quarta-feira, 9 de novembro de 2011

João Gilberto está gripado ou quebrado?

Estou cansado das frescuras do João Gilberto. Completou 80 anos em 10 de junho, mas parece não estar nem aí para pedestais e homenagens, pois se comporta como um menino mimado. Nas últimas semanas, o cantor e violonista baiano tem protagonizado um festival de hesitações e antiprofissionalismo: anunciou uma turnê para comemorar seu aniversário, intitulada Uma vida bossa nova, mas depois tratou de cancelar datas, alegando motivos de saúde. João disse que está com gripe, o que o impediria de se apresentar no Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre e São Paulo. Agora voltou atrás mais uma vez, o que não o impede de mudar de ideia daqui a pouco. Os observadores afirmam que a razão é outra: os empresários do artista não conseguiram vender os ingressos, e agora estão com dificuldade para produzir o espetáculo, já que ele não conta com patrocínios ou incentivos fiscais. Muitos fãs dizem que não vão ao show porque os ingressos são extorsivos: vão de R$ 400 a R$ 1.200.
Trata-se de um motivo forte, e talvez o ídolo não conte no Brasil com um público suficiente para faturar o que espera – diferentemente de astros como Britney Spears e Justin Bieber, que cobram mais ou menos o mesmo preço pelos ingressos, e ninguém reclama de estar sendo assaltado. A produção do espetáculo também é mais modesta, já que João costuma se apresentar sozinho, ao violão.
Talvez João Gilberto valha menos em termos monetários do que queira pensar. Ora, isso não é nenhum desdouro. Obviamente seu valor artístico é incalculável. É um gênio da canção contemporânea, ninguém questiona isso. No entanto, no Brasil, os preços dos espetáculos vivem um momento de bolha inflacionária. Cobra-se demais por um ingresso porque existe uma demanda reprimida do público, que pela primeira vez está se sentindo no centro das turnês internacionais. O público está sendo explorado na sua fome de espetáculos, e parece gostar disso. Mas chega uma hora em que as multidões se cansam. Nos últimos shows de massa, ingressos eram vendidos abaixo do preço na última hora pelos cambistas. O público está percebendo a extorsão. Além do que no Brasil, santo de casa não faz milagre, mesmo que esse santo atenda pelo nome de São João Gilberto.
Com ingressos altos ou não, o fato é que assistir a uma apresentação dessa entidade divina implica um alto grau de tensão. João Gilberto é a manifestação brasílica do totalitarismo artístico. Ninguém pode questionar as decisões e as transgressões de um homem como ele, detentor que é do fogo dos deuses. João exige que o sistema de refrigeração seja desligado e o som, perfeito de acordo com seus padrões. Nada impede que ele interrompa o espetáculo no meio, se achar por bem que nada está de acordo com seus pedidos. Não sei se ele já ouviu falar de um procedimento técnico bastante comum entre os músicos: a passagem de som. João não costuma verificar as condições dos lugares em que atua. Quer passar o som por telepatia, ou que sua equipe adivinhe o que deseja. Exige também que o público o escute de joelhos, em silêncio devocional absoluto.
O último episódio da turnê deixou seus admiradores chateados, mas não surpresos. João parece ter nascido desse jeito, e não vai ser agora, na idade provecta, que irá se emendar. Ele parece ter fundado a bossa nova em 1958 por acaso, em uma pausa de seus caprichos e excentricidades. Ou talvez a bossa nova tenha sido a maior das suas bizarrices, inventada em um período de retiro entre Porto Alegre e Diamantina entre os anos de 1954 e 1956. Um especialista no assunto amigo meu, já falecido, costumava dizer que João criara o novo estilo de cantar baixinho, acompanhando-se aos acordes em clusters do violão, porque havia tido um problema nas cordas vocais e perdido a voz. Dizia esse meu amigo mais: que João não havia construído suas síncopes de uma forma racional; na verdade, essas defasagens entre o ritmo e o acompanhamento derivavam de uma peculiaridade do cérebro do músico, de uma impaciência dele para seguir a métrica e o compasso. Assim, a genialidade de João cantada por todos nós não passaria de um fato do acaso biológico. Ele seria um ser excepcional – daí o artista fora do comum. Por isso, temos de perdoá-lo...
O cantor João Gilberto (Foto: Arquivo /Revista Época)
Será mesmo? Ando questionando essa intangibilidade inquestionável do artista, mesmo que tenha a envergadura de um João Gilberto. Adoro ouvi-lo cantar e não perco seus shows. Toda vez que o escuto tenho a impressão de que ele canta só para mim. No fim do século passado, achei graça em um show que fez com Caetano Veloso, ele respondeu a um sujeito que o vaiava no Credicard Hall, porque ele dizia que ventava no palco. "Vaia de bêbado não vale!", disse João, para a gargalhada geral. Mas talvez o bêbado tivesse razão. Quem sabe tenha sido a primeira manifestação racional em muitos anos de cegueira do público de João Gilberto.
Por longos anos, ele se alimentou do folclore. Os dengos, as recusas, o gato que pulava da janela de seu apartamento porque não aguentava a repetição dos ensaios, os telefonemas à noite para conversar com seres confiáveis ou nem tanto, as manias, as retiradas à francesa, os não-comparecimentos, as exigências. Esse tipo de coisa já não causa tanta impressão quanto antes. Para boa parte do público, as bobeiras de João Gilberto não significam nada. Pois a era do amadorismo já vai longe... ou já deveria ter ido.
Do jeito que ele tem conduzido a carreira nos últimos 50 anos mostra que pagar por alguns de seus shows pode ser um desperdício. O público de João Gilberto, na verdade, deveria receber para fazer figuração no show. Deveria haver uma modalidade de patrocínio que considerasse as necessidades da plateia. Um banco, por exemplo, poderia fechar o teatro e enchê-lo de convidados felizes e animados. Aí todo mundo aplaude qualquer coisa, até mesmo a grande arte de João. Eu me pergunto por que ele não se limita a fazer uma apresentação inesquecível, e pronto? João, pare com esse estrelismo e vem pro samba sambar!

