteira, do hífen que separa ou une a rua e a calçada. Anotei tudo à mão, no meu caderno de bolso, enquanto ia andando com o olhar atento, ou sonolento, ou desencantado.
Flagrei favelas destruídas para dar lugar a torres gigantes; políticas públicas sem pé nem cabeça; personagens e amigos que surgiram ou morreram; experiências tragicômicas de chuvas, festivais, bares e tropeços, dramas em filmes e em jogos de futebol; retratos de papagaios e cães. Conversei com o Sr. Trema sobre a nova ortografia; falei do paulistanês, dos andarilhos, dos catadores de papel, dos mágicos, dos mendigos que povoam as ruas. Refleti sobre a crônica e a vida do escritor nas redações. Recordei uma São Paulo byroniana e romãntica que não vivi, mas conheci por tabela. Fiz uma elegia ao poeta que se foi, contei a história de outro que se escondeu e fingiu morrer. Escrevi um testo que um amigo saudoso gostaria de ter feito. Narrei um encontro com o diabo e com os anjos. E contei um pouco de meus passos, hesitações e implicâncias.
Está é a crônica de número 89. Cheguei a escrever umas 20 outras, que não tive coragem de fazer pubicar, por serem talvez demasiado íntimas, ou simplesmente irrelevantes. Acho que posso até lançar um livro com as que publiquei e as que não ousei revelar. Elas formam um volume, uma obra que desde o início se impôs regras, como a de não mentir, seguir o balanço da inspiração e se resignar a um espaço de 2.500 caracteres. Outra regra dizia respeito ao meu incurável fatalismo: dancei pelo meio-fio entre o que ganhei e o que tinha de perder, como prometi no meu texto inaugural. Eu sabia que um dia os deuses me convidariam à retirada, que haveria datas extremas: 2007-2009. É como na vida, chega o instante de sair de cena. A gente sabe que vai se comover.
Meio-Fio foi um espaço raro de liberdade. Jamais fui censurado ou barrado em minhas ideias, fossem as mais estapafúrdias.. Foi um momento único em meus 26 anos de carreira. Pela primeira vez também posso me despedir. Jornalistas costumam sumir das páginas dos veículos sem informar destino – e deixam o leitor desnorteado. Agora tenho o privilégio de dizer até mais. Para o leitor que quiser “seguir” (termo tão em moda) os rastros deste escrevedor, vai achá-los na internet, em meu blog, no site e nas páginas da revista Época. E também vai me encontrar nas minhas andanças entre calçadas e ruas. As páginas e o tempo podem acabar, mas o cronista é teimoso, e segue a anotar o que vê, sente e pensa...

Avatares no Jardim da Luz

Uma tarde dessas eu passeava pelo Jardim da Luz quando percebi um casal jovem andando de mãos dadas a alguns metros diante de mim, perto do lago. Como sou um incorrigível bisbilhoteiro, prestei atenção no que falavam. Eles trocavam beijos e carinhos e pareciam no início do namoro. A certa altura, escutei ele sussurrar no ouvido da mocinha: "Mal posso esperar para ver como você é online..."
Em que mundo estou vivendo? - pensei com os meus cadarços desamarrados. Quer dizer que o moleque está com a namorada pertinho, mas ele só pensa na aparência dela na internet - no orkut, no messenger ou mesmo no Second Life!?
Enfiei o boné até o os olhos, ultrapassei os casal e segui caminho, pensando no caso. Nestes novos tempos de desejos tecnológicos, o mundo virtual parece ter assumido o aspecto de realidade mais real que a real. Lembrei que ele disse: “ver como você é” e não “como você aparenta”. A vida online é reveladora. Ela desmascara a pessoa offline. Melhor dizendo: a existência via computadores em rede se encontra em um nível superior ao cotidiano de carne e osso. Ela explica, abarca e se torna a verdadeira essência das coisas e dos seres. É como se abolisse a realidade, e os objetos concretos não passassem de mera aparência de um universo acima deles.
Imagino que o casal tenha marcado encontro na Luz do Second Life – e que lá deram um jeito de fazer amor dentro da gruta virtual. Cada um num canto da cidade de aparência (para mim a real), clicando ou apertando obsessivamente o “enter” do computador, para assim atingirem o superorgasmo do casal na tela, bem mais completo que o deste mundo físico de tão poucas variantes e de perfumes, identidades e rostos previsíveis. Online, ligados, os dois assumem seus avatares: ele é um guerreiro ninja; ela, uma princesa com os contornos sensuais de Lara Croft. O prazer da gruta virtual é essencial, ao passo que o prazer possível no mundo da presença física não passa de uma cópia imperfeita. Eis a moça brilhando no monitor, despida de toda as condicionantes humanas. Ei-la online, deslumbrande em sua nudez de fóton, pronta para se entregar ao amado do modo mais profundo e conseqüente, via internet.
Ainda não andei pela SP do Second Life (prometo que entro lá em breve), mas esse ultra-universo me parece uma versão inovadora da caverna de Platão. O filósofo preconizava a superioridade do plano da essência sobre o da aparência. E, nesse ponto, o amor do rapaz na Luz soa platônico: realiza-se apenas quando ele se eleva à essência do que ele imagina ser: o avatar. E seu objeto de desejo, a moça, só pode ganhar vida no ambiente digital.
Esse mundinho novo sem porteira dos avatares não serve para mim, não. Ainda prefiro a imperfeição, o perfume e a sedução da natureza.

Quando Soriano abraçou Waldick

Esta história se passou no tempo em que o diretor deste jornal, Ricardo Anderaos, ainda era chefe de reportagem da Ilustrada. Deu-se no final de 1990, em Belém do Pará. Anderaos enviou este repórter ao Pará para uma missão curiosa: descobrir o local de origem da lambada. O ritmo fazia barulho, e só se falava nos pares sensuass ao som de Beto Barbosa (lembram?).
A investigação foi fácil. Na primeira noite eu já descobria que o ritmo vinha do Caribe. A dança, influenciada pelo lundum marajoara, era praticada nos bregas de Belém - as casas noturnas frequentadas por “gente bem” e por prostitutas. Assim, “brega” virou sinônimo de música tocada nos “bregas”. Era a canção popular romântica antes depreciada como “cafona”. O berço da lambada era o borde.l.
Casimiro, o assessor da gravadora que gravava lambada e brega, tratou de me ciceronear. Em poucas horas a pesquisa se esgotou e eu já não tinha o que fazer. Tinha de ir embora. “Não, de jeito nenhum”, disse. “Temos um pagode no sábado!” Era a festa de aniversário de um empresário local, cujo apelido era Soriano Waldick. “Ele se chama Antônio, acho”, explicou Casimiro. “Mas é o fã número 1 do Waldick Soriano – e, com o tempo, virou sósia e homônimo do Waldick.” Melhor de tudo: Soriano Waldick havia convidado Waldick Soriano para a ocasião, a se realizar numa fazenda nos arredores da cidade. “Você vai adorar a maniçoba que o Soriano vai servir na beira do igarapé!”
Claro que alterei a passagem. No sábado, lá estava eu no carro, batendo papo com o deus do brega: figura incrível, de óculos enormes e chapéu panamá. Na meia hora que durou a viagem até a fazenda, ele me contou sua vida, a infância dura na Bahia e as conquistas amorosas no Programa Sílvio Santos. E o melhor estava por vir.
Ao chegamos à sede da fazenda, deparamos com um homem sorridente e de braços abertos. Tratava-se de uma versão miniaturizada de Waldick, inclusive com o chapéu e os óculos idênticos aos do cantor. Fã e ídolo se abraçaram como irmãos, pois o Waldick já conhecia Soriano.
A tarde foi deliciosa. Não importava o calor tremendo ou as moscas que vinham beliscar a maniçoba. Naquele tempo não havia videokê. No fim da comilança, Soriano levou Waldick para um coreto à beira do rio – e ali, acompanhado de um regional, ele soltou a voz de barítono e desfilou seus sucessos: “Eu não sou cachorro não” , “Tu és meu mundo”, “Tortura de amor”. Que bela voz – e que sinceridade na interpretação! Chamado ao coreto, Soriano Waldick chorou... Não sei se está vivo. Mas tenho a impressão que ele e o ídolo formaram um dueto à beira de um igarapé no céu.

