domingo, 22 de março de 2009

O lixão da Virada Cultural

Vou contar minha experiência olfativa e sensorial durante a 5ª Virada Cultural no fim de semana passado. A prefeitura avalia que quatro milhões de cidadãos encheram as ruas para participar de 800 eventos. Eu não passava de um entre os milhões na madrugada de domingo no centrão. O passeio pelos shows da Sé, Luz, Largo de São Francisco, República e Anhangabaú valeu a pena para conhecer os intestinos, os rins e os dejetos em geral da cidade.
Os shows disponíveis eram a céu aberto. Os de teatro estavam lotados, a maior parte dos convites distribuídas para vips e convidados do executivo e das assessorias. Fiquei na fila do Municipal uma hora antes do melhor show, mas não consegui nada, como a maioria. Então tive de perambular pelos palcos espalhados em vários logradouros em busca de algo para ver. Eram shows de música popular, dança e balada eletrônica em geral ruins e descuidados. O público dispersava , sem prestar atenção a nada.
Não havia infra-estrutura, iluminação e segurança suficientes para conter as multidões. E o resultado foi a selvageria total. As estações de metrô entraram em colapso, fecharam e houve tumulto. Pessoas se empurravam e brigavam. Lá fora, um pandemônio.. São Paulo lembrava o carnaval de Porto Príncipe, a capital do Haiti. Hordas de bêbados e drogados andavam pelas calçadas, ameaçando os sóbrios com palavrões e berros. Sem banheiros suficentes, rapazes se aliviaram com o maior descaramento, à vista dos passantes. Não se cansavam nem em se virar para os muros ou árvores; postavam-se de frente para a rua, para ultrajar quem passava. Uma cena simbólica: ao som de reggae, três brutamontes faziam xixi juntos na Ladeira da Memória, um dos monumentos fundadores da cidade, despoliciado. Será que estavam tão apertados assim ou era falta de vergonha?
Sujeira por todo lado. Quem não olhasse para o chão, pisava em churume e excrementos das mais diversas modalidades e origens. As ruas eram tão escuras que só era possível perceber o mau-cheiro e o grito dos guardadores de carros. Mendigos se aproximavam dos carros e dos passantes, provocando sustos. Fiquei com pena mesmo dos moradores de rua da Praça da Sé. Eram os mais irritados. Aí pela 1 hora da manhã, eles se encostavam às portas de ferro fechadas das lojas para se abrigar do frio – e tentar fugir da música bate-estaca que ribombava ali perto.
A Virada foi um megafestival de lixo, miséria e falta de decoro. O governo diz que o “povo” adorou. É um insulto. Se este é o tipo de cultura que o município tem a oferecer, então só me resta tapar o nariz e, da próxima vez, manter distância.

O fim das bibliotecas municipais

Nostalgia é o oitavo pecado capital destes tempos. Incorro nela de quando em vez, e sinto o olhar reprovador de quem está por perto e nota a infração. Confesso que, num desses acessos de nostalgia, cometi o crime de visitar a biblioteca pública do meu bairro. Cheguei de mansinho, talvez pensando em reencontrar nas prateleiras os livros que mais me influenciaram e emocionaram. Encontrei racks de metal com volumes empoeirados à espera de um leitor que nunca mais apareceu. O lugar estava oco. A bibliotecária me atendeu com aquela suave descortesia paulistana, como se o visitante fosse um intruso a ser tolerado, mas não absolvido. Eu me senti uma assombração do passado a importunar a ordem do agora.
“Procuro uma coletânea de contos fantásitcos do Aluísio Azevedo”, disse à senhora. “O senhor trouxe a referência?” Não. “Por que não consultou o catálogo pela internet?” Sei lá por quê, eu só queria parar e ler uns livros difíceis de encontrar e talvez levar emprestados... “Os empréstimos são limitados a quatro volumes e a devolução acontece em 15 dias”, ela metralhou, com os olhos pregados no monitor velho e encardido. Por fim, informou que não tinha o livro que eu buscava. Virei as costas, imaginando o alívio da funcionária em me ver ir embora. Agora ela podia voltar a sua preguiçosa solidão.
Em tempos idos, eu encontrava nas bibliotecas públicas um abrigo para meditar, planejar e fugir do mundo. Passeava pelas estantes como quem viajasse por outros mundos, tempos e realidades, memórias, histórias, uma lição de vida aqui, uma descoberta da crueldade humana ali, fantasias inúteis acolá. Devo às bibliotecas a minha formação. Fiz mestrado e doutorado passando tardes enfurnado na Mário de Andrade e no Arquivo do Estado. Anos atrás, as bibliotecas de bairro eram cheias. Os usuários se interessavam por cultura, e não apenas como uma ferramenta para subir na vida. Havia oficinas e debates. Os livros de poesia e os romances não paravam nas prateleiras. Agora os ácaros venceram os leitores.
Saí da biblioteca e me dirigi a uma lan house repleta de moleques e adultos, absortos em pesquisar, mandar emails etc. Pela internet, encontrei O touro negro, de Aluísio Azevedo, disponível em arquivo digital. E pensei: perto de uma lan house imunda como aquela, as poeirentas bibliotecas municipais lembram santuários abandonados. Não espanta que a prefeitura queira fechá-las. Elas não servem mais a ninguém. Nem mesmo a mim, que sempre as amei.

