sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Professores são analfabetos digitais?

Professores são analfabetos digitais?

Para Aloizio Mercadante, eles são e precisam aprender a usar tablets para acompanhar a nova geração. O ministro está sendo simplista e fascinado pela tecnologia

O ministro da Educação Aloizio Mercadante anda tão encantado pela alta tecnologia, que pode colocar os alunos brasileiros em risco de completa imbecilização. 

A tecnologia é obviamente fascinante e tem o poder de hipnotizar as multidões, quanto mais seus autoassumidos líderes. Mercadante, cuja formação não é em Pedagogia e sim em Economia, parece ser mais uma presa da narcose e a alienação tecnológicas que assolam o Brasil e o mundo. Isso tem sido rotina no campo das artes e dos espetáculos: ninguém escapa de usar os novos aparelhos e de mergulhar nos smartphones, feito o personagem Gollum eletrizado (e destruído) pelo precioso anel que achou por acaso. No entanto, quando se trata da formação de jovens, eleger a tecnologia como a panaceia universal afigura-se como o mais deprimente desastre.

Vou tentar analisar as novas ideias do ministro e assim demonstrar que ele está fadado a cometer o maior equívoco de sua carreira: tomar os professores por ignorantes e jogar os alunos no poço dos leões da tecnologia da informação, confundindo-a com a solução final da educação. Por fim, vou aconselhar o ministro (que pretensão, mas não posso evitar) a adotar uma estratégia menos devastadora para capacitar os professores e seus alunos. Não que isso pareça preocupar o ministro. Ele, pelo jeito, só quer brilhar com um discurso que pensa ser “inovador”.

Comecemos pelo discurso que Mercadante fez na terça-feira em São Paulo. Ele afirmou que os professores brasileiros não passam de “analfabetos digitais”. Ele argumenta  que os professores precisam aprender o abecedário da informática para acompanhar a nova geração -  esta, sim. formada em tecnologia da informação e, por conseguinte, mais apta a conhecer e interpretar o mundo contemporâneo. Baseado nessa “verdade”, anunciou que, para começar o processo, seu ministério irá distribuir dezenas de milhares de tablets aos professores da rede pública de todo o Brasil para solucionar o “déficit digital” das hordas autóctones de educadores que infelizmente povoam o Brasil com sua falta de conhecimento.

 Ou bem Mercadante está sendo um inocente útil, ou tem coisa aí. Ele proferiu seu discurso ao lado do professor americano Salman Khan, fundador da Khan Academy, que oferece pelo site YouTube aulas em cinco idiomas, inclusive em português e estava no evento para divulgar sua instituição. É o que Khan denomina “a maior sala de aula do mundo”. No seu livro recém-lançado no Brasil, Um mundo, uma escola – a educação reinventada (Intrínseca, 256 páginas, R$ 24,90, e-book: 19,90), Khan faz uma afirmação sedutora. Diz que não vê motivo econômico “para que estudantes do mundo inteiro não tenham acesso às mesmas lições que os filhos de Bill Gates”. Diz além: “Quando se trata de educação, nãos e deve temer a tecnologia, mas acolhê-la. Usadas com sabedoria e sensibilidade, aulas com auxílio de computadores podem realmente dar oportunidade aos professores de ensinarem mais  e permitir que a sala de aula se torne uma oficina de ajuda mútua, em vez de escuta passiva”.

São ideias razoáveis, mas soam superficiais, boas demais para ser verdade. A impressão é de que Khan atua como um daqueles vendedores de xarope do Velho Sul (ele é da Louisana), prometendo milagres aos indígenas e aos broncos dos vilarejos. E que usa Mercadante para vender seu sistema de ensino, como qualquer outro representante comercial de editora didática ou de cursinho. Se ele conseguir um contrato do governo, vai ficar mais rico que o ilustrador e escritor Ziraldo (cujos cartuns infantojuvenis são adotados do Oiapoque ao Chuí como de fossem obras didática), distribuindo seu produto miraculoso para centenas de milhões de escolas. Mas pode ser impressão.

Nosso ministro da Educação está embarcando no conto de Khan. Tomara que ele esteja certo e aconteça uma revolução educacional – e cultural – no Brasil. Não acredito em milagres. Os grandes projetos estruturais de educação nas nações mais desenvolvidas – como Estados Unidos, Inglaterra, Suécia e França – se constroem a partir de bases sólidas de pesquisa e desenvolvimento das várias disciplinas. Contam com o apoio governamental para formar educadores e dar oportunidade aos alunos. Reúnem corpos docentes e dicentes em ambientes de interação e toca de ideias e pesquisas.

Não há, portanto, segredo para um projeto de educação eficiente: trata-se de consolidar o conhecimento com todos os meios disponíveis, inclusive os digitais. É nisso que Mercadante poderia pensar. Mas ele parece ter pressa em distribuir tablets para os que ele chama de “analfabetos”. Dessa forma, mesmo sem querer e com a melhor das intenções, poderá transformar transformar a rede pública de ensino em um gigantesco centro de diversões eletrônicas, em uma mega-lan-house. Tenho experiência nos efeitos que o uso dos gadgets digitais – como smartphones, laptops e tablets – provocam nos jovens: em vez de virar ferramentas de aprendizado, tornam-se veículos de fuga, distração e diversão. Em vez de estudo, videogames e redes sociais. Basta experimentar ler um livro em um tablet: a tentação é de fazer tudo menos ler. Os aparelhos digitais de ponta, até hoje, só arrancaram os estudantes de suas tarefas. Não conheço solução para isso até este momento. E agora os professores vão se converter em consumidores de aplicativos. Vão se viciar em joguinhos eletrônicos, em pesquisar qualquer coisa no Google  e em atualizar seus status no Facebook – alguns já fazem isso há algum tempo. Um dia teremos saudades dos tempos em que eram “analfabetos digitais”, mas alfabetizados no conhecimento.