O fascismo antifumo

ar desta cidade está cada vez mais irrespirável. É poluição e emanações pestilenciais vindas de todo os cantos. Daqui a pouco só será possível fazer minhas caminhadas com máscara de oxigênio. Agora o governador baixou a Lei Antifumo, que cria uma brigada de caça-fumantes em locais públicos fechados. Se ele pensava em acabar com a poluição ao eliminar fumaça de tabaco, enganou-se. A fumacinha dos cigarros não passa de um suspiro no cataclisma de poluição. Se o tabaco mata, há fumaças piores assassinando nosso cotidiano. A lei antifumo só presta para criar uma cortina de fumaça de celebridade para quem a baixou.
Com ou sem ela, o Apocalipse respiratório está entre nós. A pouca área verde disponível de São Paulo está sendo devastada até o último arbusto, o último pernilongo, por causa da abertura da área final do Rodoanel. Animais silvestres são mortos, casas são derrubadas e torres erguidas. Criam-se nuvens de poeira por todos os quarteirões.
O City Lapa, onde passeio, foi tombado como patrimônio, mas já é tarde. O que restou do bairro arborizado são algumas ruas cercadas de monstruosos prédios de mais de 30 andares, em empreendimentos lunáticos que vendem a área como playground e cinzeiro dos edifícios. Os novos habitantes desses prédios infestam as praças com seus cigarros, crianças, skatistas e delinquentes. As árvores “tombadas” morrem de asfixia.
Voltando ao tabaco, encontro-me no espaço ao ar livre do Kinoplex Itaim. Sinto fumantes por todo lado, esbaforidos e angustiados, com pavor de sofrer perseguições e olhares reprovadores. Não acho fumantes a melhor companhia, mas não os culpo pelo vício, nem penso que mereçam ser perseguidos como os judeus do gueto de Varsóvia. A lei antifumo tem o mesmo efeito da lei do saquinho de excrementos caninos e da lei seca: é nula. Baseada na autoridade da Medicina, ela exclui, estigmatiza e suprime a liberdade do cidadão. Tabaco agora tem status de drogra pesada. Daqui a pouco será vedado à população soltar gases – por conta do metano, altamente tóxico. Já vi o símbolo: uma bunda atravessada na diagonal por uma tarja negra. Vêm aí os caça-puns.
O governo vai pôr em ação uma divisão especial de fiscais para perseguir fumantes, multá-los e até detê-los, caso necessário. Ainda bem que este não é um país “sério” como dizia o general De Gaulle. Não há fiscal suficiente para marcação homem a homem, como agia a tropa de choque de Mussolini. O fascismo à brasileira provoca gargalhadas. No final, os cães vão continuar a sujar, os bebuns a dirigir e os fumantes a brincar de chaminés... nem que seja molhando a mão das “autoridades”.

Evitemos uns aos outros...

Uma hábito paulistano é praticar uma versão light do pânico social. Trata-se do pânico do outro, a mania que muitas pessoas têm de fazer tudo para evitar se encontrar por acaso com um conhecido, especialmente se faz muito tempo.
Percebi isso no sábado, quando estava numa locadora de DVD (hábito tradicional que tende a desaparecer) e divisei minha velha colega de redação no caixa, pronta para sair. Nossa, fazia uns 15 anos que não via Alice (nome fictício), e, como era uma boa colega, senti vontade de ir lhe dar um abraço e perguntar como estava. Quando fiz menção disso, ela me enxergou com o canto do olhar e deu um jeito de escapar, saindo rapidamente do recinto. Não me lembro de ter tido qualquer problema com ela. Inimigos costumam não se olhar, quando não brigar no instante em que se veem. Um dia eu perdi uma amiga quando ela me ligou, fiquei de retonar dali a 15 minutos – e só me lembrei do telefonema seis meses depois! Adivinhe se hoje eu tenho cara de falar com ela hoje?
Não era o caso de Alice. Nunca discutimos nem, a simpatia era mútua, sempre fomos companheiros de redação. Mas ela ficou com vergonha de me encontrar. Depois desses anos todos, o que dizer e como se comportar? A gente muda, fica mais velha, pode até ficar irreconhecível para os outros. Rola a saia-justa da passagem do tempo.
Ora, entendo Alice. Até porque já fiz dessas. Há não muito tempo, entrei num restaurante e, ao perceber um antigo colega, recuei para não atrapalhar a refeição dele, nem a minha, com conversas tão amenas e como constrangedoras. E não que eu não quisesse encontrá-lo. Era uma questão de timidez associada à falta de assunto e à vergonha de estar diferente em relação ao tempo em que tínhamos uma convivência diária. Algo se perde quando deixamos de bater papo com as pessoas. Perde-se o contato, e a amizade leve se torna mero embaraço. .
Por que a cena se repete tanto nesta cidade? Penso que o fenômeno se deve ao isolamento das pesssoas em seu ambiente de trabalho. Infelizmente, é no trabalho que tudo acontece, de amizades a tremendos arranca-rabos. A fixação no trabaho faz com que a maioria se aliene dos outros, perca os rastros e adquira um medo ancestral de lidar com o passado, suas velhas relações e, portanto, de lidar consigo mesmo. À medida que amadurecemos, vamos perdendo os amigos pelo caminho e deixamos de manter contato, salvo por meio dos sites de relacionamentos, que pasteurizaram a sensação de perda e venceram o bloqueio dos reencontros. Quem sabe num deles eu reencontre Alice e tente conversar. Em carne e osso é mais difícil.

Bafômetro e liberdade

Fui a uma cantina do Bexiga no sábado à noite e fiquei pela primeira vez em dúvida sobre mudar um velho hábito: escolher um vinho para acompanhar a pizza. Ora, esse não era e nem deveria ser um tema para discussões metafísicas ou dilemas morais. Mas a nova Lei Seca me fez pensar um pouco. Só um pouco.
Meu problema não era culpa, mas a possibilidade de ser surpreendido por policiais munidos de bafômetro quando eu estivesse ao volante. E lá estava eu, praticando uma horrível transgressão, diante do olhar severo de minhas filhas. Garçom, que venha o cabernet sauvignon! E aqui faço a confissão do crime: sim, depois de duas taças de vinho e uma margherita, dirigi o carro até minha casa, arriscando o meu pescoço e o de minha família numa noite fria de fim de semana. Não, não adiantaria dizer eu não estava embriagado nem tonto. Eu seria detido!
Vou poupar meu querido leitor de uma aula sobre conduta civil e suas relações com a sobriedade à direção. Também não farei o elogio à contravenção. Não se trata disso. O fato irritante de toda a história de bafômetro no nosso pescoço está no chatérrimo clamor público em torno do assunto. Essas leis tendem a redundar em histeria coletiva - e o resultado é a perda progressiva de direitos mínimos. O cidadão que bebe e comete um acidente não teria já uma pena adequada com a legislação existente? Será que é preciso impor outro pacote de penalidades e submeter os motoristas à humilhação de um teste?
Pergunto isso porque a polícia não é lá grande modelo de conduta. Quantas vezes não vi nossos agentes da lei bebendo alegremente em padarias e bares nas tardinhas de sexta-feira... Agora aboliram a happy hour. Enfim, penso que, se a gente passasse a aplicar o bafômetro nos policiais ou nos funcionários do Detran, talvez não sobrasse ninguém para controlar o insidioso aparelhinho. Estaríamos todos vendo o sol quadrado.
E assim caminha a legislação. Os fumantes, coitados, foram banidos de todos os cantos. Chegou a vez dos bebuns. Daqui a pouco virá uma extensão da Lei Seca para os pedestres. Tenho certeza de que a arrecadação de multas vai aumentar bastante. Animada com os lucros, a polícia poderá inventar um aparelho controlar nossas boas intenções no trânsito, uma espécie de "mentirômetro" para aplicação indolor e imediata. Caso o indivíduo seja assombrado por algum pensamento ruim, ele será imediatamente recolhido ao xilindró.
Enquanto meu vaticínio não se cumpre, proponho um brinde à saúde de nossas instituições - e à nossa liberdade. Garçom, um pro secco, por favor. Depois eu peço uma carona.

O senhor Trema

Ele veio me visitar sem aviso. O senhor Trema não observa a etiqueta atual. Ele vem daquele tempo em que as casas não tinham muros e não havia carros. Pela primeira vez, aquela criatura tão simpáticca me pareceu alquebrada. Seus olhos negros estavam muito tristes. Posso dizer que ele era todo feito de tristeza. Mesmo porque seu ser se resume a dois pontos negros pairando sobre as letras, sobre o mundo. Agora ele estava pairando sobre o sofá da sala, enobrecendo o móvel, assim como ele enobrecia as palavras que costumava acompanhar freqüentemente, e ainda acompanha, até janeiro do ano que vem.
“Meu fim está próximo, meu amigo”, supirou, segurando um choro. “O Lula já assinou o decreto que me extingue da língua portuguesa...”
Tentei acalmá-lo com uma xícara de chá verde. Notei que ele fingiu que gostou, mas chá verde não faz parte de seu código de gentilezas. Teria preferido o breakfast tea à inglesa, servido na chávena...
“Eu fiquei sabendo”, respondi. “Lamento muito. Sempre gostei de você. Mas não há de ser nada, você continua no finlandês, no húngaro e no alemão!”
Que afirmação desastrada, delinqüescente, o pobre senhor Trema se desfez em prantos - como ele diria. Não agüentou segurar a emoção.
Abracei-o, para abafar o choro. Desde que me entendo por alfabetizado, ele me acompanha. Sua presença é eloqüente na minha vida de escrevinhador. Quantas vezes não recorri ao snhor Trema, em crõnicas, contos, reportagens, romances, ensaios? Ele nunca foi apenas um sinal diacrítico, usado para modificar a pronúncia do “u”. Ele foi importante na existência de pessoas que já não estão entre nós. O presidente JK assinou o famoso plano qüinqüenal para o Brasil, aquele que faria um atalho de cinqüenta anos em cinco. E quando eu completar cinqüenta anos, serei obrigado a comemorar “cinquenta”. Essa possibildade de um aniversário sem a graça do trema me deixa qüinqüenérveo...
“Não me conformo”, prossseguiu meu amigo, secando as lágrimas. “Não bastaram os portugueses terem me expulsado no pós-guerra, agora todos os países lusófonos me repudiam. É uma injustiça. Enquanto isso, o “cá”, o dabliú e o ípsilon estão sendo recepcionados de volta ao abecê com honras de estadistas! Você acha que eu mereço essa humilhação?”
“Claro que não, meu amigo. Tome mais um pouco de chá, acalme-se. Eu prometo usar você para sempre, na vida privada e na pública. Mesmo que os textos que eu venha a escrever sejam corrigidos, você vai estar lá, em ausência!”
É claro que isso não serviu de consolo, mas ele esboçou um sorriso cordial, já que senhor Trema é um sinal diacrítico muito educado.
“A gente se vê por aí”, disse ele, enquanto cruzava o portão da minha casa. E me fitou com os olhos negros, numa expressão irônica. “Quando você vai voltar a estudar alemão?”

