Carminha, de Avenida Brasil, reaviva a paixão do público pelas vilãs da televisão
Carminha criou-se em um lixão e aprendeu com a vida que é preciso enganar, maltratar, mentir, trair e se fingir de boazinha para subir. E o crime parece que vai compensar por muito tempo, porque tudo o que ela faz rende dividendos imediatos: da noite para o dia, ela se casa com o craque Tufão (Murilo Benício), torna-se rica e famosa. A personagem interpretada por Adriana Esteves de Avenida Brasil, a nova novela das nove da noite da TV Globo, encantou o Brasil nas duas semanas que o novo trabalho de João Emanuel Carneiro está no ar. Carminha vai se dar mal no final, mas não tanto. No final, só ela e sua inimiga, a filha adotiva e abandonada Nina (Débora Falabella), serão lembradas. Assim como na novela anterior, Fina estampa, de Aguinaldo Silva, só vai restar o catálogo de perversidades cometido por Teresa Cristina (Christiane Torloni), a socialite sinistra que era capaz de tudo para se manter sabe-se lá onde. Carminha é mais má e mais sutil que sua antecedente. Ela dissimula, compõe uma expressão de santa e vítima capaz de revoltar qualquer um - e de arrebatar.
Antes de Carminha e Teresa Cristina, fizeram história várias outras grandes canalhas, forjadas pelos novelistas da Globo. Se a gente pudesse assistir às novelas uma emendada à outra, como se formassem uma obra só, constataria que o universo das novelas é dominado por vilãs muito diferente umas das outras, que atormentam personagens bonzinhos muito parecidos uns com os outros. As histórias são sempre uma apenas, feita de amores, obstáculos, idas, voltas, reviravoltas, mortes e superações. Os enredos são tão longos e rebarbativos que se confundem com as próprias vidas dos espectadores. Há muito tempo é assim: os bons são chatos; as vilãs, sedutoras forças motrizes das ações.
Escolha sua malvada predileta entre as que consigo lembrar, sem deixar de imaginar que elas compõe uma única novela: Odette Roitman (Beatriz Segall) em Vale Tudo(1988-1989), de Gilberto Braga; Perpétua (Joana Fomm) em Tieta(1989-1990), adaptação de Aguinaldo Silva; Raquel (Glória Pires), Mulheres de areia(1993), de Ivani Ribeiro; Laura (Claudia Abreu) em Celebridade (2003-2004), de Gilberto Braga; Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) em Senhora do destino(2004-2005), de Aguinaldo Silva; Bia Falcão (Fernanda Montenegro) em Belíssima(2005-2006), de Silvio de Abreu; e finalmente Flora (Patrícia Pillar), A Favorita (2008-2009), do mesmo João Emanuel Carneiro de Avenida Brasil. Todas elas - observadas as diferenças de grau de maldade e de verossimilhança – são perversas, inescrupulosas, desprezíveis, imorais e, não raro, assassinas hediondas. Mesmo assim, apaixonam, suscitam discussões em toda parte e fazem história, como faz Carminha agora. Não vale a pena saber por quê.
Seria ocioso refletir sobre as razões que levam o público a venerar as vilãs de telenovela. Afinal, já vão distantes os tempos das mocinhas românticas cujos amores eletrizavam as multidões, arrastando milhões às lágrimas. As bandidas eram derrotadas naequeles tempos. Há já muito tempo as vilãs prendem a audiência e apaixonam o Brasil. Novelas são dirigidas às mulheres – e elas são supostamente as melhores juízas (ou vítimas) do assunto. As espectadoras costumam dizer que as vilãs as surpreendem e as arrancam do tédio e da monotonia de suas vidas, fazem-nas tremer no sofá e até as inspiram, nem que seja talvez às avessas, pelo repúdio que provocam. As vilãs desautomatizam o cotidiano de um público acorrentado à mediocridade e às obrigações. Com seus vícios e transgressões, elas provocam uma espécie de identificação desviantes nas espectadoras. Assim como na Antiguidade os heróis figuravam modelos edificantes a ser imitados, atualmente os antagonistas fornecem escapismo à repressão e ao controle institucional, ambos disfarçados de consumismo, a que todos estamos submetidos. Ora, isso tudo é conhecido.
O que me parece mais interessante questionar é a dose de perversidade utilizada hoje pelos autores de novelas, fazendo com que muitos personagens se despreguem de qualquer critério de verossimilhança e atinjam as raias do grotesco e do improvável. Os avanços em ousadia dos autores servem aos anseios de um público sedento de emoções cada vez mais fortes, de temperos cada vez mais fortes – como diria Stendhal quando descreveu a progressão dos efeitos na ópera. As novelas, óperas populares da classe C brasileira, já abusam do palavrão e da escatologia, do sexo e da violência.
Isso quer dizer que o espetáculo do Mal faz bem à alma? Parece que sim. As más ações se converteram na forma mais eficiente da catarse das paixões. Nos tempo idos, a tragédia provocava horror e compaixão e a comédia, o desprezo e o riso. Hoje os roteiros de filmes e novelas de televisão geram uma mistura de alívio e desprezo; alívio por não estar em situação de perigo e desprezo pelo semelhante. Daí as vilãs representarem o pináculo da eficácia proporcionada pela perversidade. Só assim, acreditam os teledramaturgos, é possível sacudir e provocar o público.
No entanto o motivo de os autores lançarem mão de novos níveis de crueldade e perversão é que as vilãs fazem cortinas de fumaça à mediocridade e mesmo à ausência de consistência ou lógica exibidas em grande parte das tramas. As vilãs da velha guarda faziam parte de um entrecho, eram peças que se encaixavam na ação, caracteres que levavam à conclusão lógica ou absurda de uma história projetada. Odete Roitman, por exemplo, era uma personagem com força trágica porque, de vilã, torna-se vítima e pivô de um mistériof. Já não se fazem perversos como antigamente. Atualmente, a maioria das novelas desanda da metade para o final, mesmo que os autores e suas equipes encham todas as linguiças possíveis e imagináveis a fim de preencher o horário e a vida das espectadoras. As vilãs, mesmo que de araque, seguram o enredo, movido pelos crimes que elas podem cometer e a expectativa que podem criar. O problema é a falta de coerência e coesão das tramas. Os autores de novela são presunçosos. Eles acreditam que cada brasileira é uma Lucrécia Borgia em potencial.
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