Espero que Mercadante desperte de seu estado de torpor informacional. Tenho vontade de sussurrar ao seu ouvido: “Ministro, acorde!” De uma vez por todas, não são os tablets, os celulares e outras traquitanas digitais que vão alfabetizar e transformar alguém. A solução será promover uma revolução nos currículos, na formação e nos sistemas e no modo como encaramos o conhecimento. O resto é enganação. Meus queridos mestres analógicos, continuem assim. É melhor ser analfabeto digital que geek idiota.

sábado, 1 de dezembro de 2012

O livro de digital se afirma no Brasil

Por que o atraso na chegada leitores digitais e e-books ao Brasil pode ser positivo para o leitor

 

Demorou, mas agora vai. O Brasil entra na era do livro digital com três anos de atraso.  A chegada ao país dos e-readers como os americanos Kindle, da Amazon, e Nexus 7, do Google, iPad, da Apple, e do canadense Kobo, trazido pela livraria Cultura, vai transformar rapidamente o mercado do livro. Não é preciso ser profeta para adivinhar o que está por vir, pois tudo já aconteceu nos mercados adiantados da América do Norte, Ásia e Europa. No entanto, o atraso no processo também tem suas vantagens. Vamos entrar na nova era em pleno período de compras de Natal com um acúmulo de conhecimentos. Podemos aprender com os erros e os acertos cometidos pelos outros.

Muitos brasileiros têm experimentado os efeitos da mudança. Os estudantes leem desde meados da década de 1990 livros pela internet pelos computadores convencionais, via sites como Gutenberg Project e Domínio Público. Agora poderão fazê-lo nos e-books e tablets com mais rapidez e conforto. Há cerca de 300 mil clientes moradores no Brasil cadastrados na Amazon e muitos deles compram e-books e possuem kindles, para não mencionar os milhares que carregam livros das lojas iBook e Amazon para seus tablets.

Contaram no atraso o “custo Brasil” para a implantação de empresas estrangeiras em território nacional e o corporativismo local: as editoras refrearam o processo porque temiam um colapso do mercado por causa da redução excessiva do preço médio do livro digital. Agora, as editora organizaram-se e fundaram a DLD (Distribuidora de Livros Digitais) e chegaram a uma percentagem razoável de 30% a menos que o preço de capa do volume em papel. Resultado: o livro digital no Brasil vai sair mais caro que no estrangeiro, algo que já acontece no papel. Nos Estados Unidos, a Amazon passou a vender os leitores digitais a menos de US$ 100 – e achatou o preço dos livros a uma base de US$ 9,90. Os autores e editores reclamaram no início, mas agora estão ganhando dinheiro nas vendas por atacado. E muitas vezes a Amazon, Kobo e Barnes & Noble (com seu e-reader Nook, que deve também aportar no Brasil) promovem liquidações de títulos. Todo mundo ganha, até o consumidor. Não sei se isso vai se repetir no Brasil, mas seria bom aprender com a experiência.

Por enquanto, o preço médio do e-book no Brasil ronda R$ 30. O leitor digital Kobo custa R$ 399 – um valor ainda alto, até porque a Amazon pode entrar no mercado vendendo o Kindle Paperwhite a cerca de R$ 220. Tomara que esses preços caiam. E isso já pode acontecer depois das festas de fim de ano.

Entre as consequências imediatas da consolidação dos e-books no Brasil, as principais são quatro: a queda do preço dos títulos, o fechamento de grandes cadeias de livraria (a Livraria Cultura se vacinou contra isso, associando-se à Kobo), a obsolescência das bibliotecas públicas e particulares e o uso intenso de leitores digitais em salas de aula e instituições de pesquisa. As bibliotecas públicas passarão por um processo de digitalização. As que não fizerem isso serão sucateadas pelos governantes, sob o pretexto de que deixaram de ser úteis. O livro em papel não irá desaparecer, mas tenderá a se transformar em um objeto de colecionador, em um fetiche interessante, ainda que dispensável. Há também, a longo prazo, a possibilidade de os sebos populares de rua fecharem. Restarão os antiquários, que deverão praticar preços altos. Como disse meu velho amigo Germano, dono da Livraria São José do Rio de Janeiro, “livros digitais não envelhecem”. E, por isso, não são produtos apropriados para sebos. Ou será que algum geek vai dar um jeito de inventar o sebo de e-books? É bem provável. 

Assim, os e-books já abalaram os hábitos de leitura e o modo como o leitor se relaciona com os textos. Ele vai se beneficiar imediatamente com a oferta de milhões de títulos, milhares em português. Vai ler mais do que nunca, o que irá obrigar os autores a produzirem seus livros em maior velocidade. Também os leitores tenderão a se esquecer mais rapidamente do que leram, pelo volume e oferta de material.