O passante que passa

A vida social a céu aberto está em extinção. Não exagero, porque numa megalópole como São Paulo a convívio, o espaço em que as pessoas se relacionam, já não se dá nas ruas.
Devo ser um dos últimos “flâneurs” desta cidade. Essa palavra francesa (“flâneur”) foi usada para designar o passeante, o sujeito do século XIX que andava com vagar, a observar a tipos urbanos, encantado pelas vitrines das lojas e engolfado pela multidão emergente. O surgimento de hábitos diferentes nas grandes cidades eletrizou escritores como Edgar Allan Poe em Nova York, Charles Baudelaire em Paris e até José de Alencar no Rio de Janeiro do Segundo Império. Nestes passeios meio cambaleantes pela guia das ruas, tento imitar os mestres e retratar São Paulo. Em geral, dou com os burros n’água.
Não há mais espaço civilizado para quem passeia nas ruas, ao menos por aqui. Em minhas excursões, tenho tropeçado nas calçadas, escorregado em lixo e visto coisas de dar dó ou medo. Caminhar a céu aberto virou ousadia. Os parques, por exemplo, viraram palcos de shos de malhação. Nos parques do Ibirapuera e Villa-Lobos, observo a ânsia lunática pelo desempenho atlético. Todo mundo corre, joga, sua, faz flexões, a pé, de bicicleta, patim ou patinete. Até os velhinhos trocaram o papo e a leitura do banco da praça pelo alongamento ou a fisioterapia. Todo mundo tem de ser saudável e belo. Que chatice!
Cansei de cruzar com gente musculosa de todas as idades e seus cães de raça. Nas ruas não há com quem puxar assunto. Já que não existe literalmente nada de novo sob o sol, tenho alterado meu trajeto tentado examinar os novos costumes nos locais em que a vida foi parar: lá dentro, nos shopping-centers. Posso dizer que há algo de novo sob a luz fluorescente: modas diferentes, gente que conversa, troca idéias e “fica”... sempre às pressas. É aos shoppings que se dirigem as multidões quando desejam se divertir. Elas têm necessidade de proteção, como um teto, um ar-condicionado e um monte de lojas, cinemas, cafés e restaurantes. Querem estar abrigadas no aconchego do consumo total. Alguém falou em cultura? Sinal dos tempos: os museus estão vazios, ao passo que as galerias dos shopping nunca estiveram tão lotadas.
O que um sujeito que gosta de caminhar e observar pode fazer? Circular por esses túneis de consumismo, contemplar as novas modalidades de beleza, os produtos e padrões de comportamento, ouvir o que e como falam. Passear pela velocidade, ver o efêmero escoar sem conseguir formular idéias. O “flâneur” de hoje se move dentro de infinitas paredes iluminadas. É ele próprio uma rápida passagem pelos eventos. Diferente de seus antecessores deslumbrados, ele se surpeende com o próprio desencanto diante do novo.