quarta-feira, 18 de abril de 2012

O pequeno grande mundo de J.K.Rowling

O romance adulto da “mãe” de Harry Potter é uma crítica de costumes – e Harry Potter pode ser lido como tal

LUÍS ANTÔNIO GIRON

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O romance adulto da “mãe” de Harry Potter é uma crítica de costumes – e Harry Potter pode ser lido como tal
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A escritora britânica J.K. Rowling está ficando previsível. A “mãe” de Harry Potter liberou o site Pottermore, um prolongamento digital e interativo do universo do bruxo, e anunciou que vai escrever uma enciclopédia sobre o mundo paralelo que criou – e, ao contrário da Enciclopédia Britannica, garanto que a Enciclopéda Harry Potter será publicada também em papel. Rowling divulgou o argumento do seu primeiro romance adulto, The casual vacancy, que estou traduzindo obrigatoriamente, vamos dizer assim, como A vaga ocasional. Vamos dizer assim porque nós, jornalistas, gostamos de praticar a autovacinação e prudentemente não se antecipar ao tradutor e a qualquer confronto. Um romance adulto poderia soar como algo imprevisível, em se tratando de uma autora que se consagrou nos livros infantojuvenis. Mas, salvo erro, sou capaz de antever e até resenhar de antemão o livro. Sim, jornalistas se vacinam, mas também são presunçosos. Praticamos a presunção imunizada. Quantos, por exemplo, necrológios não escrevemos de antemão? Não será incrível praticar a resenha sem a obra.

A vaga ocasional pode ser descrita uma sátira e uma crítica de costumes sobre a vida contemporânea, mergulhada na cobiça e na competição. No vilarejo inglês de Pagford, Rowling reproduz em escala miúda o que se passa no mundo. Nesse microcosmo, os vícios se tornam ainda mais risíveis. A morte prematura do dignitário da região, um certo Barry Fairweather, aos 40 anos, provoca no local uma onda de brigas, discussões e luta pelo poder que transforma a história em uma possibilidade para discorrer sobre a ambição mundana e apresentar uma galeria de personagens tragicômicos.  

A sátira é um gênero nascido na literatura greco-latina da Antiguidade que se adaptou bem à Inglaterra. Daniel Defoe, Hery Fielding, Thackeray e Evelyn Waugh praticaram-na com excelência – acrescentando-lhe doses generosas de falta de decoro. Há várias sátiras de microcosmo no romance inglês, e a gente pode até pensar em Jane Austen, hoje de volta à moda, como uma delicada satirista da vida campestre da Inglaterra do fim do século XVIII.  

Ora, J.K. Rowling é uma representante – e uma leitora – da tradição da sátira. Consigo imaginar a confusão que resultará da luta entre facções políticas em Pagford, e como ela irá representar a luta de classes à maneira britânica, ora disfarçada de bons modos, ora explícita e violenta. De alguma forma, a criptocrítica social pode ser detectada nos sete romances de Harry Potter, que, a bem da verdade, são mais bem construídos do que os oito longas-metragens no cinema. Harry é um personagem dickensiano, mas também alegoriza os conflitos morais e ideológicos da Europa atual. Rowling é uma discípula não declarada de Diana Wynne-Jones (1934-2011), a grande e hoje ignorada alegorista e satirista inglesa, autora da fábula O castelo animado – que ganhou em 2004 uma versão genial de Hayao Miyasaki - e da saga de Crestomanci, publicada coincidentemente em sete volumes entre 1977 e 1005, sobre o mágico que possui uma escola de magia e bruxaria. Em entrevista a ÉPOCA em 2006, Diana acusou Rowling de ter-se baseado na história e na estrutura da saga de Crestomanci para criar a de Harry Potter, sem citar a fonte. Tirstes águas passadas, mas que precisam ser mencionadas, até nunca há nada de novo sob o sol. Rowling, assim como Wynne-Jones, apresentam uma leitura distorcida e fantástica dos mitos europeus, colocando-os em confronto com a falta de crença do mundo atual. Elas provam, cada uma a seu modo, que a fantasia ainda é o alimento da alma - o único, aliás, recurso de fuga, caso você seja cético. A ausência de fé provocou o triunfo do gênero fantástico, e não apenas na literatura. Basta ver o sucesso de Senhor dos anéis e de Harry Potter no cinema, e de Game of thrones na televisão.