Diante dos aspectos positivos e negativos que a nova tecnologia acarreta, a lição a aprender desde já é aprender a selecionar o que ler. Quando tudo está disponível, nada mais fundamental que escolher aquilo que é importante para a formação e o aperfeiçoamento do indivíduo em determinado contexto. E manter a atenção nas páginas virtuais, algo que está se tornando cada vez mais difícil com os apelos que vêm, por exemplo, dos tablets.  A diferença entre ler no papel ou na tela é que o texto em papel prende o leitor à página, ao passo que o hipertexto da tela o deixa mais livre, solta-o e o faz saltar de um link a outro, e facilmente saltar do texto para o som e o vídeo. O texto estimula a memória, o hipertexto dispersa. Enfim, para enfrentar as mudanças que já chegaram, o leitor terá de reaprender a ler.

 

 


Luís Antônio Giron

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O ser e a bola


Como o futebol pode se apoderar da alma do torcedor – e constituir sua personalidade

 

                Um amigo tenta me consolar do rebaixamento do Palmeiras à segunda divisão: “Ainda bem que você tem outros times para compensar!” É verdade. Como muitos meninos criados no interior do Brasil, adotei um time para cada Estado da federação. Assim, já que minha cidade não contava com possíveis campeões (havia um revezamento de troféus entre os dois times de Porto Alegre), eu mantinha meu interesse à distância pelo futebol. 

                Em São Paulo, calhou de meu time ser somente o Palmeiras, um dos símbolos da imigração italiana no Brasil. Mas tenho times espalhados pelo Brasil e pelo mundo, não vou citar todos aqui. Fico apenas com o Rio de Janeiro. Houve um tempo em que adotei quase todas as equipes cariocas, já que eu promovia campeonatos de botão com os amigos na condição de “treinador” dos times cariocas disponíveis. Em relação ao campeonato do Rio, portanto, tornei-me ecumênico, pois gosto de todos. Consigo ser Vasco, Fluminense e Flamengo ao mesmo tempo, bem como Botafogo, Bangu e América.

                O que eu quero dizer é que possuo uma espécie de defeito de personalidade porque não me prendo visceralmente a nenhum clube, embora torça por alguns. Em futebol, meu coração é leviano. Eu colecionava figurinhas de todos os times. Sou de um tempo em que amigos e suas famílias iam aos estádios com camisas de times diferentes, torcendo no mesmo espaço por times rivais. E ninguém se matava ou matava os outros por isso. Com o tempo, os torcedores foram forçados a se transformar em fanáticos. Enquanto isso, cresci e me interessei por outros assuntos além do futebol. Mas ele permaneceu, como o menino permanece no homem.

                Hoje, torcer consiste em uma ação bem diferente daquela de minha infância. Torcer é “ser”. Assim, “ser” palmeirense em São Paulo, sobretudo nos últimos meses, significa apreciar as grandes tragédias, purgar os pecados nas chamas da derrota, rastejar em tempos difíceis e sair purificado ao final. No domingo passado, a assistir pela televisão a mais uma derrocada palmeirense, preferi ouvir uma ópera completa, O crepúsculo dos Deuses, de Richard Wagner, na versão “mozartiana” de Karl Böhm. Ao mesmo tempo que terminavam os últimos acordes - que marcam o fim dos deuses e o nascimento da humanidade – ouvi ao longe os fogos da torcida adversária, locupletando-se com a derrota alheia. Não atendi ao telefonema de meu cunhado santista, para não ouvir zombarias. Depois, no Twitter, algum gaiato postou: “Palmeirenses, tranquem as portas e fiquem em casa porque vamos festejar e arrebentar quem usar camisa verde”. Quase fui obrigado a me sentir humilhado, ofendido e acuado. 

                A razão, no entanto, veio me socorrer. Em vez de sair para berrar ofensa ou me mortificar, passei a refletir sobre como o futebol no Brasil não apenas faz parte da vida das pessoas, como sobretudo  constitui o sujeito, para roubar um termo de psicanálise. Assim como Jean-Paul Sartre diria que o ser precede a essência, eu me arrisco a dizer que no Brasil e em outros países a bola precede o homem. O futebol, em especial o time, fornece as características do que constrói o sujeito. E, numa tosca paráfrase a Thomas Hobbes, o homem é o time do homem.

                A tradição de glórias e derrotas de uma equipe e futebol deve necessariamente pesar sobre os ombros do torcedor. Ser palmeirense é assumir a pungência da tragédia. O palmeirense é o novo sofredor diante da força do destino (é um título de ópera aliás). Ocupa o lugar deixado há muito tempo pelos coritintianos. Da mesma forma, ser corintiano hoje impõe ao ser do torcedor uma certa dose de grandiosa insanidade. Quando a Fiel grita que é um bando de loucos, não é só força de expressão. Trata-se da manifestação de uma crença arraigada na essência de cada um dos integrantes do grupo. Pertencer a uma torcida implica compartilhar cores, valores, origens, amizades, amores e idiossincrasias. É odiar os mesmos inimigos. É matar e morrer por esses “ideais”. Daí o surgimento das agressivas torcidas organizadas, que também podem reencarnar no Carnaval, com suas facções fantasiadas de escolas de samba.

