terça-feira, 16 de agosto de 2011

[Do Giron] Nássara, o chargista da canção

LAGiron


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From: LAG <lagijor@gmail.com>
Date: 16 de agosto de 2011 18h52min01s BRT
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Subject: [Do Giron] Nássara, o chargista da canção

Existem compositores que vivem de parcerias, e passam pela história da música como figuras secundárias. Este poderia ter o caso do carioca Antonio Nássara. Não fosse ele um artista refinado, capaz de desenhar como escrever cenas e perfis em versos cômicos, ele talvez tivesse passado em branco na história da época de ouro da música brasileira, que foi dos anos 20 aos 40. No entanto, Nássara emprestou seu talento aos parceiros e marcou seu tempo com grandes sucessos carnavalescos, nas vozes dos maiores cantores daquela época áurea à qual os historiógrafos se referem com nostalgia. Nássara se destacou entre os nomes de maior renome de um tempo em que não era fácil brilhar. Pois ele fez amizade e obteve sucessos por meio de cantores como Carmen Miranda, Francisco Alves, Mário Reis, Déo, Silvio Caldas, Orlando Silva, Carlos Galhardo, a dupla Joel & Gaúcho, gente que fazia sucesso no carnaval.


A personalidade dupla do artista causou um problema à posteridade. Isso porque a especialização dos seus biógrafos resultou em perfis limitados e redutores de Nássara. As biografias de Cassio Loredano e de Isabel Lustosa se centraram em explicar o caricaturista. O legado musical ficou de lado. O músico e pesquisador carioca Carlos Didier preenche o vazio com Nássara passado a limpo (José Olympio Editora, 252 páginas), abordando o artista em sua multiplicidade de aspectos: o desenhista, o diagramador, o letrista de Carnaval, o cantor de um disco só, o locutor, o boêmio irônico e escorregadio. O fio condutor do texto está no nexo entre o artista genial do traço e o compositor de canções que se tornaram clássicas. O livro se baseia nas dezenas de depoimentos e conversas que Didier e Nássara mantiveram ao longo de 20 anos de amizade. É dividido em 65 capítulos curtos – na verdade, crônicas fragmentárias que montam um quadro completo ao final - e traz a musicografia completa de Nássara. Pela primeira vez, é possível entender sua herança artística.

Isso me leva a dizer algo pode soar lugar comum; mas, no caso de Nássara, vale a pena arriscar: o artista transferiu o seu traço mínimo à música. Ele fundou uma escola que alguns denominam “minimalista”. É uma tarja um tanto simplista. Talvez um termo mais preciso seria “esquemática”, mas também incorre em generalização, já que toda charge e toda caricatura se fazem no esquematismo do aspecto físico de uma pessoa conhecida. Nássara foi além, elaborando uma abstração do indivíduo, como se pudesse captar a superfície reveladora de sua essência. E seu futuro. Um exemplo: aos vinte e poucos anos, ele caricaturizou o cantor Almirante, líder do Bando de Tangarás, como uma águia de olhar maligno. Na época, no início dos anos 30, Nássara e Almirante se davam até que razoavelmente bem. Com o passar do tempo e a importância crescente da pesquisa de música popular, Almirante passou a organizar um acervo sonoro e de partituras. Nos anos 60, sua coleção serviria como base para o Museu da Imagem e do Som (MIS), do Rio de Janeiro. Havia pelo menos dois lados no ímpeto organizador: sistematizar o conhecimento da música popular para as futuras gerações, mas também dominá-la. Almirante era não apenas ciosos, como excessivamente apegado a seu acervo. Ele próprio encarnou o acervo, quando parou de cantar. Nássara, um tipo boêmio e desinteressado em posses, desentendeu-se por algum motivo não revelado com Almirante, provavelmente um assunto referente ao famoso acervo, e, na idade madura, passou a enxergar no arquivista aquela águia que ele havia desenhado quando jovem. Foi um profeta do traço, vamos dizer assim. Ele definia seu método como “mentalização”: quando queria retratar um personagem, não se baseava em uma fotografia. Fechava os olhos e fazia uma imagem mental de seu modelo. Atingia, assim, em traços muito simples, a estrutura da personalidade do retratado. Como definiu seu colega Millôr Fernandes, Nássara foi o “Mondrian do portrait-charge”. Assim como foi o grande caricaturista do seu tempo, Nássara pode ser considerado o mestre da charge sonora. Chegou mais fundo na experiência visual, com suas radiografias em preto e branco da alma das pessoas e das situações. Mas na música não deixou de fazer também história. Se no desenho ele captava a estrutura, na música ele recuava ao método mais pueril da paródia. Ora, ser “pueril” não é exatamente um defeito em música popular. Antes pelo contrário...