O romance adulto de Rowling deverá conter esse tipo de reflexão sobre a contemporaneidade laica e ateísta, como o fez em Harry Potter. O dado mais extraordinário na heptalogia potteriana repousa na meditação às ocultas sobre a descrença com a decadência do cristianismo. Não por nada, a Igreja Católica condenou o livro. O bruxo protagonista experimenta um rito gnóstico de passagem para a idade adulta – e aprende que a fantasia pode ser passada adiante, apesar de todo mal e a descrença do mundo de hoje. Uma meditação espiritual que certamente ela transpõe para o âmbito político em A vaga ocasional. No mundo real, adulto e cruel, a imaginação da escritora deve se confrontar com outros mistérios, ou a falta absoluta deles, a luta pela sobrevivência e a disputa por um poder que se revela, também ele, risível. Nesse ponto, o romance é parente de um satirista italiano, também ele influencado pela sátira menipeia greco-romana e as de Fielding e Defoe: Govanni Guareschi (1908-1968). Entre 1950 e 1968, Guareschi criou uma série de romances satíricos, ambientados no piccolo mondo de Dom Camilo, o pároco local, sempre às turras com o líder comunista Dom Peppone. A briga dos dois, ainda que engraçada e cheia de frases de efeito, oculta uma terrível luta de poder. Em jogo, o destino da Itália nos anos 50, entre cair na cruz da Igreja Católica e se encantar pela caldeirinha do Partido Comunista.

Pelas informações que Rowling divulgou por meio de sua editora, a trama de A vaga ocasional gira em torno desse tipo de oposição, entre um poder estabelecido e uma ambição de substituí-lo. O que estará em jogo? Certamente o conservadorismo versus o trabalhismo, o liberalismo contra o socialismo, a crença contra a razão. Pagford, o piccolo mondo de J.K.Rowling, promete ferver, e cozinhar em fogo lento todas as vaidades.

sábado, 14 de abril de 2012

Sai da frente!

Quem grava shows pelo celular deve levar multa por piratear e perturbar a ordem pública

Compareci a muitos shows nos dois dias do festival Lollapalooza. Nunca vi no Brasil um evento desse gênero tão organizado, todos os horários observados com rigor (exceto o show dos Racionais), com som quase perfeito e sem tumulto. Até a chuva colaborou e apareceu por pouco tempo ao cair da tarde de domingo. Nem parecia festival de rock. O Brasil está ingressando no primeiro mundo - ou, pelo menos, no primeiro mundo do show business. Como tal, o país agora precisa se preocupar com pragas evoluídas. E não há praga mais terrível que a turba de espectadores munida de telefones celulares que invade alegremente os shows decidida a gravar tudo o que se passa no palco, a despeito de quem possa estar atrás ou por perto. Cerca de um terço da plateia do Lollapalooza estava fotografando com flash e gravando os espetáculos, para desespero daqueles que ainda tentavam assistir aos seus ídolos ao vivo.

Antigamente a gente se incomodava com as meninas que subiam nos ombros dos marmanjos para ver melhor o show, prejudicando quem estava atrás. A gente suplicava “desce!” e o imbróglio se resolvia pela pressão social. Havia fotógrafos, mas eram tão poucos que nem atrapalhavam. Afinal, eram atitudes irracionais, como continuam sendo. Agora os celulares se unem com espírito de corporação e iluminam os momentos mais emotivos dos shows. Tudo ficou muito brilhante nos shows de estádio. Eu me lembro do tempo que a banda Queen veio tocar no Morumbi – em 1980 – e não havia telões e nem isqueiros. O povo manifestou suas emoções acendendo... cigarros. Era um lume bruxuleante que deixa saudades. Vi o Freddie Mercury muito de longe, mas até conseguia divisar seus movimentos, porque só o palco era realmente iluminado. Hoje tudo estoura em luz. Paciência, não há nada a fazer além de ligar o próprio celular e acompanhar a massa em seus rituais totêmicos. Mas o que fazer com os cidadãos que se tomam por discretos e filmam o show com calma e controle racional sobre o processo? Será lícito gritar “sai da frente”?