                Os reflexos da ontologia da bola acontecem até na vida amorosa. A comédia O casamento de Romeu e Julieta, de 2004, transforma a rivalidade entre as famílias Capuleto e Montecchio, de Verona, para as torcidas corintiana e palmeirense. Um corintiano pede uma palmeirense em casamento, mas precisa se disfarçar de verde para agradar ao sogro, dirigente do Palestra Itália. Conheço uma situação parecida: um casal de namorados, ela palmeirense, ele corintiano, que muitas vezes têm problemas de relacionamento por causa do fanatismo de um e outra. Uma coisa será impossível, infelizmente: vê-los em um setor de qualquer estádio, juntos, namorando, cada um com sua camisa, como teria sido comum em meados do século passado. Torcidas e amor, torcidas e diversidade são termos incompatíveis. As torcidas organizadas – e mesmo as não - se transformam em falanges de uma guerra perpétua e inexplicável. Pertencer a um time significa satanizar aqueles que não pertencem à falange.

                A que se deve tal situação? Talvez à degeneração dos valores humanos e culturais, fenômeno que se repete e se torna mais dramático nos estádios de futebol.  Assim, o fanatismo clubístico é tanto um fator de união como de cizânia social. Sigmud Freud e Elias Canetti ensinaram que a psicologia das massas é irracional e causadora de tremendos conflitos. O fanatismo não tem outro sentido que estimular o ódio e o ressentimento ao “outro”. Esse tipo de mobilização em torno de uma ideia, ainda que clubística, já mostrou ser deletério. É algo próximo ao fascismo, e as torcidas organizadas são as atacantes do processo.  Como ensinou o Filósofo das Quatro Linhas: “Futebol é futebol – e vice-versa”. Ou, pelo menos, deveria ser assim. O problema é que ele pode deixar de ser só futebol para transbordar para outras áreas. Feito um regime totalitário, por exemplo, o futebol se apodera do sujeito. O esporte atua como um invasor de almas. Sob a capa de cultura, ele vampiriza a vontade e anula a iniciativa do torcedor.

                Você, palmeirense, já pensou em não ser palmeirense por um dia, por uma semana? (neste momento, seria aconselhável). E você, são—paulino, santista, gremista e outros, que tal passar umas horas sem encarnar o time, sem pensar nele? Eu, que me cultivei na admiração ecumênica por vários times, acho isso natural e saudável. Não consigo entender a mentalidade de “onda” com que alguns indivíduos cultivam a própria personalidade. Afinal, futebol não é tão importante assim para compor a maneira de viver, pensar e se comportar de qualquer indivíduo. O ser precede a bola - e é maior que ela.

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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Quem é Mick Jagger mesmo?

Uma biografia mostra que o roqueiro transgressor não passou de uma criação de palco – e que ele é um modelo de ambição, disciplina – e gosto por sexo

Quem vê hoje os shows de Mick Jagger pode não perceber que a figura  salvagem do mito do rock dos anos 60 não passa de uma construção de palco. Por trás do desempenho frenético do vocalista da banda inglesa The Rolling Stones, com seu ar de adolescente malcriado, oculta-se um senhor de quase 70 anos, dado a atitudes esnobes e hábitos aristocráticos, amante do luxo e de sexo, pai severo de sete filhos e avô de duas crianças, acostumado a manter um código de etiqueta escrito na era vitoriana para ser aplicado por sua criadagem nas suas diversas mansões e palácios espalhados pelo mundo.

Para decifrar o enigma das duas imagens conflitantes de Jagger e m revelar a sua face humana e íntima das máscaras que ele criou para si próprio, o escritor inglês Philip Norman levou três anos escrevendo a biografia Mick Jagger (Companhia das Letras, 624 páginas, R$ 49,50 ). “Na verdade, passei minha vida inteira escrevendo sobre duas bandas dos anos 60 que formam uma única saga: Beatles e Rolling Stones”, afirma Norman à Época. Aos 69 anos, ele foi jornalista de música e conheceu esses artistas no início de suas carreiras. Escreveu um livro sobre a história dos Beatles, em 1981, e a consagrada biografia John Lennon: a vida, em 2009. “Mick merecia uma biografia por ser a figura central da contracultura que explodiu em Londres em meados dos anos 60”, diz. “A ‘swinging London’ que rompeu a crosta vitoriana da cidade não teria sido a mesma sem o talento de Mick de fazer de si próprio o símbolo maior daquele tempo, uma espécie de Tirano do Cool, de lançador de modas e de padrões de gosto.”

Norman esperou por uma efeméride, os 50 anos da estreia da banda, para publicar a biografia, feita a partir de pesquisas e entrevistas. O paradoxo saltitante Mick Jagger e banda estarão de volta às turnês em novembro, quando os Stones iniciam a turnê 50 and counting, para comemorar o cinquentenário da banda. Eles lançam a coletânea Grrr!, com sucessos da carreira.  A comemoração está atrasada em relação à estreia dos Stones, em 16 de julho de 1962. Houve muita discussão entre os quatro membros da banda até chegar a um projeto viável. Eles formam a empresa de rock mais lucrativa do mundo e encaram a banda como tal.  De 1999 até 2011, os Stones ganharam 2 bilhões de dólares. Jagger deu a última palavra. Alguém esperaria menos do “Tirano do Cool”?