Padrinhos, cuidado!

É um absurdo. Fui convidado para ser padrinho de casamento. Aparentemente, trata-se de um compromisso dos mais singelos. O padrinho deve comprar um presente e se colocar em posição de sentido no altar. O único privilégio da função é ter um close-up do beijo do casal, além do direito ao banquete - caso haja, pois hoje o padrão é self-service e todo mundo comendo de pé com prato de plástico, antes do pagode eletrônico.
Eu pensava assim até o mês passado, quando me fizeram o convite. Descobri então um mundo novo de obrigações sociais e me tornei presa das mais variadas armadilhas. A começar pelo presente. Hoje está tudo mudado: os noivos querem os presentes mais exorbitantes. Eles “postam” no blog do casal uma lista de presentes, os mais caros do mercado. As lojas indicadas também já estão preparadas para a punhalada. São eletrodomésticos, móveis e outras engenhocas de última geração, a preços nada convidativos. E ai do padrinho se não comprar o melhor item da loja mais cara.
E isso não é tudo. O padrinho é forçado a fazer uma porção de coisas para as quais ele não está preparado. A pior é a roupa. Atualmente não basta você vestir seu melhor terno e se dirigir ao altar. Não. Em nome do sagrado sacramento, o padrinho cai numa arapuca dos diabos.
Os noivos já pensaram em tudo, até nos trajes. Eles me informaram que eu tinha de “tirar as medidas do terno” em uma loja de aluguel de roupas no Tatuapé , do outro lado da cidade! E mais: todos os padrinhos teriam de vestir o mesmo modelo de terno e gravata. O plano era coreografar no altar uma dúzia de padrinhos e suas respectivas mulheres (com longos em cores predeterminadas), fazendo o chorus line para a féerie de um casamento no Belenzinho! De jeito nenhum.
A noiva me ligou suplicando que eu não podia falhar. Engoli em seco e fui ao tal lugar. Estava lotado de padrinhos, vítimas como eu. Provei o terno horrendo – e me prometeram uma gravata acetinada, que não vi. Os noivos só não me contaram que eu teria de voltar lá para apanhar a roupa dois dias antes, pois até então seria usada por outro freguês. E não me avisaram que tudo isso custaria a bagatela de 150 reais, preço de um terno novinho em folha e comprado.
Caí na indústria do casamento. Vendo minha expressão, o alfaiate tratou de me consolar. Além de gastar os tubos, pagar o mico de me vestir como num coro de musical, tive de escutar esta: “O senhor está praticando uma boa ação, pois o noivo ganha o aluguel do fraque de brinde!” Hoje, o padrinho virou o melhor dos presentes de casamento: ele paga pelo show, dança e ainda provoca risos nos convidados.

Meu mundo caiu

Tarde dessas eu estava numa seção de discos clássicos de uma grande loja quando me dei conta de que me encontrava inteiramente sozinho. O DVD de um recital magnífico do violonista André Geraissati passava na tela de plasma, sem que houvesse vivalma na poltrona diante do aparelho. Eu gostaria de ver o produto, saber o preço etc. Mas cadê o vendedor, o atendente ou que nome leve o funcionário que deveria estar ali, se não ouvindo o freguês, pelo menos a tomar conta do local?
O setor de clássicos sempre foi o mais seleto e isolado. Mas nunca assim. Nem o mestre Geraissati se acomodava antes na prateleira erudita – sua música vai além de qualquer rótulo. Saí ao encalço de um ser pensante, mas, à medida que percorria as gôndolas, notei que não havia ninguém, salvo gatos pingados que ouviam o novo CD da banda Coldplay (que saiu antes na internet). Fui reclamar à moça do caixa. Depois de um muxoxo, ela chamou o gerente pelo telefone. O sujeito surgiu esbaforido. Quando lhe falei do DVD, arregalou os olhos e saiu atrás do produto como se brincasse de cabra-cega. Demorou um tempão, mas conseguiu descobrir o disco. Acabei comprando o Geraissati e o Coldplay. Mas não saí satisfeito.
Concluí o óbvio: lojas de discos não existem mais. Os clássicos estão sendo liquidados como tomate na xepa da feira. Numa cidade enorme como esta, um amigo e eu somos os únicos a ainda comprar sonhados álbuns, antes tão caros. Eu sei porque ele comprou outro dia uma caixa de sonatas de Beethoven pelo Arthur Schnabel que eu queria ter comprado. Aí ele me deu a dica de que havia uma igual numa das filiais da loja. Temos trocado idéias como se fôssemos os últimos audiófilos sobre a Terra da Garoa.
Não existem mais amantes da música, nem alma nesse negócio. No mundo todo, as grandes cadeias de discos estão fechando. A Tower Records e a Virgin saíram de cena nos Estados Unidos. Em cidades como Miami, restou uma única cadeia, a Fye, que mesmo assim empurra os discos cada vez mais para o fundo, em nome do destaque para games e filmes em blu-ray. Em São Paulo, sobraram seções de discos nas livrarias e em lojas de alta tecnologia. Há os sebos, mas estes não se comparam aos do passado. Recendem a mesquinhez, com seus donos sem trato nem cultura...
Disco e inteligência parecem ter se divorciado irremediavelmente. E assim descobri que meu mundo não existe mais. Deixe estar: tenho reservas de som suficientes para passar bem o resto da vida. Só tenho pena de quem não pode mais desfrutar de uma conversa com o gerente cultivado das lojas de discos de antanho.

Saudosa caixaria

– O senhor não sabe de nada. – diz o Paco com voz agressiva, enquanto prega numa caixa de compensado. – Isto aqui tá acabando!
O barulho do martelo não irrita, é o som do trabalho que Paco, um sujeito moreno de olhos puxados de seus 40 anos, faz ali, na rua Fröben, Vila Leopoldina, há uns 30 pelo menos. Ensurdecedor é caminhão, moto e carro passando pela via imunda. Lixo reciclável ou não, cães, gatos, galos e galinhas se misturam às caixas e tabetes - pequenos estrados também de compensado que servem para isolar do chão as frutas, verduras e legumes. Pela região, ainda se estendem galpões de tijolo de velhas fábricas, bares de sinuca, bordéis, casebres e pequenas oficinas de marcenaria. Ainda se vê chão de terra batida. É coração da Caixaria.
A Caixaria é um enclave entre as avenidas Imperatriz Leopoldina e Gastão Vidigal e as ruas Fröben e Aroaba. Ali, residem as famílias de trabalhadores dependentes dao CEAGESP, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, do outro lado da Gastão Vidigal. O aspecto é de um povoado antigo incrustado na megalópole. E esta avança sobre o cenário que começou a ser construído em 1969, quando nasceu a CEAGESP, então CEASA. Até hoje, os habitantes da caixaria fala “o Ceasa”.
– Meu pai chegou aqui para trabalhar pro Ceasa – diz o China, o colega do Paco. – Dia e noite é fazer caixa pros atacadistas estocarem os produtos. Dia e noite alugando, montando, vendendo caixa.
China tem uma especialidade: compra e vende tabetes e vende casinhas de cachorro. Mas, em geral, a turma se arranja catando papel e lixo reciclável no bairro de classe-média logo adiante. Na caixaria, as crianças ainda andam descalças, as mulheres são donas-de-casa e carregam sacolas no vaivém do varejão. Nos sábados e domingos, a centena de moradores da Caixaria corre para a “xepa”, quando os produtos custam nada.
– Sobra de tudo pelo chão, a gente cata alface, tomate, batata – diz Karine, filha de 12 anos de Paco, de jeans e camiseta regata. – Ninguém passa fome na Caixaria.
No meio da Caixaria, quase na favela, há um terreno calçado com anúncio de uma torre de apartamentos de 2 e 3 dormitórios. “Concilie a ecologia com a vida urbana”, diz o anúncio, sem considerar uma possível conciliação com a vida primitiva dos caixarenses. Talvez a construtora tenha razão e não haja conciliação.
Com a Caixaria, está acontecendo o que já se passou com tantos e tantos bairros pobres históricos de São Paulo: a especulação imobilária, o avanço das incorporadoras, a destruição das malocas para que se ergam prédios de 30 e até 40 andares. Monstros que vão soterrar o casario pobre e deslocar os trabalhadores das caixas para regiões mais e mais distantes.
– Estamos sendo expulsos –– resmunga Paco, sentando-se na calçada para fumar. – Daqui a pouco só vai ter prédio. Que será de nós? Tanto faz, a gente vai lá pra trás dos armazéns do Ceasa, não adianta querer nos expulsar!
Eles crêem que, enquanto houver frutas, legumes e flores para vender, haverá as caixas – e gente vivendo delas. As caixas estão ali, amontoadas em até seis metros de altura como instalações comoventes, talvez mais humanas que os novos moradores das torres vizinhas. Pois estes desejam ver aquele poo bem longe de suas butiques, lojas e bares de açaí e balada recém-inauguradas.
Ao bater papo com a turma da Caixaria, sou invadido por um sentimento de nostalgia antecipada. Então tudo isto será derrubado para dar lugar a torres gigantescas... Chego a preferir mil bordéis, sinucas e uma cidade de caixas a ver tudo isso convertido em shopping centers. Mas, exceto eu, talvez, ninguém vai chorar pela Caixaria.