Não acho que seja a solução correta para o problema. Eu próprio já me meti em arranca-rabos inúteis por causa disso. Uma noite dessas, no show do Chico Buarque, os scorseses do celular ignoraram o pedido da casa de espetáculos de desligar aparelhos e se postaram de pé, acocorados em cima das mesas, apoiados na cabeça da mulher ou em algum cantinho do palco para registrar cada suspiro e movimentos no palco de Chico – bem raros, aliás -, sem deixar de cantar todas as músicas em coro. Eu me irritei com um casal de “cineastas” que registrava tudo. Durante os aplausos, os dois ligavam para um amigo para quem haviam passado os arquivos, e assim comentar o desempenho do músico. “Você viu o Chico? Que bacana quando ele samba, nossa!” Eles não se contentavam em gravar, atrapalhando os outros. Queriam passar adiante a gravação, e bater papo ao mesmo tempo. Pedi que maneirassem, mas eles eram viajados, e começaram a esbravejar e fazer caretas amedrontadoras, tipo cerimônia maori da Nova Zelândia. Tive de me resignar com a pajelança. Até porque os seguranças do local se solidarizaram com os cineastas de araque. Absurdo.

No festival Lollapalooza, não foi diferente. Só que a horda era maior, mais concentrada e fanática. Todos parecem ter virado repórteres de um momento histórico que, de fato, não estavam presenciando diretamente, e sim pela lente dos celulares. Vi várias pessoas gravando e cantando o show inteiro dos Foo Fighters, duas horas e meia de gritaria e guitarras distorcidas, só para postar os vídeos no YouTube na mesma noite. Os cronômetros dos celulares marcavam 80, 90 minutos de gravação contínua. O fato mais bizarro era que os scorseses de plantão filmavam o telão, porque o palco estava muito longe deles. Assim, participavam de uma gravação duplamente indireta do show transmitido pelos telões. Eu tentei reclamar do sujeito que gravava tudo com os braços levantados à minha frente, mas ele riu porque não estava nem aí.

Isso me faz pensar que as pessoas perderam a noção daquilo que acontece de fato ao vivo, em carne e osso. Não existe mais a sensação da presença de fato. A experiência presencial deu lugar à representação da representação digitalizada. Não importa estar simplesmente lá. É preciso estar lá, registrar, enviar às redes sociais e se exibir tudo para os amigos. O público se transformou em atração. Agora o público-artista tem de estar, gritar mais alto que os artistas e registrar o momento sob a espécie de uma frágil eternidade. Vale menos a presença que a postagem. Mesmo assim, trata-se de um registro precário que provavelmente logo se apagará dos discos rígidos e escapará da memória de quem fez e de quem viu. O espetáculo real ficou para trás, esquecido porque nem mesmo foi vivenciado como arte.

Público no show do Foo Fighters no festival Lollapalooza em São Paulo (Foto: Sidinei Lopes/ÉPOCA)

Pior mesmo foi quem, como eu, tentou ver o show sem nada nas mãos – e foi bloqueado e interrompido pela atividade de registrar insana dos outros. Dá vontade de levar um celular bem poderoso da próxima vez, atrapalhar os celulares alheios, berrar e brilhar mais que eles nas transmissões para o Facebook e Twitter.

O fenômeno de agitação frenética do registro em rede se dá no mundo inteiro. Ele invade as esferas públicas e privadas. Ainda não foram criados mecanismos legais de coerção para a nova manifestação de barbárie tecnológica. A única solução seria criar uma lei para punir e multar a turma do celular por pirataria, utilização indevida da imagem e do trabalho dos artistas (afinal, eles são distribuídos e divulgados por todos os meios de informação disponíveis) e perturbação da ordem pública. Poderia ser uma saída para rechaçar os vândalos vetar o porte de celulares em eventos artísticos, revistar quem chega e confiscar os aparelhos. Só assim o mundo da música ficaria melhor. Mas, a contar com a marcha da humanidade rumo ao cretinismo, isso não deverá ocorrer. 