“Os Stones são um fenômeno de longevidade graças Mick,”, diz Norman. “No início, era um conjunto instável, que contou com mortes e a saída de dois integrantes, além do envolvimento com drogas e fugas do fisco. Não tinha nada para se manter. Foi o gênio de organizador de Mick que segurou os Rolling Stones ao longo dos anos. Além de seu talento artístico.” Segundo Norman, o problema de lidar com uma personagem pública como Mick é que ninguém sabe quem ele é, apesar de pensar que sabe: “Ele não ostenta duas faces, mas um número quase infinito delas. São tantas as camadas que ele justapôs ao próprio rosto que nos perdemos na tentativa de desmascará-lo. Ele conseguiu manter seu verdadeiro eu, bem mais complexo e interessante que suas máscaras”.

A personalidade de Mick resultou de sua formação tradicional. Ele contraria todos os estereótipos das celebridades da cultura pop, que construíram seus mitos a partir da pobreza, da rejeição e da privação. Michael Philip Jagger nasceu em uma família convencional de classe média, de pais devotados. A mãe, Eva,  uma esteticista australiana, despertou nele o gosto pela aparência. O pai, Joe, professor de educação física, orientou seus dois filhos, Mick e o caçula Chris, a cultivar o corpo. Mick contou com o apoio deles para seguir sua carreira quando passou na prestigiosa London School of Economics. E não tiveram como reclamar quando o garoto trancou a matrícula, já que ele era capaz de demonstrar que se tornaria milionário, no improvável papel de cantor de uma banda de blues.

Quando o estrelato chegou como a consequência de um silogismo lógico, Mick sobreviveu às tentações de seu tempo: as drogas pesadas e a militância política. Enquanto sua namorada, Marianne Faithfull, entregava-se à heroína e seus companheiros de banda Keith Richards e Brian Jones ao LSD, ele provava sem se jogar nelas. “Mick não gostava de fato de drogas”, diz Norman. “E não se viciou.” Quando todos os artistas daquele tempo participavam de passeatas pacifstas, Mick assistia a tudo de óculos escuros... e de longe.

Seu fraco sempre foi sexo. Hoje ele seria chamado de doente, mas os seus dois casamentos e centenas de casos com homens e mulheres parecem ter lhe servido como elixir da juventude.  “A carreira sexual dele é tão espantosa quanto a musical”, afirma Norman. “Ele se habituou a viver como um adolescente que não precisa tomar providências chatas da vida. E se acostumou a tratar as suas mulheres como lixo, até porque temia que muitas delas lhe roubassem o dinheiro. Mesmo assim, mostrou ser um pai a um só tempo disciplinador  e divertido. Seus filhos o adoram.”

Entre as descobertas de Norman, destacam-se três. A primeira é que Mick e Keith foram injustiçado pela polícia britânica. Além de serem acusados em 1966 de porte de drogas por meio de uma droga plantada por um tabloide, a estada deles em duas prisões diferente, ambas reconhecidas pelas condições terríveis, foi traumatizante. “Eles sofreram violência lá dentro”, diz Norman. A segunda diz respeito á onda de violência durante o show do autódromo de Altamont, em 1969. Mick foi culpado de proteger o bando  Hell’s Angels em seus atos de violência, que culminaram no assassinato de um jovem negro  por um integrante do bando enquanto Mick cantava. “Mas ele se portou com coragem, enfrentou os Hell’s Angels e tentou conter a violência naquela noite”, afirma Norman. Por fim, o papel do produtor Andrew Oldham na definição da identidade dos Stones também ganha nova luz. Foi ele que ele criou o clima de rivalidade e oposição entre os Stones e os Beatles. E foi fundamental para ajudar Mick a forjar a sua persona indomável.

Lançada em outubro no Reino Unido, a biografia obteve boas resenhas, embora alguns críticos tenham dizo que Norman fez um retrato positivo demais de Jagger. “Ele não se manifestou”, diz Norman. “Mick se comporta como um membro da família real britânica. Nunca responde a pedidos de entrevistas, não se manifesta e finge não se lembrar de nada do passado. Como disse o baterista dos Stones Charlie Watts, Mick não pensa no presente e no passado. Só no futuro. Ele continua o mesmo.

LAGiron

sábado, 20 de outubro de 2012

Hilary Mantel faz história

Em 1975, a jovem Hilary Mantel, de 23 anos, trabalhava como balconista em Manchester, no norte da Inglaterra, quando começou a escrever livros dentro de um gênero tido por ultrapassado: o romance histórico. Na semana passada, aos 60 anos, ela alcançou a consagração definitiva como inovadora desse tipo de ficção. Mantel recebeu, pela segunda vez, o Man Booker Prize, o prêmio literário de maior prestígio do Reino Unido, pelo romance histórico Bring up the bodies (o título pode ser traduzido como “Apresentai os corpos”). Havia ganhado o mesmo prêmio em 2009 pela primeira parte dessa história, intitulada Wolf Hall (publicado no Brasil pela editora Record). Pela primeira vez nos 43 anos do Man Booker, foi premiada uma continuação, e de uma trilogia ainda não concluída. Antes de Hilary Mantel, só outros dois autores haviam sido agraciados duas vezes com o prêmio: o australiano Peter Carey e o sul-africano J.M. Coetzee.