Não me roubem a noite

Ela tem seu regime. O principal ingrediente da noite é, claro, a escuridão. Noite só é ela por escurecer. Ao errar numa dessas noites pela rua Racine, me lembrei do escritor do século XVII que emprestou o nome ao logradouro. Numa tragédia, o francês Jean Racine fala do "horror de uma noite profunda", a escuridão que leva o sujeito a mergulhar nos dilemas e no medo que guarda no fundo da alma. A rua Racine ainda faz jus a seu padroeiro, e pode assustar pelo breu, como antigamente. Outras ruas próximas, no entanto, estão sendo iluminadas por lojas e bancos, roubando a noite do meu bairro, de todos os bairros.
Caminhando do breu das árvores em direção ao brilho das vitrines, observo o seguinte: à medida que a história se desenrola, os habitantes das cidades contraem um medo crescente de escuro – e querem enxotá-lo para mais longe. Thomas Edison inventou a lâmpada em 1879 e, desde então, a humanidade vem sendo iluminada em escala... assombrosa.
Os sedentos de luz costumam dizer que esta cidade é detentora de poucas luzes, se comparada a Paris ou Nova York. A noite no centro dessas duas metrópoles cintila. Paris, a Cidade Luz, começou a ser iluminada em arcos voltaicos isolados no ano da invenção da lâmpada. A Torre Eiffel e a lâmpada incandescente surgiram ao mesmo tempo, uma lançando fachos de glória à outra. Nova York, a primeira cidade a ter recebido iluminação em grande escala, em 1891, tem o Times Square, lugar onde a noite é sempre dia por conta dos prédios que emitem raios estroboscópicas, holofotes e imagens tridimensionais.
São Paulo, pobrezinha, ganhou sua rede elétrica em 1891, uma década depois das então grandes capitais - o Rio teve luz antes. Dessa forma, a Paulicéia até hoje não ficou de todo às claras. Talvez ela seja atrasada e candidata ao título de cidade-apagão. Mas a admiro assim, com seus lampejos bruxuleantes e raios que vez ou outra explodem os tansformadores. Será que alguém neste mundo precisa de arrabaldes e periferias com tantos postes e luminárias?
A lâmpada é a cúpula apoteótica da rede elétrica. É a invenção mais fundamental da civilização. Mas, talvez, a luz mais e mais resplandecente venha a ofuscar nossos sentidos. Um clarão que pode cegar a ponto de os homens do futuro serem incapazes de ler no papel. Agora me encontro diante de um computador iluminado: contemplo o nascimento destas palavras emergindo de uma lâmpada elétrica. O monitor não passa de uma lâmpada achatada.
Em vista do avanço irressistível da iluminação, chego a apreciar a calada dos blecautes. Pelo menos assim a gente não tem dúvida de que a noite da alma ainda pode se encontrar com a noite aqui fora. Sem luz, o ar fica mais fresco...

Existe o paulistanês?

Gosto de ouvir o jeito de falar das pessoas. Toda comunidade, classe ou tribo tem por aqui seu vocabulário, gíria e entonação. E cada falar, sua identidade. Escutar a voz das ruas é uma aula de como se alteram e morrem os sotaques e as gírias. Um rap da periferia pode abrir um mundo de surpresas ao ouvinte – desde que, para isso, a gente se desarme.
Por isso, fico chateado com esses programas de rádio que zombam da fala “dos manos” (legenda: negros pobres de Heliópolis e Capão Redondo), do vocabulário de faxineiras e trabalhadores. Esse tipo de piada com a linguagem dos outros é puro preconceito social e de cor.
Lembro que nos anos 70 no rádio paulistano um programa cômico, Rádio Camanducaia, que fazia algo parecido, mas em incorrer em tanto rancor social. Havia o italiano que torcia pelo Palmeiras, morador de alguma “calábria” da Zona Oeste; o Lorde, o torcedor do São Paulo que, toda vez que o time perdia, ordenava ao mordomo: “Archibald, meus sais!” O bebum que amava o Corinthians: “Nega, traz ampola que o Curingão vai arrasar!”. Era uma aquarela de tipos, com seus acentos folclóricos.
Uma pergunta sempre me volta: será que, para além dos estereótipos, existe o paulistanês? Vamos pensar. Esta megalópole foi marcada pelo choque de línguas, gírias e sotaques. Isso faz parte de seu DNA. Um dialeto unificador parece improvável.
O Juó Bananére deu a entender que existe, quando inaugurou esse gênero de humor paulistano nos anos 10 e 20. Escrevia crônicas macarrônicas que reuniu no livro La Divina Increnca (1924). Oswald de Andrade apelidou a Paulicéia imigrante dos anos 1920 de “babélica”, com suas multidões de italianos tentando se adaptar à fala e à cultura locais. Restou desse tempo o dialeto da Moóca, cujos habitantes ainda conversam como se cantassem “O Sole Mio” e dizem coisas impagáveis com vogais anasaladas e erres puxados, do tipo: “Belo, num acredito: saí do Juventus, parei no istacionamento da Dicunto e tá tudo rreformado!” Este “moquês” se tornou o símbolo da fala paulistana. O supra-sumo do paulistanês era o sotaque napolitano, até porque os italianos formaram a maior comunidade imigrante.
No passado foi mais fácil reconhecer e analisar o paulistanês. Hoje, a fala italianada está desaparecendo. E surgem muitos novos paulistaneses: o dos meninos de classe alta, dos jovens pobres, dos universitários e tantos outros. Há quase tantos modos de falar na cidade quantos o número de bairros. É uma variedade lingüística talvez só encontrada nas maiores metrópoles. Mas, diferentemente de outras metrópoles, os idiomas aqui passam por uma centrífuga para, no fim, enriquecer o português brasileiro. Em São Paulo, nasce uma língua por minuto.

Corpos fragmentados

Quem me lê agora já entendeu. Quem me ler no futuro talvez fique intrigado. Mas vamos aos fatos deste sétimo mês no sétimo ano do século XXI. De repente, SP virou palco de uma tragédia sem precedentes: a queda do avião da TAM naquele que é agora conhecido como o Vôo 3054, que matou mais de 200 pessoas e espalhou destroços e pedaços de seres humanos na avenida Washington Luís.
Até então, o desastre dos desastres paulistanos era o incêndio do edifício Joelma, em 1º de fevereiro de 1974. Morreram 189 pessoas. Ficaram famosas as cenas de gente pulando do alto do arranha-céu do centro da cidade. Pessoas jogando-se de prédio em chamas se converteram no logotipo do sinistro, imagens que ecoaram no Onze de Setembro, embora os flagrantes de suicidas voadores tenham sido censurados pelo Pentágono e se apagaram da memória coletiva. Do Joelma saltaram imagens que acabaram grudadas na História e dizem até que anos depois fantasmas do prédio passaram a assombrar várias cidades.
O que dizer então do Vôo 3054 s seus “corpos fragmentados”, no novo termo lançado pelo Corpo de Bombeiros? A gente foi obrigada a encarar a morte violenta de frente, e ver e ouvir os responsáveis pelo resgate tentando amenizar o inferno com termos técnicos. Então surgiu a expressão “corpos fragmentados” para designar os restos mortais que os bombeiros acondicionavam em sacos plásticos para enviar ao IML. Chegou um momento em que não havia cadáver para jogar. Só restavam fragmentos, que tornaram mais terrível o trabalho de contagem dos corpos. Porque corpos, de fato, já não havia.
A expressão “corpos fragmentados” é mais chocante que “corpos despedaçados”, usada antes em acidentes de grande monta. O fragmento define o quase nada que sobrou deas pessoas, mutiladas e queimadas até desaparecer. Como seres podem desmaterializar assim, num átimo? Essa aniquilação soa mais extraordinária que a vida, ou mesmo que a vida após a morte. Daí o travo macabro, insolente, do termo “corpos fragmentados”. A fragmentação é o símbolo desta tragédia maior.
Por isso, as nossas almas fragmentadas tremem de pavor. Porque a tragédia não acaba jamais. É uma explosão nuclear de desespero, que vai amenizando como uma dízima periódica à medida que os corpos são identificados... mas não termina. O avião vai continuar aterrissando e arremetendo e batendo até que se apague a lembrança do último ente querido das vítimas... do último de nós.

Mais nova ortografia

A linguiça que tenha paciência, mas trema é essencial. Pelo menos para mim. Até 2013, quando a lei férrea contra os erros ortográficos entrar em vigor, vou continuar a manter o simpático sinal na minha escrita particular. O leitor já sabe como gosto de escrever, a mão, sem outra máquina intermediando que o lápis e o caderno. E nenhum revisor abelhudo e cioso do Acordo Ortográfico vai me impedir de agir assim, mesmo porque ele receberá o texto eletrônico devidamente corrigido.
No meu dia a dia (agora sem hífen) e no meu íntimo, sigo com o trema. Em texto passado, nesta coluna, contei da visita de despedida que o Sr. Trema me havia feito. O leitor deve lembrar que o ancião saiu da minha casa contendo o pranto – e até me convidou a encontrá-lo no idioma alemão. O que não contei é que há dias bati um papo com ele no Messenger, para lhe desejar Boas Festas e dizer que não o abandonarei. “Mesmo pq o trema naum k-iu de todo, vc sabia?”, teclei. “Ele continua em expressões como mühleriano ou björkiano!” Sr. Trema me respondeu com um emotion de extrema felicidade. Sorri de volta. O internetês é o máximo de novidade que me permito.
Sou do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça com trema e tudo. Quanto às outras novidades do Acordo Ortográfico, ainda estou tentando entender as alterações seguindo as orientaçôes do lexicógrafo Evanildo Bechara, o nosso gramático-mor (será que vai hífen?). Caiu o acento em “ideia” e “heroi” e outras palavras terminadas em ditongos abertos. Mas aí fico a me perguntar o que será do ótimo samba “Filho da véia”, de Luiz Américo e Braguinha. A letra diz o seguinte: “Sou filho da véia/ E eu não pego nada/ A véia tem força, ô/ Na encruzilhada”. Sem o acento, a “véia” vira “veia”. Bechara ensina que devemos atentar para o contexto e daí depreender se se trata do duto que carrega o sangue venoso ou a senhora mãe do compositor. Ora, pela letra, é impossível chegar a uma conclusão. Um E.T. que aprendesse o novo português e lesse a nova versão da letra, poderia interpretá-la como a manifestação do vigor do povo, que põe fé na veia, na força do sangue. Nosso E.T. vai demorar para compreender....
O pior mesmo é o hífen. Não sei ainda se ele agora serve para unir ou separar vocábulos. Fui informado que agora paraqueta e mandachuva estão unidos poara sempre. Mas o “não” se divorciou de palavrs como comparecimento e “aceitação” – assim como diz que me diz que e fim de semana.agora são palavras que andam em regime de amor livre. Em compensação, ‘trouxe-mouxe” segue com hífen. Justamente troux-mouxe, que significa ação desordenada, confusão...