Antônio Gabriel Nássara nasceu em 12/11/1909 no Rio de Janeiro, filho dos libaneses Gabriel Jorge Nássara e Uahyba Dahio. A família mantinha um armarinho em São Cristóvão. Eram em sete irmãos. Antonio fazia entrega de artigos e tomava conta do caixa da empresa. A família se mudou para o bairro de Vila Isabel, reduto da boêmia carioca, quando Antonio tinha 12 anos. Morava quase na frente da casa de Noel Rosa, de quem se tornaria amigo. Ainda criança, mostrou talento para o desenho e a folia. Estudou na Escola Nacional de Belas Artes e estreou no jornalismo gráfico e na composição carnavalesca praticamente ao mesmo tempo: em 1929. Como informa Didier, três caricaturas de sua autoria foram publicadas em O Globo: as de três políticos da revolução de 1930: o deputado gaúcho João Neves da Fontoura, o líder paraibano Epitácio Pessoa e do mineiro Francisco de Mello Viana, vice-presidente da República. Ao mesmo tempo, formou o grupo da ENB, a Escola Nacional de Belas Artes. Os colegas que formaram o grupo, além de Nássara eram Manuelino Xavier, Barata e Jaime Ruy Martinez, o J. Rui. Nássara entrava com as composições, a voz e a percussão. O grupo logo se associou ao cantor Luiz Barbosa.

Em 1931, Nássara se empregou como locutor do Programa Casé, da rádio Philips, e gravou um disco pela Parlophon, com as músicas “Mal de fome”, e “O sem trabalho”, ambas paródias com o acompanhamento ao piano de Henrique Vogeler. Ele adotou o pseudônimo de Luiz Antonio em homenagem ao avô Antonio e ao amigo e ídolo Luiz Barbosa, o rei do breque e da bossa. “Mal de fome”, parceria com o amigo de infância e companheiro do bloco Faz Vergonha, Armando Reis, ou, como seria conhecido nacionalmente, Cristóvão de Alencar, era um paródia de “Mon ideal”, um sucesso do cantor francês Maurice Chevalier. “Mal de fome”, de acordo com Carlos Didier, foi uma composição de Noel Rosa, cantada por Nássara, ou melhor, Luiz Antonio.

Ainda em 1931, uma composição de sua autoria estreou na voz de seu futuro desafeto Almirante, à frente do Bando de Tangarás. Era “Para o samba entrar no céu”, uma parceria com J. Ruy. A música foi lançada em 16 de outubro daquele ano e marcava a estreia de Nássara no método que lhe daria fama: o de usar trechos de canções famosas para criar paródias. Tratava-se de uma colagem do samba “Batucada”, de Eduardo Souto e Braguinha, e outras canções de carnaval. Confortável no terreno da paródia, não foi difícil a Nássara fazer jingles. E jingles geniais, como “Caixa Econômica”. Esse grande samba de bossa, interpretado infernalmente por João Petra e Luiz Barbosa, no disco Victor lançado em 1933, foi composto por Nássara e Orestes Barbosa para ser um jingle da Caixa Econômica Federal. No acompanhamento, o próprio Luiz tocava percussão no chapéu de palha, e Custódio Mesquita impunha mais síncopes ao piano. No dia seguinte da gravação, 26 de julho de 1933, Orestes Barbosa puxou a brasa para sua sardinha na coluna Rádio do jornal A Hora: “Luiz Barbosa e João Petra de Barros com Custódio Mesquita ao piano, gravaram, ontem, na Victor, o samba ‘Caixa Econômica’ de Orestes e Nássara. A prova revelou o esmero desses três aplaudidos vultos do disco nacional.” Assim falou Orestes. Pela música, ele e Nássara ganharam 5 mil réis. Custódio, que era rico, não quis receber nada. O prêmio de Custódio foi a glória eterna de uma gravação tão incrível que não parece nem de longe um jingle. Um “antijingle”, como definiu Didier.