O moto perpétuo de Paul

Paul McCartney completará 70 anos em 18 de junho. Apesar da idade, o astro inglês continua a fazer turnês e a emocionar um público cada vez mais numeroso, e jovem. O músico, a banda e a equipe, ao todo 95 pessoas, chegam ao Brasil na semana que vem para o show On the run. Ele estará no Estádio do Arruda, no Recife, nos dias 21 e 22, e no Estádio da Ressacada, em Florianópolis, no dia 25. É a terceira vez que Paul vem ao país em dois anos. No Recife, os 90 mil ingressos se esgotaram. De acordo com o empresário Luiz Oscar Niemeyer, que traz Paul ao Brasil há duas décadas, se houvesse mais espetáculos, as entradas acabariam em poucas horas. Não é privilégio do Brasil. A paixão pelo ex-beatle se mostrará de novo em 4 de junho, no Palácio de Buckingham, no espetáculo pelo jubileu de Elizabeth II. “Percebo que os mais novinhos estão ali, diante do palco, cantando todas as músicas e se emocionando”, disse Paul em entrevista exclusiva a ÉPOCA (leia na edição que chega às bancas nesta sexta-feira). “Não há mais conflito de gerações.” 

Há outros astros da geração de Paul que ainda atraem público. Nenhum se compara a ele. Seu companheiro de Beatles, o baterista Ringo Starr, tocou no Credicard Hall, em São Paulo, em novembro de 2011. O público era formado por saudosistas, com idade média de 40 anos. Os Rolling Stones são poderosos chamarizes – sobretudo para quem tem mais de 30 anos. Paul é capaz de arrastar famílias inteiras a suas apresentações; avós, pais e netos. “Os Rolling Stones atraem gente madura. Os jovens comparecem em peso às turnês do U2. Só o Paul atrai todas as faixas de idade”, diz o diretor de produção de On the run, Francisco Dourado – que montou palcos dos principais megaeventos que ocorreram no Brasil nos últimos anos.

Encher estádios não é problema para Paul desde 1960, quando se destacou como baixista dos Beatles. O quarteto de Liverpool foi pioneiro em cantar em estádios para dezenas de milhares de pessoas desde a primeira turnê pelos Estados Unidos, em 1964. Com a dissolução dos Beatles em 1970, Paul continuou por dez anos a fazer shows e a gravar discos de sucesso à frente da banda Wings. Em 1990, após uma pausa de nove anos, apostou na carreira solo. Assumiu, então, a herança do cancioneiro dos Beatles. Seu show atual compreende 30 músicas e dura três horas e meia. Canta os clássicos do grupo de Liverpool, mas também lança canções – como “My Valentine”, do CDKisses on the bottom (2011). “Na turnê passada, mais da metade dos 450 mil ingressos foi de meia-entrada”, diz Niemeyer. “Isso mostra que o público de Paul é, em sua maioria, jovem. O mesmo perfil se repete nesta excursão.”

Na entrevista exclusiva que concedeu a ÉPOCA, Paul se diz realizado por reunir famílias com sua música. Para ele, cantar em estádios no Brasil é a continuação real do sonho dos Beatles. E revela um desejo: "Quero me encontrar com músicos brasileiros para gravar bossa nova". 

sábado, 7 de abril de 2012

Lollapalooza, tão organizado que nem parece festival de rock

O primeiro dia do festival de rock Lollapalooza contou com uma audiência de 75 mil pessoas, que lotaram o prado do Jockey Club de São Paulo, de acordo com a produção do espetáculo. O evento se iniciou na manhã de sábado, e terminou antes da meia-noite. Foi certamente o espetáculo desse porte mais organizado da história de São Paulo, tão organizado que nem parecia um festival de rock. A “vibe” foi tão sossegada que as crianças conseguiram fugir do Kidzpalooza (a parte do festival dedicada aos baixinhos) e se juntaram aos adultos para assistir aos excelentes shows de Joan Jett and the Blackhearts e Foo Fighters. Até as habituais emanações de maconha se revelaram escassas dessa vez, devido quem sabe ao policiamento ostensivo do local. Prevaleceram a pontualidade das apresentações e a música, beneficiada por equipamentos de som poderosos e nítidos.

