terça-feira, 19 de maio de 2009

Cidade macabra

Quando esteve por aqui, semanas atrás, o diretor de cinema inglês Peter Greenaway contou que, na vez anterior em que estivera na cidade, em 2001, tinha observado urubus voando nas alamedas.A visão o inspirou a fazer um filme de vampiros na Paulicéia, um longa-metragem que retratasse a cidade.
Fiquei admirado com a intuição de Greenaway. Porque São Paulo é e sempre sempre foi lugar inspirador de histórias de terror - e ligado ao macabro. É curioso que os paulistanos não assumam a faceta lúgubre, coisa que os londrinos já fizeram. Comentei isso com a escritora Lygia Fagundes Telles, ao entrevistá-la sobre seu último livro, Conspiração de Nuvens. Um dos relatos da obra me transportou à São Paulo horrenda e fantástica. E ousei sugerir à grande dama das letras: “Lygia, por que você não escreve um romance sobre a São Paulo byroniana do século XIX?”. Ela sorriu enigmática.
O livro de Lygia me fez pensar na cerração e na garoa gelada que tornavam a cidade dos estudantes de Direito de 1830, 1850, um lugar de devaneios fúnebres e até satânicos. Os poetas ultra-românticos, que têm bustos nos arcos da faculdade do Largo de São Francisco, fizeram época com suas cerimônias iniciáticas em cemitérios, orgias, banquetes em pensões de reputação duvidosa e tertúlias embaladas a ópio e álcool.
Conta-se que Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo passavam as noites em festas dissolutas na Ilha do Amor, como era conhecida uma ilhota no meio do Rio Tamanduateí. Ali, Bernardo tocava lundus pornográficos ao violão, enquanto Maneco – o apelido de Álvares de Azevedo – se embebedava com aguardente e poesia satânica. Noites na Taverna, livro de Álvares de Azevedo, é ambientado numa São Paulo alegórica. Sua peça Macário é a versão caipira do pacto com o Diabo. Dessa fase, Bernardo Guimarães deixou a “Orgia dos duendes”. É fácil imaginar a cerimônia de bruxaria num matagal paulistano de 1850, mulheres de mantilha no transe do cateretê bestial: “Já ressoam timbales e rufos, / Ferve a dança do cateretê;/ Taturana, batendo os adufos, / Sapateia cantando — o le rê!”. Eram textos inspirados em Lorde Byron, o modelo daquela geração, que tratou de dar cor local ao niilismo do poeta irlandês.
A São Paulo sombria gerou infinitas histórias desse tipo: o túmulo do professor Julius Frank no pátio da São Francisco, excomungado por ter fundado uma sociedade secreta; os incêndios dos edifícios Andraus e Joelma em 1972 e 1974 e a mitologia espectral que resultou dos sinistros; os enterrados vivos da Via Amarela; os filmes aracnídeos de Zé do Caixão... É a vocação de uma cidade.
Torço para que um romance futuro de Lygia Fagundes Telles aborde os poetas lúgubres e obscenos do Romantismo. Também espero ver Peter Greenaway tirando vampiros das bocas-de-lobo locais.