"Você espera 20 anos por um Booker e então dois vêm de uma vez só", disse ela durante a premiação. Esse prêmio costuma causar frisson e rompimentos entre os autores da confraria literária londrina. A surpresa do segundo prêmio a Hilary Mantel aconteceu também porque ela não faz parte desse grupo. Na verdade, despreza a chamada “turma de Bloombsury”, o bairro literário de Londres onde os autores e editores circulam. Ela mora no interior da Inglaterra com o geólogo Gerald McEwen, com quem é casada há 40 anos. Na juventude, ela adoeceu gravemente. Além de problemas psíquicos, ela foi diagnosticada com endometriose e teve de extirpar o útero. Além de não poder ter filhos, engordou de uma forma incontrolável, o que desfigurou sua beleza. Escrever e pesquisar os fantasmas do passado tornou-se uma forma de superar os problemas.

            

Na cerimônia de  entrega do prêmio, o presidente do júri Peter Stothard afirmou que Mantel é “a maior prosadora inglesa moderna em atividade” e “reescritora da ficção histórica”. E, de fato, é uma reescritora. Seus livros contam de novo histórias surradas e fantasiadas, só que de um modo peculiar. Seu primeiro romance, A sombra da guilhotina, concluído em 1979, tratava do Terror na Revolução Francesa, que já havia sido abordado por autores como Victor Hugo e Charles Dickens. Mas, em vez de inventar enredos, a balconista aspirante a literata baseou-se em minuciosas pesquisas que realizou em arquivos históricos e bibliotecas. A partir de então, ela causou uma pequena revolução dentro desse tipo de narrativa. Em vez de tomar liberdades com o passado e idealizar personagens e ações, como o fizeram seus antecessores Walter Scott, Alexandre Dumas no século XIX, e Marguerite Yourcenar, no XX, mostrou que era possível fazer com que episódios históricos muitas vezes repetidos ainda pudessem causar espanto ao leitor contemporâneo sem ser infiel às fontes e nem apelar às fórmulas fáceis.

            “Não invento. Apenas preencho as lacunas deixadas pelos documentos, para tentar explicar um episódio”, disse Hilary Mantel a Época em 2010, sobre Wolf Hall. “Eu acho detestável séries de televisão como The Tudors, que deturpam todos os fatos para torná-los mais atraentes.” A história, afirma, é suficientemente cheia de crimes e traições para dispensar artifícios.  

            Wolf hall aborda uma fatia da era Tudor (1485-1613), marcada por lutas de sucessão, assassinatos e conspirações sexuais. O livro relata a ascensão de Thomas Cromwell (1485-1540), de menino de rua a ministro de Henrique VIII. Nesta posição, ele ajudou a consolidar o rompimento da Inglaterra com o papa Clemente VII e a fundar a Igreja Anglicana. O segundo volume, Bring up the bodies (a ser publicado no Braisl em abril), acompanha os fatos que levaram Henrique VIII, aconselhado por Cromwell, a decapitar sua mulher, Ana Bolena, em 1536, e assim evitar um golpe de Estado.  “É um livro mais interessante que Wolf Hall, porque sua trama transcorre em apenas nove meses”, disse Mantel em entrevista ao jornal The Guardian, logo depois de receber seu segundo Man Booker Prize. “O enredo prende a atenção dos leitores com sua lógica insofismável.”

            Ela está escrevendo a terceira parte da saga de Cromwell, a sair em 2013, intitulada The Mirror And The Light ( O espelho e aluz). O volume vai contar a queda de Cromwell, levado ao patíbulo por Henrique VIII como traidor corrupto. “Não será um romance tão interessante como Bring up the Bodies”, disse Mantel ao Guardian, mostrando que não se dobra aos efeitos fáceis da ficção. “Mas é o epílogo real da história fascinante de Cromwell.”

 

sábado, 1 de setembro de 2012

Candidatos pokémons

Jovens fazem campanha política usando heróis de desenhos japoneses. Eles resgatam ou estragam as utopias infantis?

LUÍS ANTÔNIO GIRON1


Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV (Foto: ÉPOCA) 

Aristóteles dizia em sua República: “O homem é um animal político”. Mas isso foi 24 séculos atrás. Hoje esse animal político se transformou em um ser fantástico: encarna o visual e adota as ideias de super-heróis, mascotes virtuais e personagens de desenhos animados, tanto dos animês japoneses como das histórias de Walt Disney. Sim, era inevitável: chegou a hora dos filhos do monstrinho Pikachu, seus amigos e concorrentes entrarem na política. A geração de candidatos de 18 a 25 anos dá início a suas campanhas em todos os cantos do Brasil. Muitos desses jovens nutridos na internet, no videogame e na cultura pop assumiram o ideário – se pode ser chamado assim - das histórias que amaram na infância e na adolescência. Eles pertencem a diferentes partidos e divulgam seus programas políticos em jingles que usam indevidamente material da cultura pop veiculados pela internet, e já começam a ficar famosos por seus autoproclamados superpoderes. Obviamente, o objetivo deles é arrebanhar o eleitor jovem. Um número enorme de internautas da mesma idade deles formou exércitos de seguidores. Outros, mais críticos, acham que esses aspirantes a políticos andam estragando os símbolos de suas infâncias. Quem votar verá no que essa geração vai dar.

 Há dezenas de exemplos, mas vou me limitar a três candidatos à vereança em seus respectivos municípios, cada um com seu super-herói padroeiro.