Não houve nem mesmo surpresas. As bandas brasileiras ficaram em segundo plano. Marcelo Nova mostra que Raul Seixas está cada vez mais parecido com ele, com um show arcaizante. O Rappa aterrissou sabe-se lá de onde, e não foi possível entender uma única palavra do vocalista e compositor Falcão, o que fez muitos perguntarem: “Afinal, sobre o quê é o Rappa?” Eu ainda não descobri a que vem a banda, e já fazem tantos anos que ela está por aí. A banda americana Cage de Elephant explorou a histeria de seu vocalista, Matt Shultz, uma espécie de Axl Rose de fraldas descartáveis. No final, depois de uma sequência de moshings, ele saltou nos braços de um público perplexo, que não sabia o que fazer com o sujeito, mais ou menos como Jeff Black no filme A escola do rock. A banda nova-iorquina TV on the Radio impressionou com a mistura de heavy metal com rhythm-n-blues. E Band of Horses agradou pelo clima retrô que criou num raio de poucos metros em torno dela, já que não foi ouvida lá no fundo.

Os melhores espetáculos da noite ficaram a cargo de Joan Jett & The Blackhearts e Foo Fighters. Joan Jett entoou os velhos hinos da rebeldia punk – que saudades deu ouvir “Cherry bomb” e “I love rock’n’roll” -, acompanhada pela velha parede sonora do punk de primeira geração. Depois ela voltaria para repetir “I love rock’n’roll” com Dave Grohl no ápice da noite, proporcionado pelos Foo Fighters. Grohl tocou todos os sucessos da banda, e parecia ainda mais entusiasmado do que o público já no... nirvana. Aliás, fica a questão: por que Grohl convidou tantos sósias do Kurt Cobain para tocar em seu conjunto? A certa altura do espetáculo, ele voltou à bateria – como na época do Nirvana – e deu lugar ao baterista, uma espécie de filho de Cobain. Foi amedrontador. Mas o show valeu por si só, pelo peso das guitarras e a crença que Grohl carrega em seu canto e seus gestos.

Dizem que Dave Grohl é o novo salvador do rock. Tenho minhas dúvidas. Eu não fui salvo, mas, mesmo assim, curti a noite.

terça-feira, 3 de abril de 2012

O culto ao fogo

O culto ao fogo

 

Joca era o apelido do baloeiro mais famoso da Vila Hamburguesa. Ele era filho de um eterno aspirante a vereador do bairro, aquele tipo que distribui caderno e lápis para os pobres no começo do ano letivo, faz churrasco, quebra galho no posto de saúde – e nunca se elege. Joca, mesmo assim, tinha status de autoridade e se achava acima do bem e do mal. Ele e seus amigos achavam que tinham carta branca para fazer o que quisessem. Para eles, no final do século passado, a supremo rebeldia era soltar balão em junho.

 Praticamente incendiavam a praça à frente da minha casa. Armados de querosene, papel, gravetos, latas e o que mais fosse necessário, faziam o balão subir. E o bando de transgressores com causa seguia o balão aos gritos e gestos exagerados. Quando ia longe o balão, acompanhavam de carro e moto até onde fosse possível. Uma caça ao infinito. Os vizinhos se alarmavam, porque podiam ser atingidos. A polícia prendeu os caras várias vezes – e sempre o paizão ia lá para liberar o moleque. Hoje, o Joca virou pastor. +Anda tão devoto que até Deus duvida. Como baloeiro, era um gênio. Como ministro de Deus, bem.. Reinventou-se. Está na moda.

Os balões não combinam com o século 21. São resquícios do culto primitivo ao fogo, que resulta hoje na festa de São João. O Joca, por exemplo, trocou a veneração pagã do fogo pelo cristianismo pentecostal. Os tempos mudam, mas os balões seguem voando sobre a cidade, embora em menor número. A polícia persegue os baloeiros porque seus engenhos causam danos. Outro dia caiu um balão no Centro Cultural São Paulo e parte do prédio incendiou. Mas os baloerios resistem Formam uma espécie de religião – e teimam em cultuar o fogo. 

Não quero fazer a apologia do crime, mas balões tem um quê de lirismo. Um balão que sobe – na Zona Leste, eles ainda brilham nos sábados – é uma lembrança do sonho do homem em voar, de ir até a  Lua munido gravetos, fio e papel de seda. A abolição do balão está pondo fim à última utopia. Será que não existe um modo de aperfeiçoar os balões e torná-los seguros, como se deu com os fósforos no século retrasado? Balões que subissem ao céus como altares votivos, sem causar incêndio... São João, por favor, entre no circuito, reinvente o balão e faça o Joca voltar a pecar.