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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Por que os filósofos não riem

Desde os gregos, a filosofia vê o riso e a gargalhada como atos grosseiros. Um novo livro afirma que os pensadores não deveriam se levar tão a sério

 

 

 

"Penso, logo rio.” Tal afirmação jamais saiu da boca de um filósofo. O filólogo e pensador alemão Manfred Geier vasculhou a história da filosofia atrás da resposta para uma questão simples: por que os filósofos são tão sérios e riem tão pouco? “Ainda hoje, soltar uma gargalhada em debates filosóficos é visto como um ato grosseiro”, disse Geier a ÉPOCA. “Não deveria ser assim.” O resultado de suas investigações é o ensaio Do que riem as pessoas inteligentes? (Editora Record, 302 páginas, R$ 42,90). “Quis fazer uma excursão pela história da filosofia”, diz Geier. “Durante a jornada, perguntei: o que os filósofos pensaram sobre a graça, o humor e o riso, e em que situações eles próprios riram de determinados temas?”

 Geier responde a essas perguntas com sua “pequena filosofia do riso”. Para isso, usa o método de um de seus escritores favoritos, Michel de Montaigne, que costumava dizer: “Não ensino uma teoria, mas conto histórias”. Em sua viagem, Geier pretende provar que existem pessoas inteligentes que amam o saber e não aceitam que uma boa gargalhada seja excluída das altas discussões. Geier diz que o riso foi expulso da filosofia desde o início da prática acadêmica, na Antiguidade. De acordo com ele, o grego Platão (427-347 a.C.) foi o maior responsável por banir o riso do debate filosófico. Segundo o historiador Diógenes Laércio, Platão era “tão casto e sério que ninguém jamais o vira rir muito”. Por volta de 385 a.C., ao fundar sua escola, a Academia – nome inspirado no bosque Academia, em Atenas, em homenagem ao herói Academo –, Platão desejava formar sábios virtuosos e graves. Ele menciona o riso em seus Diálogos, mas apenas para rejeitá-lo. Na República, defende o governo dos filósofos e denuncia “o malefício do prazer do riso”, indigno do homem livre. Condena a risada frouxa dos deuses, cantada por Homero e Hesíodo. Tal filosofia se baseia nos ensinamentos do mestre de Platão, Sócrates (469-399 a.C.), também ele, diz Platão, defensor da seriedade. (Embora Xenofonte, outro discípulo de Sócrates, tenha descrito o mestre como um bonachão frequentador de banquetes.)