Thalison Mendes, de 20 anos, joga-se pelo PSL (Partido Social Liberal) na campanha à câmara dos vereadores de Rio Claro, estado de São Paulo, com uma plataforma tão ousada como bizarra: ele se apresenta como o “candidato Pokémon”. No YouTube, o “santinho” de Thalison é animado pelo “Hino do Pokémon”, o prefixo musical do desenho animado japonês Pokémon, uma franquia da Nintendo, que ficou famoso a partir de 1996, só que com letra trocada. Diz a letra do jingle (acompanhe mentalmente com o “Hino de Pokémon”):

“Para fazer Rio Claro crescer
Já sei em quem vou votar
É juventude no poder
Juventude e experiência
É hora de repensar
Essa escolha a nós pertence
Para a história arrepiar
Thalison, temos que votar
Eu sei, é nele que eu votarei (...)”

 

Assim, a invenção do designer de games japonês Satoshi Tajiri agora é usada para vender a imagem de Thalison, um moço impoluto, capaz, como o herói Ash, de transformar Rio Claro em um campo de batalha infinito do Bem contra o Mal e seus habitantes, em monstros de bolso (“pokémon” é a abreviação da expressão em inglês “pocket monsters”) fadados a incalculáveis metamorfoses, como Bulbassouro, Hypno, PsyDuck, Toguepi – e, naturalmente, Pikachu, inspiração maior para o candidato, cujo currículo – que cabe no seu twitter @mendesthalison –, inclui, além de horas na frente da televisão, a “gestão de pessoas” e a presidência do Grêmio Estudantil de seu ginásio. Ele promete “arrepiar” a história do município. Como será o dia seguinte de Rio Claro depois do choque da ideologia Pokémon? Logo saberemos.

Outro candidato de sucesso agita a cidade de Parnamirim, no Rio Grande do Norte é Tiago Dionísio, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). O professor de matemática, humorista e artista plástico de 18 anos já teve mais de 500 mil acessos no YouTube com seu jingle político, baseado no prefixo musical do animê japonêsDragon Ball Z. A adoção desse animê conhecido por seu alto grau de violência partiu de uma visão crítica de Tiago em relação à tendência atual da campanha em parodiar músicas de sertanejo pop de Michel Teló, Gusttavo Lima e da dupla João Lucas e Marcello. Lembrando que o candidato à prefeitura de São Paulo José Serra lançou, nesta semana, a versão de sua campanha para a música "Eu quero tchu, eu quero tcha". “Sou jovem e fui muito fã do Dragonball Z”, diz Tiago. “Eu estava cansado de ‘tchutchathá’ e usei uma música de minha infância.“ Ele canta em seu jingle que é a solução para o caos urbano do nordeste:

“Nós podemos ver que Parnamirim está um caos
Mas uma pessoa pode nos ajudar
Com seus projetos vamos para a frente
Sua disposição nós dá força para lutar
Em Tiago temos que votar
É um jovem justo e bem melhor que os que já têm
Todos juntos vamos triunfar!
Com Tiago juntos vamos prossegir
Vamos vencer”

 

Como no desenho e no mangá Dragon Ball Z, Tiago Dionísio se apresenta como pertencente à etnia extraterrestre dos Saiyajins, a mesma da qual faze parte o herói Goku, que combate o vilão Vegeta, androides perversos da força Red Ribbon e outros malvados interplanetários. Como Goku, o sayajajin Tiago Dionísio pretende se tornar o protetor não apenas de Parnamirim, como de todos os terráqueos. Para isso, promete implantar polos de ensino gratuitos em todo o planeta. Assim como Goku se vingou da matança de bilhões seres ao derrotar o bandido espacial Freeza na batalha do planeta Namek, Tiago quer eliminar a violência por meio da educação, sem fugir à luta. Sua popularidade na internet já lhe rendeu participação de programas de televisão e o status de celebridade geek nas redes sociais. Haverá um Vegeta ou um Freeza capaz de detê-lo? Pouco provável.

A nova cepa de candidatos não se limita a ferver em municípios progressistas como São Carlos e Parnamirim. Do sertão da Bahia surge Thonga, fã da série Cavaleiros do Zodíaco, a série de animês japoneses criada originalmente em mangá em 1986 pelo desenhista Masami Kurumada. Thonga (pronuncia-se “tchonga”) concorre à vereança pelo PMDB na cidade baiana de Conceição do Coité. Em vez de rezar pela cartilha de Ulysses Guimarães e outros ideólogos ancestrais do partido, o jovem Thonga prefere pensar na política como uma luta dos cavaleiros (“santos”, no original) zodiacais pela defesa do domínio da deusa Atena sobre os usurpadores do Olimpo. Atena, a deusa da justiça e da razão, inspirou Thonga a adaptar a canção “Pegasus fantasy” da banda de heavy metal Angra para o desenho Cavaleiros do Zodíaco. Acompanhado por um guitarrista de estilo heavy metal, Thonga surge no YouTube aos gritos, entremeando exclamações como “yeah!”:

“Para não errar no dia da eleição
Escolha quem vai fazer a cidade entender
Este cidadão quer nos proteger
E bolar as idéias e forças para mudar
Eu voto em Thonga
Eu voto para mudar
Coração sonhador 
Vou revolucionar
Vamos votar
Em quem sabe fazer
Oh, yeah!
Vamos votar, unir as nossas forças
Thonga, vamos vencer. Yeah!“

 