Guimarães Rosa e o romance fundador

Na cultura brasileira, a única certeza reside na efeméride. Comemorar o passado é o que resta, já que nada pode ser previsto, salvo meia dúzia de projetos aprovados com verbas de renúncia fiscal e a agenda de espetáculos. A coincidência decimal de datas faz com que a gente se lembre do que vale a pena. Neste ano, é festejado o cinqüentenário do romance Grande Sertão: Veredas, do escritor mineiro João Guimarães Rosa.

O livro, publicado originalmente em maio de 1956 pela editora José Olympio, será reeditado em volume luxuoso pela Nova Fronteira, as universidades se agitam com novas pesquisas e visões sobre o tema e, em fevereiro, o Museu da Língua Portuguesa foi inaugurado em São Paulo, com sede na Estação da Luz, com uma exposição sobre o romance, na qual o público pode ler em painéis cada uma de suas 600 páginas. Será que finalmente a ficção renovadora de Guimarães Rosa será popularizada? Os brasileiros estão preparados para converter Grande Sertão: Veredas em best-seller real? Qual a lição guardada nesse livro?
Não se pode acusar Guimarães Rosa (Cordisburgo, 27 de junho de 1908-Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1967) de mau vendedor. Afinal, Grande Sertão: Veredas está perto da trigésima edição. O que significa que, desde 1956, ele já vendeu perto de 150 mil exemplares. Para os padrões de hoje, a cifra não é insignificante, embora não caracterize um blockbuster. Um livro de Lya Luft – Perdas e Ganhos, de 2003 – vendeu 190 mil exemplares nas primeiras semanas. Sem contar os 40 milhões de livros vendidos por Paulo Coelho, o maior vendedor da história da literatura brasileira. Além disso, se fosse levado em conta o coeficiente de leitura do brasileiro, poucas obras escapam da amnésia coletiva. Quantos de fato leram de cabo a rabo a narrativa do jagunço Riobaldo? Desses letrados, quantos de fato lograram entender a totalidade da mensagem rosiana?
O fato é que pouca gente assimilou o componente experimental de Guimarães Rosa. Talvez tenha chegado o momento de compreendê-lo. Este ano marca também os 60 anos da estréia literária do escritor, com a coletânea de contos Sagarana, e os 50 de outra reunião não menos célebre, Corpo de Baile. Porque em 1956 Rosa teve o desplante de lançar duas obras-primas. Uma delas se ofuscou, por motivos óbvios.
Grande Sertão: Veredas é uma obra monumental, epopéia protagonizada por um fora-da-lei – o cangaceiro Riobaldo – que erra pelos sertões em busca de si próprio, do poder e do amor. Associa-se a bandos de jagunços, faz um pacto com o diabo para assumir a liderança de uma quadrilha, apaixona-se pela figura sexualmente ambígua do jagunço Diadorim, e conta suas aventuras. É no contar que tudo começa e faz sentido.
O romance é formatado inteiramente a partir da linguagem. É ela que dá vazão às ações e justifica as façanhas dos jagunços contra o governo, num tempo indeterminado (talvez em 1930, época do esplendor do cangaço) e num espaço aparentemente definido na fronteira, os Campos Gerais – entre Minas Gerais, Bahia e Goiás. Essa região, porém, se estilhaça pela força da imaginação à medida que a narrativa se arrasta, convertendo geografia em fantasia, aventura terrena em fábula e busca metafísica. Uma escrita “transrealista”, nos dizeres de Tristão de Athayde. Uma errância em forma de ficção.
O espaço-tempo em que o livro se passa é o sertão. Mas não o sertão circunscrito cientificamente por um Euclydes da Cunha em Os Sertões (1902) – livro que serviu como inspiração para Guimarães Rosa. O sertão de Rosa é um território mítico. Como diz Riobaldo, conversando com um abstrato “doutô” da cidade (o “doutô” se afigura como o leitor do futuro): “O sertão é e não é”. Ou: “O sertão está em toda parte”. Imagem da vida, o sertão é o local dos perigos da travessia humana: “O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é o que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca”.
Riobaldo ensina que viver se confunde com aprender a viver. Viver é o mesmo que escrever, contar a história de uma busca de sentido – de um sentido que escapa a cada página, como se a fronteira do sertão estivesse no nada. A constatação de que não existe nem Deus nem Diabo, de que o homem se encontra perdido no meio do deserto, é a grande lição desse épico. Sem alternativa de pactos com o além ou a providência divina, sobra ao homem-narrador se apossar da própria existência e seguir sozinho a travessia sem eira nem beira.
Para resgatar algum sentido, o narrador-jagunço lança mão de um tom que mescla romance moderno, cavalaria e cordel. Como observou o crítico Bernardo Gersen, a técnica rosiana pode ser definida como de “rédea-solta”. Dá livre curso à imaginação, numa versão tropical da corrente de consciência (stream of consciousness), do romance Ulisses (1922), do irlandês James Joyce. Curiosamente, a questão joyceana, tão comentada no mundo literário de língua inglesa, se parece muito com a questão rosiana: a criação de uma obra narrativa capaz de alterar os horizontes literários e ser, ao mesmo tempo, avessa à leitura superficial, a ponto de muitos leitores confundirem invenção de linguagem com mero pedantismo.
O livro de Rosa é salpicado por momentos poéticos: os versos, as palavras-valises, neologismos e falas populares emergem do fluxo da trama, como levados por uma correnteza inevitável. O livro, como a vida do herói, é dividido pelos dois lados do rio São Francisco: “Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão”.
O rio que se ergue como uma muralha de madeira no horizonte árido isola, blinda a mitologia sertaneja do resto do Brasil. A fronteira geográfica está na imaginação. E hoje, o que resta do sertão de Guimarães Rosa refluiu para a palavra impressa. O escritor conseguiu sair de si mesmo e forjar uma obra de arte superior. Seria conhecido caso não tivesse escrito o romance, mas Grande Sertão o elevou à condição de autor canônico da língua portuguesa.
Livro fundador do olhar moderno no romance brasileiro, Grande Sertão: Veredas merece ser relido. A cada releitura, esconde-se uma surpresa nas veredas urdidas por Riobaldo. E o melhor é se deixar levar pelo narrador. A leitura tem de assumir a rédea-solta para ganhar graça. Ainda bem que existe Grande Sertão: Veredas para dar sentido a um ano.