 O maior antagonista da Academia platônica foi Demócrito (c. 470-370 a.C.), conhecido como “o filósofo que ri”. Platão odiava-o a ponto de dizer que, se pudesse, recolheria todos os seus livros para queimá-los. Restaram apenas 300 fragmentos de Demócrito. Ele opunha o idealismo platônico a uma teoria materialista, o atomismo, cuja primeira lei é: “A origem de tudo são os átomos e o vazio; todo o resto não passa de opinião oscilante”. Demócrito afirma que, dado o vazio, o objetivo da vida está em preencher a alma com alegria. O caminho para sua realização é rir de tudo, de todos e de si próprio. Demócrito não fez escola, embora Aristóteles (384-322 a.C.) tenha partido de suas ideias para descrever o funcionamento físico do riso e sua relação com a comédia. Para Aristóteles, o riso é apaziguador, pois funciona como uma válvula de escape para as paixões.

 Diógenes (c. 410-323 a.C) foi o último dos pensadores gregos a fazer a apologia do riso. Para ele, o riso é sarcástico e destruidor. Era chamado de cínico porque vivia com um cão (kynos, em grego, de onde vem “cinismo”) numa barrica, desprezando os bens materiais. Para o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, a arma de Diógenes “não é tanto a análise, e mais a risada”. O prazer de viver, dizia Diógenes, é obtido pelo conhecimento das coisas necessárias, não pela posse. Uma anedota da Antiguidade conta que ele se encontrou com Alexandre, o Grande. O imperador se aproximou do filósofo, deitado ao ar livre, e, jogando sombra sobre ele, disse: “Pede-me o que quiseres”. Ao que Diógenes respondeu: “Devolve meu sol”.

 Para encontrar eco das ideias de Demócrito em tempos recentes, diz Geier, é necessário visitar as “correntes subterrâneas da história da filosofia”. Somente no século XVIII, o riso passou por uma reabilitação, embora parcial. E as zombarias de Diógenes só foram redimidas por autores iluministas, como Christoph Martin Wieland (1733-1813) e Immanuel Kant (1724-1804). Wieland adotou Diógenes como modelo, “forasteiro desgrenhado”, ansioso por liberdade e dono de um humor iconoclasta. Na Crítica do juízo (1790), Kant retomou a fisiologia do riso, esboçada por Demócrito e Aristóteles. “A energia vital promovida no corpo, a paixão que movimenta as vísceras e o diafragma, dando a sensação de saúde (...) constituem o prazer que se tem em poder tocar o corpo através da alma e usar esta como médico do corpo”, disse Kant.

 O que os filósofos pensam hoje sobre o riso vem dessa tradição. Geier divide as visões atuais em três vertentes. A primeira, tradicional, afirma que o riso é a expressão dos sentimentos de superioridade de quem ri sobre as outras pessoas. Poderia ser chamada de esnobismo. Há a vertente da “teoria da incongruência”, a mais popular. Ela diz que o mundo está tão cheio de contradições e absurdos que há sempre um motivo para dar risadas. Por fim, há a teoria do alívio, formulada por Herbert Spencer, fundador da psicanálise. Ele chamou a atenção para o poder terapêutico da risada. O próprio pai da medicina, Hipócrates, dizia que rir faz bem à saúde, embora não achasse muito saudável o riso exagerado de Demócrito. “O riso é a válvula de escape dos excessos de energia nervosa”, diz Geier. “Ele alivia a tensão nervosa.”