As palavras “yeah!”, “revolução” e “juventude” e a plataforma de luta do bem contra o mal se repetem nos jovens candidatos pokémons. E contagiam as campanhas dos mais velhos. O prefeito Toinho Barbosa (PTB), candidato a reeleição em Igaci, Alagoas, vale-se da canção do desenho He-Man, de 1983, e o slogan “Eu tenho a força”? “Ele é a força / da Igaci / vamos amigos / unidos venceremos a semente do mal”, diz o jingle, em ritmo de tecnobrega. Toinho sonha em ser Mestre do Universo (não esqueçamos que He Man pertence à série Masters of the Universe) em Alagoas e adjacências. No interior de São Paulo não parece ser diferente. A pedagoga Tia Nei, com 21 anos de experiência em pedagogia infantil, aspirante a vereadora dos Democratas (DEM) na cidade paulista de Guararapes, vale-se de um trecho inteiro do desenho animado Rei Leão, dos estúdios Disney, para preconizar sua infalibilidade. A canção “Hakuna Matata”, cantada por Timão, Pumba e Simba, é dublada como “Na urna é batata”: “Na urna é batata/ meu voto eu já sei/ É a tia Nei/ Você vai ver/ Os seus problemas/ ela vai resolver/ Na urna é batata/ Agora sim: 25555”.

Dessa forma, em clima de fim de mundo, os jovens candidatos ensinam aos mais velhos o caminho do triunfo sobre o lado obscuro da força. Eles demonstram que o vazio do idealismo e das utopias deixados pelas gerações passadas pode ser preenchido por uma concepção heroica e bélica da existência. No mundo de Ash, o menino guerreiro dono de Pikachu, não há lugar para cinismo ou a busca de lucro fácil. Também os Guerreiros do Zodíaco e Goku, de Dragon Ball Z, não baixaram o planeta Brasil para apenas divertir. Eles prometem combater as quadrilhas que vierem a assaltar o Estado e entronizar a juventude no governo. No dia 4 de outubro, vão mostrar a eficácia de seus superpoderes. Se existem meninos e meninas que acham que eles lhes roubaram a infância, não é por culpa dos candidatos. Mangás, videogames e animês impregnaram as novas gerações não apenas da vontade de comprar produtos. Eles carregam lições de filosofia de vida e ação social. Por isso, dias de arrepiar estão por vir. E não vou me espantar se nas próximas eleições aparecer Optimus Prime, o protagonista da sérieTransformers, como forte candidato à Presidência da República. Então teremos de reformular mais uma vez Aristóteles para dublá-lo e fazê-lo dizer: “O robô é um super-herói político”.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Um clássico renasce com o erotismo

Um músico religioso do século XVI faz sucesso ao ser citado na saga pornô Cinquenta tons de cinza

LUÍS ANTÔNIO GIRON

Parte inferior do formulário

Pouca gente conhece o compositor inglês Thomas Tallis. Ele viveu no século XVI e escreveu predominantemente música religiosa, em especial motetos polifônicos, peças corais compostas para várias vozes. Anastasia Steele, a jovem protagonista do romance erótico Cinquenta tons de cinza, da escritora britânica E.L. James, também nunca ouvira falar de Tallis. É apresentada a ele pelo bilionário Christian Grey, seu namorado e iniciador nas artes do sadomasoquismo, bem no início do romance. Eles estão andando de carro, e Anastasia pergunta a Grey sobre seus gostos musicais. “Sou eclético, Anastasia, gosto de tudo, de Thomas Tallis a Kings of Leon. Depende do meu estado de espírito.” Ela confessa que não sabe quem é Tallis. “Vou pôr para você ouvir uma hora dessas. É música coral sacra da época Tudor”, diz ele. “Parece incomum, mas também é mágico.’’

cinquenta tons de cinza (Foto: divulgação)ANTES TARDE
Montagem com a capa do álbum do grupo inglês The Tallis Scholars. O disco faz sucesso no iTunes depois de 27 anos do lançamento (Foto: divulgação)

A segunda vez que Tallis aparece é numa fase avançada da educação de alcova de Anastasia. Ela atinge o orgasmo mais intenso e agonizante de sua vida, ao ouvir uma peça coral polifônica – vendada, com fone de ouvido, em meio ao sexo com Grey. “Vozes seráficas...‘Que música era aquela?’, murmuro quase inarticuladamente. ‘Chama-se Spem in alium, um moteto de Thomas Tallis’. Eu fiquei... deslumbrada.”

Bastaram essas duas menções para a peça coral de Tallis chegar às paradas de sucesso. Como o livro de E.L. James tornou-se o maior best-seller mundial da temporada, com 31 milhões de exemplares vendidos em língua inglesa – e 200 mil na tradução em português, lançada há três semanas –, uma fração de seus leitores curiosa em ouvir aquela música tão angelical como estimulante foi suficiente para transformar Tallis, com quatro séculos de atraso, em astro das paradas de sucesso.

No romance, a obra religiosa do austero Tallis é usada para animar perversões sexuais 

Spem in alium ocupa a lista de faixas clássicas mais vendidas do site iTunes e conquistou as paradas britânicas. A gravação que mais faz sucesso foi realizada em 1985 pelo grupo londrino The Tallis Scholars. A música ultrapassou as árias de ópera do tenor Luciano Pavarotti. O site Classics On Line, da Naxos, a maior gravadora e distribuidora erudita do mundo, publicou na semana passada uma lista de 50 CDs com obras de Tallis. Segundo o presidente da Naxos, o produtor e crítico alemão Klaus Heymann, os discos de Tallis estão vendendo como nunca.