Pedestres mais velozes

Resolvi parar na guia para admirar a pressa em plena Avenida Paulista ao meio-dia de uma quarta-feira. Um corre-corre que parece não ter pausa, as pessoas andam tão velozmente que não consigo nem vislumbrar um semblante, o tal do rosto perdido na multidão se esquiva da gente numa espécie de vergonha de olhar ou ser olhado. Estou a me perguntar o que leva o cidadão a correr dessa forma que tanto parece lunática como é regida por uma força maior, uma lógica do horário.
A questão é velha, claro. Há dois séculos surgiu a multidão, como bem observou o escritor americano Edgar Allan Poe, ao fazer o retrato da Londres da Revolução Industrial no conto “O Homem na Multidão”, de 1843. Poe demonstrava que, a partir daqueles anos, era possível se esconder na massa humana da cidade. O espaço que antes era personalizado (as pessoas se cumprimentavam!) ganhou ares de esconderijo, a fumaça escondeu as estrelas e os indivíduos. Foi mais ou menos nessa época que as multidões começaram a invadir os centros urbanos. Pobre Charles Baudelaire! O poeta maldito flanava pelas galerias de Paris quando as hordas de pedestres o atropelaram. Passear nas grandes cidades passou a ser impossível. Em São Paulo, o fenômeno aconteceu nos anos 1930, quando a Paulicéia se desvairou com as fábricas e os imigrantes.
Então faz muito tempo. Quando me lembro das multidões que vi, sou invadido por imagens aceleradas que às vezes passam na televisão, imagens de pessoas correndo noite e dia sem cansar – vem a noite, amanhece e entardece, tudo seguindo igual, numa espécie de centrífuga. Pego o jornal e leio sobre um estudo feito por uma universidade ingles (Heartfordshire), que mostra a aceleração da velocidade dos pedestres nas cidades do muindo inteiro. Segundo os cientistas, as pessoas andam muito mais rápido hoje do que há dez anos (o que dizer de 160 anos atrás?). Curiosamente, São Paulo não está entre as dez cidades campeãs da pressa. Cingapura é a vitoriosa, com aumento de 30 por cento na velocidade desde 1990, seguida por Guangzhou, na China, com 20 por cento. Na Europa, Copenhague e Madri bateram Londres e Paris. Curitiba, não São Paulo, é a vencedora no Brasil. Os especialistas atribuem a culpa à cultura 24 horas, ao e-mail e ao celular. Estar permanentemente disponível está convertendo as pessoas em carne para moer. Pensamentos para moer. São Paulo está nessa, mesmo sendo vencida.
Aqui da sarjeta, imaginei me levantar, e virar um “flâneur” agora na Paulista... não observar horários, andar à solta bem devagar, fitar cada rosto e cumprimentar cada um que eu encontre. Mas, caramba, eu seria considerado mais um dos tamtps loucos que assombram os outros nestas ruas, tentando afirmar sua individualidade...

Sonho de regente

Diz o ditado latino que o leopardo sonha com o leopardo, o lobo com o lobo. Imagino como isso possa acontecer. Uma serpente que sonha com uma serpente parece uma ideia grotesca, uma alegoria do veneno eterno da História. Ela deve escutar chocalhos e zunidos do outro e os olhos se destacam do resto do corpo, mesmo na imprecisão de um pesadelo.
Até sonho às vezes com cães que me mordem no vazio da noite – e deve ser resquício infantil. Eu me lembro de ter sido mordido por um cão, e o sangue me vem à mente, sangue que eu derramei ao tropeçar, não que o cachorro tenha me mordido. Sou tomado por uma onda de horror e toda vez parece que não há saída. O sonho que mais me assalta, porém, é o que conto a seguir. E, claro, trata-se de um sonho com gente, estranha. O mesmo sonha com o mesmo, embora seja outro.
Está escuro, ouço o barulho e os risos de uma plateia que está ali em frente. Eu me encontrou nas coxias de um teatro. Alguém, um contrar-regra talvez, ou um ponto, me chama à cena. Limpo a garganta como se fosse cantar. Mas ao chegar à boca de cena descubro que estou de fraque e com uma batuta na mão direita. Vou reger uma orquestra. O público aplaude com barulho. Inclino-me e diviso a sala cheia, com quatro ou seis andares, não sei ao certo. Uma casa de ópera que pode lembrar Viena, ou Paris. Talvez não passe do cinema Ópera que eu frequentei quando criança, um antigo teatro de ópera na Serra Gaúcha. Não pode ser lá porque eu não estaria de fraque e nem a orquestra seria tão disciplinada. Tantos andares de balcões não havia...
A orquestra está toda a postos, os violinos de arco em riste, os sopros em posição de ataque, a percussão em suspense, esperando uma ordem. Minha. Lanço um olhar sobre os músicos, e percebo que o grupo é enorme, formação para tocar uma obra gigantesca. Um coro se posta diante dos instrumentistas. É peça de grande fôlego, algo pós-romântico. Quem sabe um poema sinfônico de Richard Strauss. Respiro fundo e tento me lembrar por que estou aqui.
Nenhuma lembrança me dá atenção. A sensação não é de amnésia, e sim de uma espécie de naturalidade diante do destino que me conduziu até este lugar. Parece outra vida. Eis-me aqui porque tenho que cumprir uma tarefa. E assim me dirijo ao pódio, dou as costas ao público, e leio a partitura que está disposta na estante: “Gustav Mahler – Simphonie N. 7 in E Minor - I. Langsam - Allegro risoluto, ma non troppo”. Nas páginas suavemente amareladas, os instrumentos estão distribuídos, a armadura da clave clara tudo pronto para a execução. Bato três com a ponta da batuta no canto da estante e dou o sinal erguendo-a até acima da cabeça, os braços bem abertos. Eu sei que vão me criticiar pelo gesto, porque maestro de verdade não faz assim. É contido, os braços quase presos ao corpo. A posição aberta parece indecorosa, desproporcional a meu talento.
Agora não é mais possível recuar, pedir desculpas ao público e me retirar, sob vaias e pateadas. Mesmo que eu fareje o pânico tentando dominar minha razão. Já não tenho certeza de que é sonho. Experimento o suor do medo real. Devo conhecer esta sinfonia de cor e por um instante procuro me lembrar de alguma gravação, para não ser surpreendido e dar o ataque errado. Preciso me lembrar, é um início desajeitado, esquisito, o mais estranho entre os das sinfonias mahlerianas. Há um episódio de tímpanos, aí vêm as cordas e os metais, acho que é assim, vamos lá..
Para meu espanto, a orquestra executa e desenrola o movimento com uma lógica irresistível, e parece até o fim, porque a peça anda aos fragmentos, segue o seu caminho de forma-sonata que se estilhaça no tempo. Tento gesticular, marcando o compasso com a batuta, e criar expressão com a mão direita. Mas é como se eu não tivesse controle algum sobre a música. Nem ela sobre mim. Á medida que a harmonia profunda se impõe à minha frente, encontro-me mais sozinho do que nunca entre músicos e ouvintes, esbraçando como um nadador que tenta não se afogar em um fosso, e é tragado.
Eu deveria ter assumido o papel e me mantido sobranceiro até o último compasso. Só que me perdi nadando de costas para o público, de frente para os instrumentistas. Se eu tivesse me comportado como um profissional e representado com segurança, ninguém teria me escorraçado como pária, intruso. O farsante teria sido oculto pelo véu da pose, da batuta em riste. Sim, o fracassado sonha com o fracasso, mas não é o seu. Não pode ser o seu...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Ciclo de vingança

