domingo, 22 de junho de 2008

Nina e eu

Cães não ensinam nada a ninguém. Por mais que os escritores de auto-ajuda vendam livros sobre como seus mascotes viraram gurus - é o caso de Marley & Eu, best-seller de John Grogan, e de tantos outros títulos.-, não consigo acreditar nessa balela. Ainda não inventaram um filósofo canino como Quincas Borba, o personagem de ficção de Machado de Assis. Os cães não conseguem elaborar raciocínios complexos e, por isso, nada podem auxiliar na formação de seus donos humanos – salvo os autores de auto-ajuda.
Os cachorros são obtusos, simpáticos, abanam o rabo e nada mais. O único problema é que a gente se apaixona por eles e passa a tratá-los como membros da família. Fazem parte da nossa história. Quem perdeu um amigo assim na infância sabe o quanto dói. Eu só não contava com uma dor igual agora, na maturidade.
Na segunda-feira, encontrei Nina estirada no piso da área de serviço. Estava morta. Tinha 15 anos e sofria de câncer de mama. Queríamos operá-la, mas, a conselho do veterinário, achamos melhor não arriscar e deixá-la viver até o fim. Tentei não me comover. Foi impossível. Na noite de domingo, ela ainda havia abanado o rabo para mim, embora estivesse sofrendo muito.
Nina era uma dachshund, um “salsicha” de pedigree. Ganhei-a ainda filhote, em 1993, presente de um amigo meu. Giulia, minha filha mais velha, tinha 1 ano quando ela chegou ao apartamento. E foi uma festa. Viraram, claro, grandes amigas: detonavam sofás, tapetes e o que estivesse pela frente. Precisávamos dar um quintal para as duas. As três, porque a Lorena já dava pontapés na barriga da minha mulher. Fomos então morar numa casa, e nasceu a Lorena. Nina deu um jeito de lamber o bebê no dia em que chegou do hospital. E as três cresceram juntas. Há seis anos, adotamos a Sissi, também salsicha, só que de cor clara. Formou-se o quarteto das bagunceiras.
Mas o tempo corre, e é mais rápido e impiedoso com os bichos. Enquanto minhas filhas ficaram adolescentes, Nina enfrentava os problemas da velhice... Andava devagar, tossia, não ouvia. Giulia chorou várias vezes multiplicando a idade de Nina por sete. Lorena agiu como enfermeira, e cuidou da amiguinha o quanto pôde. Elas tiraram lições da convivência? Claro, mas são menos lições dos animais do que da vida: carinho, solidariedade, finitude...
Agora as meninas estão lá fora, em lágrimas. Felizmente elas não seguiram a onda atual de descartar animais de estimação. E decidimos enterrar Nina no quintal. Pelo menos aqui em casa, o céu dos cachorros ainda existe.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Balões e o culto ao fogo

Joca era o apelido do baloeiro mais famoso da Vila Hamburguesa. Ele era filho de um eterno aspirante a vereador do bairro, aquele tipo que distribui caderno e lápis para os pobres no começo do ano letivo, faz churrasco, quebra galho no posto de saúde – e nunca se elege. Joca, mesmo assim, tinha status de autoridade e se achava acima do bem e do mal. Ele e seus amigos achavam que tinham carta branca para fazer o que quisessem. Para eles, no final do século passado, a supremo rebeldia era soltar balão em junho.
Praticamente incendiavam a praça à frente da minha casa. Armados de querosene, papel, gravetos, latas e o que mais fosse necessário, faziam o balão subir. E o bando de transgressores com causa seguia o balão aos gritos e gestos exagerados. Quando ia longe o balão, acompanhavam de carro e moto até onde fosse possível. Uma caça ao infinito. Os vizinhos se alarmavam, porque podiam ser atingidos. A polícia prendeu os caras várias vezes – e sempre o paizão ia lá para liberar o moleque. Hoje, o Joca virou pastor. +Anda tão devoto que até Deus duvida. Como baloeiro, era um gênio. Como ministro de Deus, bem.. Reinventou-se. Está na moda.
Os balões não combinam com o século 21. São resquícios do culto primitivo ao fogo, que resulta hoje na festa de São João. O Joca, por exemplo, trocou a veneração pagã do fogo pelo cristianismo pentecostal. Os tempos mudam, mas os balões seguem voando sobre a cidade, embora em menor número. A polícia persegue os baloeiros porque seus engenhos causam danos. Outro dia caiu um balão no Centro Cultural São Paulo e parte do prédio incendiou. Mas os baloerios resistem Formam uma espécie de religião – e teimam em cultuar o fogo.
Não quero fazer a apologia do crime, mas balões tem um quê de lirismo. Um balão que sobe – na Zona Leste, eles ainda brilham nos sábados – é uma lembrança do sonho do homem em voar, de ir até a Lua munido gravetos, fio e papel de seda. A abolição do balão está pondo fim à última utopia. Será que não existe um modo de aperfeiçoar os balões e torná-los seguros, como se deu com os fósforos no século retrasado? Balões que subissem ao céus como altares votivos, sem causar incêndio... São João, por favor, entre no circuito, reinvente o balão e faça o Joca voltar a pecar.