A arte sonora – em letra e melodia – de Nássara é sutil. O caricaturista não deixa de ser, no fundo, um retratista. E foi assim que, com a delicadeza de um pintor de miniaturas, que Nássara compôs a marcha “Formosa”, os eu primeiro grande sucesso carnavalesco. A música brilhou no penúltimo disco dentre os 12 lançados pela dupla Francisco Alves e Mário Reis para a gravadora Odeon. O duo gravou de setembro de 1930 a dezembro de 1921. Foram 12 discos, com 24 músicas. “Formosa” saiu em disco com “Primeiro amor”, de Noel Rosa e Ernani Silva. Depois de “Formosa”, a dupla ainda lançaria uma bolacha de 78 rotações por minuto com os sambas “Mas como... outra vez?!” e “Primeiro amor”. “Formosa” foi composta como um samba para o conjunto ENBA, uma mais uma parceria com J. Ruy. Ela foi interpretada no rádio pelo amigo Luiz Barbosa. A gravação da música aconteceu por sugestão de Francisco Alves, em encontro com Nássara no Café Nice. Chico Alves também propôs que o samba fosse convertido em marcha. “Florisbela” é um retrato colorido de uma melindrosa tardia do início dos anos 30, presunçosa e bela.

Jornalista, chargista e boêmio, Nássara se caracterizou pela associação com parceiros. Ouvidas em conjunto, as músicas que compôs em sociedade parecem imantadas com uma marca e um enorme poder de atração. Mesmo em canções que não fizeram sucesso, Nássara deixou sua assinatura. Foi o caso de “Garota colossal”, dele e Ary Barroso. A marcha foi gravada em outubro de 1934 pelo grande cantor do tempo, Francisco Alves, para ser lançada no carnaval de 1935. A censura getulista implicou com o verso “Você, você é meu hino nacional”. E proibiu a música na folia. Naqueles tempos nacionalistas, como em todos os tempos, era vedado brincar com um símbolo da pátria. O chefe da censura, Lauro Müller, passou um carão em Ary e Nássara. Os dois saíram da delegacia para rir do episódio.

A parceria era um gênero de arte para Nássara. E foi assim, em arte, que se deu o encontro entre os vizinhos Nássara e Noel Rosa começou na mesa de um bar do bairro. Noel também desenhava e fazia caricaturas. Até chegou a pedir emprego a Nássara, que lhe recomendou continuar naquilo que fazia ainda melhor: canções populares. Noel aceitou o conselho meio a contragosto. Quando morreu, aos 26 anos, em 1937, ainda alimentava o sonho de virar artista gráfico. Num certo dia de 1934, Noel estava no tal café. Tinha composto a melodia um estribilho de marcha rancho e pediu que Nássara concluísse os versos. Nássara terminou, mas Noel não contou os versos do amigo no Programa Casé. Quando já tinha retirado seu nome da parceria, Nássara foi chamado pela gravadora RCA Victor para assinar o contrato de gravação. Noel não apenas tinha incluído seu nome antes do seu como autor em “Retiro da saudade”, como chamado os dois maiores cartazes da época para gravar a marcha rancho: Francisco Alves e Carmen Miranda. A dupla ainda gravaria “Ninho deserto”, de Evaldo Ruy. Mas jamais voltaria a se reunir diante de um microfone. Outra parceria brilhante dos dois caricaturistas compositores, Noel Rosa e Nássara, foi o samba “Que baixo!”. Coube à amiga dos dois, a jovem cantora Aracy de Almeida, gravar a canção para a Victor em 17 de dezembro de 1935. Era só o começo da vida de artista de Nássara.