Remonta ao tempo do onça o hábito de a torcida vaiar e agredir jogadores e técnicos de futebol. Começou com a primeira derrota, o frango primordial. O onça foi esquecido, embora a prática bárbara continue popular. Os tempos mudam uma hora destas. E mudaram para o Gilmar.
Ele é chefe de uma torcida de um tradicional clube de futebol da capital. Pode ser chamado de fanático. Seu lado positivo é organizar excursões quando o time joga fora, conferir os treinos, pintar faixas. Sabe conciliar as atividades com a de caixa de banco. O lado negativo está em não suportar quando o time perde uma partida. Toda vez que isso acontece, chama seu bando de choque e dá um jeito de espezinhar ou agredir a equipe.
Um dia Gilmar combinou com a torcida de jogar moedas no campo na direção de Uonderson, o atacante que idolatrava. Como Uonderson recebeu uma proposta melhor de um clube estrangeiro, tudo mudou. De herói, passou a saco-de-pancada.
No jogo seguinte, Gilmar esperou Uonderson se aproximar da lateral para puxar o coro: ”Mercenário! Mercenário”. Enquanto isso, uma chuva de moedas atingia o atleta. Não foi o bastante, Gilmar e gangue esperaram o jogador à saída do vestiário. Em formação de correcor polonês, desferiram-lhe uma saraivada de cascudos. O jogador foi para casa humilhado no seu carrão importado. No ônibus, a turma de Gilmar só ria.
Uonderson planejou sua revanche. E como vingança é um prato frio, demorou semanas para se realizar. Na manhã do dia 5 do mês de dezembro, Gilmar pegou no serviço. De paletó e gravata, sentou-se ao caixa para iniciar um expediente cheio, pois era dia de pagamento. As portas se abriram. Um grupo de rapazes fez fila diante dele. Eram un 20 atletas de seu time, ecabeçados por Uonderson. “E aí, vai demorar pra atender?”, gritou o craque. “Calma, amigos, vou atender a todos!”, replicou o bancário, pasmo. “Mano, cê tá demorando”, falou alguém de trás da fila. Outro ofendeu: “Você não vale nada!” Gilmar não teve tempo de pensar, nem o segurança de intervir. O bando avançou, deu-lhe cascudos e o arremessou para o alto, gritando: “Mercenário! Mercenário!” Uonderson mandou colocarem Gilmar de volta à cadeira, e proclamou. “É para você aprender como a gente se sente quando a torcida nos agride. A gente é tão profissional quanto você. Dói, né?” No fim, o time à paisana lançou sobre o subgerente um tornado de notas de um real, e se retirou às gargalhadas. Gilmar quis morrer, mas engoliu em seco e atendeu o primeiro cliente.
Será que aprendeu a lição? Quase. Agora mesmo ele está lá no centro de treinamento do clube, todo feliz, jogando pipoca nos jogadores...

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Papagaio Ilegal

Outro dia a Polícia Civil apreendeu na Zona Norte 230 aves silvestres. Os pássaros estavam presos em 30 gaiolas, coitados: canários, sabiás, cardeais e papagaios. Antigamente esses bichos eram de estimação, faziam parte do cotidiano das nossas casas. Hoje foram promovidos a animais silvestres raro, protegidos - e, por isso, cobiçados pelos traficantes. É bizarra a dança da civilização. Nossas mães penduravam gaiolas na cozinha; agora os engaiolados se uniram contra os lares. Se alguém quer criar em casa um animal silvestre,deve se registrar no Ibama – ou entrar para a ilegalidade.
O que escrevi acima serve como um belo bico de cera para o assunto desta crônica: quase cometi um crime por adotar um papagaio... de nome Rigoletto. Tudo se deu há poucas semanas, ao visitar uns primos no interior. Na volta, eles queriam me presentear com um papagaio, neto do Louro, que reina aboluto por lá há 37 anos. Não seria uma proposta tentadora, caso o jovem espécime não se revelasse um prodígio. Ainda me espanto com ele: o bicho assobia, dança, canta, pensa, fala, discute. Por ser levemente corcunda, recebeu o nome do bobo-da-corte de Mântua que intitula a ópera de Giuseppe Verdi.
Mas o Rigoletto bicudo é elegante. Não usa a fantasa grotesca, sua filha não foi desonrada pelo Duque nem possui o registro de barítono. Também não defende árias de ópera. Rigoletto tem a voz aguda e rouca, desconhece os palavrões e adora o repertório pop. Interpreta “A Ponte do Rio Kwai” (primeira e segunda partes), “Parabéns a Você”, o “Hino do Palmeiras” (sua formação é italiana...) e, juro,“Love Generation’, sucesso recente de Bob Sinclair, sem ignorar o refrão com assobios. Quando ninguém está na cozinha, chama as pessoas pelo nome. Dá para resistir?
Pássaros como os sabiás e canários criaram a música – e os papagaios foram seus primeiros divulgadores. Isso até o homem aprecer, para roubar a arte daqueles, o engenho destes - e depois inventar a ornitologia, a ecologia e... o Ibama.
Meus primos me avisaram que Rigoletto não tem registro legal. Resolvi que não poderia adotar o bicho.Voltei para casa com o coração asobiando tristemente “Love Generation”. Os primos me mandam agora pelo MSN fotos e vídeos de Rigoletto com o olhar suplicante, na esperança de me convencer a ficar com ele. Mas vou resistir á tentação de entrar para o crime...

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Futebol e drama

Sou aquele torcedor que abaixa o som da televisão, liga o radinho e passa o fim de semana grudado nas notícias de seu time. Como palmeirense, meus últimos domingos têm sido repletos de emoções negativas: raiva, inveja, vontade de dar um coco no Marcos e um cascudo no Luxemburgo. Não vou apoiar os bárbaros que agrediram o treinador, mas consigo entendê-los. Onde já se viu jogar a toalha antes de terminar o campeonato?. E o desespero da equipe, capiteneada pelo São Marcos, o mártir, o louco? Enquanto isso, o São Paulo segue invencível e o Grêmio cola, na marcação agressiva e fria. Ficamos para trás, e lá se foi mais uma vez o meu domingo..

Por isso, prometi dar um basta ao futebol. Foi o que declarei à minha mulher à noite: “Perder mais um dia de sol, nunca mais!” Ela me olha divertida: “Você fala assim agora. Domingo que vem vai estar com o olho pregado na TV de novo”. Juro que não. Ela ri e diz que pelo menos times como o Palmeiras dão grandes emoções, diferentemente do São Paulo (é são-paulina), “que só ganha”.

Pensando bem, é isso mesmo. Há dois gêneros de time: os calculistas e os dotados de espírito trágico. O São Paulo pertence à primeira categoria. Deve seguir vencendo nos campeonatos de pontos corridos. O Palmeiras, assim como o Corinthians e a Portuguesa, comete tanto proezas como falhas épicas. Times assim lutam para fugir do rebaixamento porque amargaram na Segundona. Conhecem o drama. O tricolor permanece no alto, olímpico e indiferente aos concorrentes. Indiferente à precariedade humana, enfim.

Sou voz vencida, mas insisto em criticar o critério de pontos corridos. Ganham sempre as equipes regulares. Vejo o futebol como uma praça de touros. O sangue precisa voltar à arena. Sonho com a volta dos quadrangulares em mata-mata, a rivalidade entre torcidas, e a sorte. Talvez com o retorno do Corinthians, ano que vem, o Palmeiras recobre o seu papel. Pois não há drama sem antagonista.

Não é o caso do São Paulo. Penso nele como um Zeus de tragédia, que está matando o esporte lentamente, com o veneno da previsibilidade. Para salvar o que resta, minha sugestão é que, daqui para frente, o São Paulo receba o título de hors concours. Como o saudoso Clóvis Bornay nos concursos de fantasia. Digo sem malícia: Bornay vencia sempre, então os jurados lhe atribuíram a honraria de competir já como campeão. Que o São Paulo seja hors concours e deixe o os outros manter vivo o drama.. O futebol ficou sem graça.- exceto, obviamente, para os são-paulinos...

sábado, 22 de agosto de 2009

Vista para o mar

Quem disse que São Paulo não tem praia? Basta dar uma olhada na rua nesta sexta-feira por volta das seis da tarde. As “prainhas” se espalham por todos os quadrantes da metrópole, do centro à periferia, invadindo também os bairros mais ricos. Assim são chamados os bares com mesas nas calçadas. Ali o pessoal se reúne, bebe cerveja, faz barulho e joga conversa fora. É um espaço cenográfico que simula areia e mar. Só não há nada disso por mera contingência.
Vamos nadar pela História. A colonização do Brasil começou na praia. Martim Afonso de Sousa fundou a vila de São Vicente em 1532, a primeira povoação brasileira. São Paulo de Piratininga foi criada 22 anos depois, num planalto magnífico próximo ao oceano. No início, não passava de um reduto indígena gerenciado por jesuítas. Para os padres, tratava-se do local mais aprazível do planeta – que eles conheciam bem, pois percorriam os continentes conhecidos O clima era ameno, as montanhas suaves, rios e vegetação abundantes. E ficava num ponto estratégico, entre o mar e o interior desconhecido do Brasil. Por isso, os bandeirantes apelidaram São Paulo de “a boca do sertão”. Pela boca se iniciou a exploração do interior. Isso deu ao reduto, mais tarde vila e, por fim, cidade, uma carcterística: a cabeça bifronte, contemplando a um só tempo o sertão com espírito de aventura, e o mar, com nostalgia do espaço abandonado.
Escrevi o parágrafo aicma só para dar crédito histórico às multidões de clientes dos bares, que olham para fora buscando visões de ondas batendo nos rochedos. Sim, e elas têm razão em mergulhar na imaginação, porque que nem mesmo as previsões mais catastróficas de aumento do nível dos oceanos por conta do aquecimento global trarão uma tábua de marés às prainhas da Paulista. Talvez a profecia do Antônio Conselheiro fosse propícia. Porque, se o sertão virar mar e o mar virar sertão, a boca do sertão reúne credenciais para se converter em boca do mar, entrada de golfo ou baía. Aí, sim, seria possível para os bebuns trocar a miragem por uma mesa mais próxima da arrebentação.
Enquanto as profecias não se verificam, as prainhas servem como paraísos artificias para quem não pode descer ao litoral. Não poderia haver nome mais expressivo. Porque praia é um estado de espírito. É um olhar e um gesto criador. Sem muito esforço, os freqüentadores de prainha conseguem transformar o concreto em palmeira... especialmente quando estão mais altos.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Moto-perpétuo