Adoráveis pervertidas

Carminha, de Avenida Brasil, reaviva a paixão do público pelas vilãs da televisão

       
        Carminha criou-se em um lixão e aprendeu com a vida que é preciso enganar, maltratar, mentir, trair e se fingir de boazinha para subir. E o crime parece que vai compensar por muito tempo, porque tudo o que ela faz rende dividendos imediatos: da noite para o dia, ela se casa com o craque Tufão (Murilo Benício), torna-se rica e famosa. A personagem interpretada por Adriana Esteves de Avenida Brasil, a nova novela das nove da noite da TV Globo, encantou o Brasil nas duas semanas que o novo trabalho de João Emanuel Carneiro está no ar. Carminha vai se dar mal no final, mas não tanto. No final, só ela e sua inimiga, a filha adotiva e abandonada Nina (Débora Falabella), serão lembradas. Assim como na novela anterior, Fina estampa, de Aguinaldo Silva, só vai restar o catálogo de perversidades cometido por Teresa Cristina (Christiane Torloni), a socialite sinistra que era capaz de tudo para se manter sabe-se lá onde. Carminha é mais má e mais sutil que sua antecedente. Ela dissimula, compõe uma expressão de santa e vítima capaz de revoltar qualquer um - e de arrebatar.

Antes de Carminha e Teresa Cristina, fizeram história várias outras grandes canalhas, forjadas pelos novelistas da Globo. Se a gente pudesse assistir às novelas uma emendada à outra, como se formassem uma obra só, constataria que o universo das novelas é dominado por vilãs muito diferente umas das outras, que atormentam personagens bonzinhos muito parecidos uns com os outros. As histórias são sempre uma apenas, feita de amores, obstáculos, idas, voltas, reviravoltas, mortes e superações. Os enredos são tão longos e rebarbativos que se confundem com as próprias vidas dos espectadores. Há muito tempo é assim: os bons são chatos; as vilãs, sedutoras forças motrizes das ações.