Seu êxito não aconteceu nas páginas dos jornais: foi a marcha carnavalesca “Alá-la-ô”, sucesso do carnaval de 1941 e que nunca mais deixou de figurar na trilha sonora da folia. “Alá-la-ô” teve uma gênese curiosa, narrada por Carlos Didier. Começou com uma segunda parte de Haroldo Lobo, que dizia o seguinte: “Chegou, chegou/ A nossa caravana/ Viemos do deserto/ Sem pão e sem banana pra comer/ O sol estava de amargar/ Queimava nossa cara/ Fazia a gente suar”. Os dois se encontraram no Café Belas-Artes no centro do Rio. Nássara pensou nos seus antepassados libaneses para dar um fecho à marcha. E Haroldo, talvez inspirado no esquematismo do parceiro, criou mais um refrão: “Alá-la=ô, ô, ô, ô, mas que calor, ô,ô,ô, ô.” Os dois concluíram a marcha, cantarolando ali mesmo, no café, os seguintes versos: Atravessando o deserto de Saara/ O sol estava quente/ E queimou a nossa cara”. Nascia um clássico da fuzarca, que muito se beneficiou da interpretação humorística de Carlos Galhardo, antes de se tornar uma múmia da valsa brasileira.

Como era natural em seu espírito gregário, Nássara se aproximava ainda mais dos caricaturistas. O ganha-pão o aproximou de artistas como J. Carlos, Raul Pederneiras, Figueroa e Guevara. O jovem Nássara aprendeu com eles, absorvendo suas técnicas para elaborar a sua arte. E não perdeu a oportunidade para caricaturizar os caricaturistas.

Para o carnaval de 1938, Nássara se associou ao desenhista e revistógrafo baiano Sá Roriz para compor as marchas “A Arca de Noé” e “Periquitinho verde”. Os dois parceiros cantavam “Periquitinho verde” na Cinelândia, diante do ventríloquo e comediante Batista Júnior. Ouvindo a música, Batista Junior disse: “Escuta, Nássara, você quer dar essa música pra uma garota que é a minha filha?” E foi assim que a menina Dircinha Batista brilhou no primeiro carnaval do Estado Novo, cantando “Periquitinho Verde”. Nássara considerava Dircinha a melhor intérprete de suas músicas.

Ele fazia caricatura sobretudo quando compunha. Em muitas ocasiões, recorreu à paródia de músicas alheias, sobretudo em sua querida música clássica. Nássara se revelou um artista do traço até quando compunha . É o caso de “Nós queremos uma valsa”, uma paródia à célebre Valsa dos patinadores, de Waldteufel. Orestes Barbosa e seu velho amigo Erastótenes Frazão conseguiram um feito que até 1941 parecia impossível: emplacar uma valsa no carnaval. “Nós queremos uma valsa”, com Galhardo, se tornou um clássico do carnaval. Nássara citou a fonte, mencionando a valsados patinadores na letra e no refrão melódico. Mais um exemplo de paródia de clássicos é a marcha “O Danúbio Azulou”, óbvia referência à valsa “Danúbio Azul”, de Johann Strauss Jr.. A interpretação de Joel & Gaúcho, Fon Fon e sua orquestra, foi brilhante. Resultado: fez sucesso no carnaval de 1942. E foi assim, de Carnaval em Carnaval, que emplacou sucessos. Isso até o início da década de 60.

Mas, afinal, quem foi Antonio Nássara? Como ele tinha a mania de se subestimar e de fazer ironia com a própria inspiração, o artista tanto fez sucesso como passou pela música popular como uma esfinge. Ele morreu no Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 1996, aos 77 anos, venerado como desenhista e reconhecido como autor de êxitos do Carnaval. É tão fácil perceber o seu traço nas caricaturas como difícil divisar o indivíduo autoral em seus versos para música. Isso porque Nássara tanto foi um caricaturista como um compositor irônico, um Noel do portrait-charge. Não importa o instrumento ou o suporte, o lápis ou a voz. O caricaturista da canção deixou uma marca: a do humor que despe o objeto até o núcleo.