Eu queria nadar, correr, malhar, ler, ouvir música, namorar, beber, mas não consigo. Não posso, e não se trata de preguiça. Culpo esta vida trepidante que leva a lugar nenhum. Às vezes tenho a impressão de estar sendo puxado pelos dois braços, impelido para trás e para cima, como enganchado à fatalidade. Outras vezes a sensação é de uma reprise incansável das mesmas ações em nome do dinheiro. Trabalhar cansa, já dizia o poeta italiano Cesare Pavese. Viver esfalfa, escreveu o Conselheiro Aires.
Pensando bem, não importa o movimento que faça – se para frente, para o lado ou para trás – ou para onde me dirija, pois estou sempre aos círculos, apegado à circunvolução terrestre e ao destino de sua natureza, do ar que tenho de respirar, da água obrigado a beber.
As cidades se repetem como patos no carrossel. As populações globalizaram a tal ponto que sou incapaz de distinguir um país de outro, quase uma língua de outra. Não adianta sair da agitação de São Paulo, ir para, digamos, Londres – e lá encontrar os mesmos problemas e a mesma programaçao de cinema. Sei que por lá existe mais opção de cultura. Mas e daí, se não quero mais gastar outro dia de minha existência na National Gallery ou no Museu Britânico? Arte em excesso causa estresse.
O leitor me dirá que ainda resta a natureza como consolo e devaneio. Sim, eu sei, mas ela me leva às lágrimas. E embota os sentidos. Antigamente eu via uma árvore e isso servia para todas as outras. A regra se aplicava às praias, às montanhas e aos campos. Agora enxergo em cada uma dessas paisagens o germe de sua própria extinção. A visão embaça e fecho os olhos para não pensar mais nisso, como quando impeço que lembranças antigas e queridas me assaltem com sua tristeza parada no tempo.
Este planeta me dá claustrofobia. E pensar que o aquilo que há para além dele é pouco mais que o gelo seco de Marte, as tempestades de metano de Júpiter e Saturno, uma cratera de água rançosa no polo sul da Lua talvez... A ausência de gravidade e de oxigênio do universo me soa ainda mais angustiante que este lugar giratório e irritante que é a Terra.
Enquanto penso em tais bobagens, continuo a fazer aquilo que me sobrou e dá razão até mesmo a esta crônica. Ando por estas ruas e calçadas esburacadas atrás de um sentido para tudo, no encalço de mim mesmo escondido em algum ponto de fuga que eu possa achar na próxima esquina. Eis-me ali, tentando rir...

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Encolheram o passado

Andam me chamando de saudosista por causa das reminiscências que derramo neste espaço. Onde já se viu um andarilho da cidade, atento ao trânsito, que vive de se equilibrar entre a calçada e a rua, comportar-se como um ser nostálgico, lamentando o fim de prédios, obras de arte e pessoas?
Aos críticos respondo que é isto mesmo: sinto falta de uma cidade que desaparece aos poucos, sim, e adoro lançar jeremiadas sobre o que perdi. Vivo de retratar paisagens e sentimentos atropelados pelo avanço catastrófico de um falso progresso, que devasta a natureza e derruba casas em benefício de torres apocalípticas. O resultado é a desfiguração do espaço urbano e, pior, a morte de valores humanos que até pouco trempo eram fundamentais.
A crônica, então, existe para desmascarar o presente pelo passado. O saudoso (lá venho eu de novo...) Rubem Braga foi o mestre da crônica, criador de um gênero que passou a ser seguido no Brasil. Pois o velho Braga ensinava que a nostalgia constitui o objeto da crônica. Cronista e saudosista são sinônimos.
Crônica é um fenômeno recente. Ela surgiu nos jornais no início do século XVIII na Europa. Chamava-se folhetim, espaço no qual se comentavam eventos da cidade, em especial óperas, teatro e circo. O folhetim chegou nesse formato ao Brasil em 1826. Depois derivou para a ficção, a política e o comportamento. O jovem provinciano capixaba Rubem Braga tinha quase nada à disposição. Na ausência de óperas e outros programas culturais nas cidades onde morou, teve de reinventar a crônica. Por necessidade, substituiu a crítica de eventos pelo flagrante do passado. O objeto da crônica é algo que já não está mais aqui. Crônica é a resenha do que não existe mais. A ausência que preenche uma lacuna.
O saudosismo também muda com o tempo. Machado de Assis, na maturidade, evocava sua juventude nos tempos do rei. Braga amargava a ausência de um mundo lírico do início do século XX. O cronista atual sente a nostalgia do que ocorreu há um minuto.
Por isso, os cronistas têm um passado brilhante pela frente. O ontem se afigura tão tumultuado quanto o agora – e logo o fato entra para o rol daquilo que foi urgente um dia. Então peço licença ao leitor para sentir saudade. A rua serve como palco. A vida cotidiana é o meu espetáculo, e este sempre já passou. Daí a melancolia que tinge minhas andanças/lembranças. Porque o espetáculo desta cidade é turbulento: um drama, no qual tanto o passado como o presente... encolheram!

Como decifrar um bairro

O cronista trabalha como um construtor de diques imateriais. Em seu texto, ele quer represar a passagem do tempo, segurar uma visão e a palavra fugidia no tubilhão das metamorfoses. Com a passagem das coisas, a crônica termina por virar documento e, às vezes, com sorte, obra de arte. O sonho do cronista é, no fim, conservar fatos pela memória. Ando comparando certos lugares descritos por cronistas do passado e a situação em que esses espaços se encontram hoje. Os cenários se alteram e os textos retratam algo que já não pode ser verificado. Não vou cair em lamentos em torno da devastação da paisagem urbana. O que me interessa é descobrir restos dos que os mestres da língua retrataram nas ruínas que toda evolução urbana provoca.
Vagueei pela velha Lapa de Baixo. Passei por suas ruelas, seus muquifos e armazéns abandonados. Espiei pelas portarias de prédios prestes a ser demolidos, um deles com a placa da Escola de Datilografia Itamarati. Visitei a sede fechada há seis anos do lendário Lapeaninho, um clube de carteado. Enveredei por lojas em subsolos que um dia abrigaram bordéis e salões de sinuca.
Foi ali que João Antônio (1937-1999) ambientou suas crônicas e contos. Esse escritor nascido em Osasco passou a juventude na Lapa – e converteu o então submundo local em narrativas maravilhosas, repletas de sujeira e malandragem. É o caso do conto Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963. Conta a história de três vagabundos que vivem pela Lapa de dar golpes em salões de sinuca, tentando enganar os rivais com todo tipo de lorota e armadilha - e só se dão mal.
Talvez a Lapa de João Antônio possa ser melhor vista na sua obra literária. É resultado da filtragem imaginosa do cronista. Mas resquícios da obra do autor também se encontram na Lapa de agora. E aqui a coisa ganha curiosidade, porque ruas, prédios e objetos são de certa forma contaminados pelo texto do autor. O mundo real se enche da imaginação que lhe foi aplicada.
Não há mais aquela Lapa do início dos anos 60. Nem mesmo a sujeira é a mesma. Não há mais clube de carteado, mesmo que o jogo ainda corra às escondidas. Escolas de datilografia fecharam, mas foram substituídas pelos cursos de informática. Ainda assim, consegui entrever desvãos e quebradas em que as sombras dos personagens do escritor puderam ter se esgueirado e ainda podem passar. Sobraram o caos, um certo sofrimento do povo que se acotovela nas ruas, espera na estação de trem e bebe nos muquifos. O passeio compensou, porque li o bairro nas entrelinhas de seu ontem - e assim nasceu esta crônica.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Cidade macabra

Quando esteve por aqui, semanas atrás, o diretor de cinema inglês Peter Greenaway contou que, na vez anterior em que estivera na cidade, em 2001, tinha observado urubus voando nas alamedas.A visão o inspirou a fazer um filme de vampiros na Paulicéia, um longa-metragem que retratasse a cidade.
Fiquei admirado com a intuição de Greenaway. Porque São Paulo é e sempre sempre foi lugar inspirador de histórias de terror - e ligado ao macabro. É curioso que os paulistanos não assumam a faceta lúgubre, coisa que os londrinos já fizeram. Comentei isso com a escritora Lygia Fagundes Telles, ao entrevistá-la sobre seu último livro, Conspiração de Nuvens. Um dos relatos da obra me transportou à São Paulo horrenda e fantástica. E ousei sugerir à grande dama das letras: “Lygia, por que você não escreve um romance sobre a São Paulo byroniana do século XIX?”. Ela sorriu enigmática.
O livro de Lygia me fez pensar na cerração e na garoa gelada que tornavam a cidade dos estudantes de Direito de 1830, 1850, um lugar de devaneios fúnebres e até satânicos. Os poetas ultra-românticos, que têm bustos nos arcos da faculdade do Largo de São Francisco, fizeram época com suas cerimônias iniciáticas em cemitérios, orgias, banquetes em pensões de reputação duvidosa e tertúlias embaladas a ópio e álcool.
Conta-se que Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo passavam as noites em festas dissolutas na Ilha do Amor, como era conhecida uma ilhota no meio do Rio Tamanduateí. Ali, Bernardo tocava lundus pornográficos ao violão, enquanto Maneco – o apelido de Álvares de Azevedo – se embebedava com aguardente e poesia satânica. Noites na Taverna, livro de Álvares de Azevedo, é ambientado numa São Paulo alegórica. Sua peça Macário é a versão caipira do pacto com o Diabo. Dessa fase, Bernardo Guimarães deixou a “Orgia dos duendes”. É fácil imaginar a cerimônia de bruxaria num matagal paulistano de 1850, mulheres de mantilha no transe do cateretê bestial: “Já ressoam timbales e rufos, / Ferve a dança do cateretê;/ Taturana, batendo os adufos, / Sapateia cantando — o le rê!”. Eram textos inspirados em Lorde Byron, o modelo daquela geração, que tratou de dar cor local ao niilismo do poeta irlandês.
A São Paulo sombria gerou infinitas histórias desse tipo: o túmulo do professor Julius Frank no pátio da São Francisco, excomungado por ter fundado uma sociedade secreta; os incêndios dos edifícios Andraus e Joelma em 1972 e 1974 e a mitologia espectral que resultou dos sinistros; os enterrados vivos da Via Amarela; os filmes aracnídeos de Zé do Caixão... É a vocação de uma cidade.
Torço para que um romance futuro de Lygia Fagundes Telles aborde os poetas lúgubres e obscenos do Romantismo. Também espero ver Peter Greenaway tirando vampiros das bocas-de-lobo locais.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