Escolha sua malvada predileta entre as que consigo lembrar, sem deixar de imaginar que elas compõe uma única novela: Odette Roitman (Beatriz Segall) em Vale Tudo(1988-1989), de Gilberto Braga; Perpétua (Joana Fomm) em Tieta(1989-1990), adaptação de Aguinaldo Silva; Raquel (Glória Pires), Mulheres de areia(1993), de Ivani Ribeiro; Laura (Claudia Abreu) em Celebridade (2003-2004), de Gilberto Braga;  Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) em Senhora do destino(2004-2005), de Aguinaldo Silva; Bia Falcão (Fernanda Montenegro) em Belíssima(2005-2006), de Silvio de Abreu; e finalmente Flora (Patrícia Pillar), A Favorita (2008-2009), do mesmo João Emanuel Carneiro de Avenida Brasil. Todas elas - observadas as diferenças de grau de maldade e de verossimilhança – são perversas, inescrupulosas, desprezíveis, imorais e, não raro, assassinas hediondas. Mesmo assim, apaixonam, suscitam discussões em toda parte e fazem história, como faz Carminha agora. Não vale a pena saber por quê.

        Seria ocioso refletir sobre as razões que levam o público a venerar as vilãs de telenovela. Afinal, já vão distantes os tempos das mocinhas românticas cujos amores eletrizavam as multidões, arrastando milhões às lágrimas. As bandidas eram derrotadas naequeles tempos. Há já muito tempo as vilãs prendem a audiência e apaixonam o Brasil. Novelas são dirigidas às mulheres – e elas são supostamente as melhores juízas (ou vítimas) do assunto. As espectadoras costumam dizer que as vilãs as surpreendem e as arrancam do tédio e da monotonia de suas vidas, fazem-nas tremer no sofá e até as inspiram, nem que seja talvez às avessas, pelo repúdio que provocam. As vilãs desautomatizam o cotidiano de um público acorrentado à mediocridade e às obrigações. Com seus vícios e transgressões, elas provocam uma espécie de identificação desviantes nas espectadoras. Assim como na Antiguidade os heróis figuravam modelos edificantes a ser imitados, atualmente os antagonistas fornecem escapismo à repressão e ao controle institucional, ambos disfarçados de consumismo, a que todos estamos submetidos. Ora, isso tudo é conhecido.

O que me parece mais interessante questionar é a dose de perversidade utilizada hoje pelos autores de novelas, fazendo com que muitos personagens se despreguem de qualquer critério de verossimilhança e atinjam as raias do grotesco e do improvável. Os avanços em ousadia dos autores servem aos anseios de um público sedento de emoções cada vez mais fortes, de temperos cada vez mais fortes – como diria Stendhal quando descreveu a progressão dos efeitos na ópera. As novelas, óperas populares da classe C brasileira, já abusam do palavrão e da escatologia, do sexo e da violência.

Isso quer dizer que o espetáculo do Mal faz bem à alma? Parece que sim. As más ações se converteram na forma mais eficiente da catarse das paixões. Nos tempo idos, a tragédia provocava horror e compaixão e a comédia, o desprezo e o riso. Hoje os roteiros de filmes e novelas de televisão geram uma mistura de alívio e desprezo; alívio por não estar em situação de perigo e desprezo pelo semelhante. Daí as vilãs representarem o pináculo da eficácia proporcionada pela perversidade. Só assim, acreditam os teledramaturgos, é possível sacudir e provocar o público. 

No entanto o motivo de os autores lançarem mão de novos níveis de crueldade e perversão é que as vilãs fazem cortinas de fumaça à mediocridade e mesmo à ausência de consistência ou lógica exibidas em grande parte das tramas. As vilãs da velha guarda faziam parte de um entrecho, eram peças que se encaixavam na ação, caracteres que levavam à conclusão lógica ou absurda de uma história projetada. Odete Roitman, por exemplo, era uma personagem com força trágica porque, de vilã, torna-se vítima e pivô de um mistériof. Já não se fazem perversos como antigamente. Atualmente, a maioria das novelas desanda da metade para o final, mesmo que os autores e suas equipes encham todas as linguiças possíveis e imagináveis a fim de preencher o horário e a vida das espectadoras. As vilãs, mesmo que de araque, seguram o enredo, movido pelos crimes que elas podem cometer e a expectativa que podem criar. O problema é a falta de coerência e coesão das tramas. Os autores de novela são presunçosos. Eles acreditam que cada brasileira é uma Lucrécia Borgia em potencial.