As cores e o tempo

Enquanto eu fazia teste de equilíbiro na guia da calçada, admirando pela rua as roupas, cabelos, maquiagens, cartazes, prédios e carros, passei a refletir sobre o poder das cores. Imaginei um filme que mostrasse o passado colorido e o presente preto-e-branco, para captar como a cidade e a vida alteram suas tonalidades. Queria assim inverter um lugar-comum no cinema: aquele tipo de cena monocromática que representa o passado, em contraposição às seqüências coloridas do presente. É como se o passado se esmaecesse na memória, até virar sépia. O chavão deve ter sido criado na época da popularização do cinema a cores – e aí talvez o preto-e-branco tivesse um sentido de inovação tecnológica, ainda vibrante na cabeça do público.
No meu novo esquema, fantasiei uma história ambientada em São Paulo na virada dos anos 70 para os 80, quando os hippies sumiram em nome das sombras do punk e do gótico. Um momento que testemunhei. Os resquícios da cultura florida e exuberante dos anos 60 se apagou aos poucos, até que triunfaram os trajes negros dos roqueiros de várias tribos. De repente, tudo escureceu. Os cidadãos adotaram a moda e passaram a se vestir com os mesmos cinzas e pretos. A mudança de modelo poderia ser representada pelo branco-e-preto do presente e o arco-iris do passado. Não é uma idéia original, devo tê-la visto em algum longa-metragem.
Então pensei em ir além, em outra cena, passada no século XXI. O filme teria de exibir o presente com supercolorido, e o passado em cores básicas. O que aconteceu nas últimas décadas foi a explosão das cores, nuanças e tons jamais vistas antes. Apesar do cinza reinante nas ruas, surge uma cor a cada dia.
Há 30 anos a gradação dos pigmentos era mais restrita. Nas roupas e nas artes, nos carros e paredes, havia um espectro menor de verdes, azuis, laranjas. Predominavam as cores básicas. A gente saía da cidade para caçar tons diferentes do rosa, o cromatismo do amarelo nas areias. As flores e as borboletas tinham mais imaginação que os artistas. A natureza aquarelava o mundo.
Agora as variantes são aos milhões, ao gosto do freguês. Basta ir a uma loja de tintas para escolher uma cor para pintar a parede de casa. Até o branco tem centenas de opções. É como se as pessoas tentassem encobrir a destruição da natureza – cada vez mais cinzenta e sombria - com um ambiente imprevisível de tons artificiais. Diante de tamanha proliferação de matizes, eu, pelo menos, perdi a noção das cores originais do mundo. Quase cambaleio ao perguntar aos meus cadarços cítricos: o que era o vermelho da minha infância? Jamais vou reencontrá-lo. Perdeu-se no vasto catálogo das tintas.


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domingo, 12 de abril de 2009

Lembranças de um hotel

Hotéis são paradoxais. Apesar de sólidos e construídos para durar, deixam ao mesmo tempo transparecer uma instabilidade, como se soubessem que passam. Eles cruzam por nossas vidas, surgem e somem ao sabor do acaso. Eles imitam o destino de seus hóspedes. Hotéis são hóspedes da História, também vão e vêm. Para quem mora nos arredores, evocam visitas, encontros, espetáculos, situações banais ou inusitadas. Por isso, me emociono tanto quando certo hotel some de repente.
O parágrafo que acabou é só uma desculpa para falar de um hotel fascinante, candidato à desaparição: o Maksoud Plaza. O luxuoso prédio com seu átrio de 22 andares, fundado em 1979, foi a leilão e não apareceu comprador. Continua a funcionar, mas ninguém sabe até quando. Outros grandes hotéis tombaram: Crowne Plaza, o Hilton do Centro, o Cesar Park. O Maksoud é o derradeiro representante do brilho dos anos 80.
Vou lá no sábado frio me despedir dos velhos tempos. Já não exibe a velha elegância. Na realidade, está meio às moscas. Sento-me no velho sofá de couro, peço um café e contemplo o lugar, entregando-me a devaneios.
Ainda “foca”, em 1984, entrei de gaiato numa das salas do mezzanino para ver a entrevista coletiva que o escritor Jorge Luis Borges concedeu e segui o ancião cego de bengala para dizer que era seu fã. Ele me olhou nos olhos, sorriu e estendeu a mão. Sim, naqueles corredores, tive a certeza de que Borges enxergava.
Ali perto, diante da sala de jogos, numa madrugada do início dos anos 90, o roqueiro Axl Rose lançou uma cadeira na direção dos repórteres. Adivinhe quem estava entre os alvos? Fomos parar na delegacia. Fiquei orgulhoso de fazer o Axl tocar o seu melhor solo de piano... imprimindo suas digitais no prontuário da polícia.
Tantas outras coisas sucederam lá. No restaurante, em meados dos 80, almocei com a cantora italiana Rita Pavone e encontrei as Supremes. No 150 Night Club, no subsolo do hotel, vi shows lendários, como o do cançonetista Bobby Short e da papisa do blues Alberta Hunter. E as entrevistas? Foram tantas: minha primeira em inglês, com a pianista de jazz Toshiko Akiyoshi, e conversas longas com os mestres Tom Jobim e Miles Davis e o teórico agitador Antonio Negri.
O ápice da minha carreia de freqüentador do hotel foi em 1994: hospedei-me no Maksoud para espionar a banda Rolling Stones: passei dias entrevistando copeiros e garçons, coletando hábitos bizarros de Mick Jagger. O resultado foi nulo, pois a única excentricidade de Mick era tomar coquetéis de vitamina. Era caretão...
O átrio descomunal guarda lembranças, e se esqueceu de tantas outras. Passo pela porta giratória, enquanto tento disfarçar com a garoa uma lágrima impertinente. Sinto que deixei muito de mim para trás.

O Tao da guia

Neste instante tento me equilibrar na guia entre a calçada e a rua, ao passso que espero o ônibus. Por segundos, fecho os olhos para testar meu senso de equilíbrio – ginástica cerebral, dizem. Ao abrir os olhos, satisfeito por me manter a prumo, vejo a lanchonete do outro lado da rua. Ela anuncia refrescos de frutas diferentes. Então me lembro da Mônica e, mesmo no frio, cogito em tomar um suco de, digamos, mangaba com cupuaçu. É perto, mas o trânsito é louco, o ônibus vem rápido. Mais uma vez vou desistir.
É que um dia dsses a minha amiga Mônica (e pelo nome você já identifica a idade que tem, porque até nome tem safra e a safra das Mônicas é de longos anos atrás) me sugeriu pelo messenger que eu tomasse um suco gelado. “É longe”, digitei. O dia suava, mas não tomei suco, não andei nem me distraí. Tudo longe e muito quente. Tomar suco em São Paulo pode ser uma das missões mais difíceis. Ou comprar um parafuso. Pão. Pensamento: eu culpei a Mônica, porque ela não me convidou para o suco, pois estava a passeio em Dublim, longe daqui, na Irlanda. Ela deu a idéia de eu me divertir, numa daquelas semanas em que começo a resmungar que gostaria de saltar de mim mesmo no próximo ponto... mas saltar para quê, e para onde?
Não, leitor, não venha me acusar de pânico social. Pelo contrário, vivo de excesso de gente. Minha família é grande, estou sempre às voltas com parentes, contraparentes e amigos de amigos. Além disso sou jornalista, em contato com centenas de pessoas diariamente na redação – e não conheço nada mais enxameado de seres coisas e para fazer que uma redação. Ando mesmo é ocupado.
Não tenho hora nem ocasião de jogar uma bola ou nadar. Quando leio, vejo filme ou vou a um espetáculo, é para alguma reportagem. Sou como o ginecologista, que trabalha onde os outros se divertem. Só me resta mesmo me divertir onde os outros trabalham... Vivo numa mistura esquisita de espírito aventureiro e ostracismo. Pode me chamar de taoísta, de seguidor de Lao Tsé na prática da não-ação, uma não-ação turbulenta, vamos definir assim.
Mas agora, andando pela beira da calçada, sou tomado de euforia. Não importa embarcar no ônibus sem ter saboreado o refresco. Afinal, ao menos uma vez, tudo estava à mão. Percebo que longe e perto não são mais que preconceitos, reles noções geográficas que dependem do estado do espírito. E o meu espírito erra pela distância. Ou pela preguiça. Vou beber um suco pelo messenger em Dublim.