 O que afinal significa o riso e para que ele serve em nossa vida? É um ato de reflexão ou esnobismo estúpido? Tem mesmo poder de curar? As três correntes de pensamento ensinam sobre o ato de pensar e sobre a vida diária. “Quando você lê sobre o que fez os filósofos rir, aprende sobre as contradições e as ambiguidades da vida”, afirma Geier. “Essas mudanças de estado psicológico provocam risadas e bem-estar, aos acadêmicos e às pessoas comuns.” Quem ri, inevitavelmente, filosofa. 

 

 

(Época, CULTURA - 28/10/2011)

 

 

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Quem vê carro quer ver famíia

[[posterous-content:pid___0]]

 

Normal 0 21

Não posso reclamar de solidão porque vivo cercado de gente. Por isso, para mim os momentos em que passo sozinho não são nada dolorosos. Ao contrário, servem para refletir, ouvir as músicas que amo, fazer planos para os próximos minutos e mesmo pensar em abstrato, sem um alvo fixo. Mas hoje a solidão dos outros me contagia. Estou só no carro, indo ao trabalho. Ouço um triste quinteto com piano e cordas e olho para frente com lágrimas impostas pelo compositor nos olhos. Vejo apenas as traseiras dos carros que nervosamente passam à minha frente.

Sou devagar no carro, não acelero muito talvez para não sentir o tempo passar. Os outros são diferentes, e não formam exatamente o paraíso que inventei em alguma história. É isto: ao dirigir o carro, escrevo mentalmente histórias, que podem ser chamadas de crônicas porque no Brasil poema em prosa é crônica. Sim, estou distraído no meio do trânsito, os outros buzinam e sou puxado por todos os lados, tenho de acelerar e parar quando me forçam a isso. O clima está meio frio, as janelas de todos os veículos estão fechadas. É um hábito recente, derivado do excesso de violência e assédio nas esquinas.

Lembro que não havia solidão no trânsito quando todo mundo andava de janela aberta, batia papo com o motorista do carro do lado, ou mesmo o insultava com ímpeto. Eu gostava de observar a madame nervosa que esnobava os outros de seu carrão alto; o mocinho que, ao volante, enchia o peito se fingindo de adulto; o profissional paramentado para ir, todo ereto no banco, ao trabalho; o mano dançando com som alto; a mãe que transportava um enxame de filhos barulhentos, mais o cachorro tomador de vento; o folclórico velho de chapéu que rareia, até porque chapéu voltou à cabeça dos jovens... Essa divertida fauna sobre jaulas motorizadas sumiu para dentro dos veículos superprotegidos, que mais parecem incubadoras ou foguetes. Hoje, as pessoas se esconderam por trás do insufilm – já quase não é possível observar o quem está dentro dos carros.

Talvez para compensar o isolamento, começaram a surgir adesivos nas traseiras dos carros. São adesivos de identidade, de todos os tipos e feitios. Eles pretendem obviamente revelar as personalidades, os gostos e até os origens do motorista e dos passageiros. Os carros agora querem dizer coisas específicas, enviar mensagens determinadas para quem está fora e em volta. Os bairristas exibem orgulhosamente as bandeiras de seus estados, só mesmo conhecida e compartilhada por seus concidadãos. Descubro hordas de gaúchos pela cidade, já que muitos fazem questão de usar a bandeira verde, vermelha e amarela do estado, que eu conheço por ser de lá (confesso: eu próprio já usei a bandeira farroupilha no meu carro, para assim ser reconhecidos pelos conterrâneos, e só por eles). As gentes manifestam sua fé, ao grudar no carro símbolos religiosos: cruzes, peixes (sabe-se que é um carro evangélico), estrelas de Davi, terços de imagens da Virgem Maria. Curiosamente, para falar na religião mais forte do pais, poucos ousam exibir símbolos de times de futebol, por medo de depredação da torcida rival. Médicos e advogados trazem suas respectivas credenciais simbólicas em suas respectivas traseiras. Parecem dizer: “olha o respeito, você aí!). Há aqueles motoristas que, ao contrário, espantam o medo ao querer infundir pavor, e se jactam de pertencer a algum clube secreto ou a uma tribo temível. Esses ostentam um símbolo como uma carranca amedrontadora. Como não temer a caveira do metaleiro, o distintivo de algum tribunal de alçada ou o esquadro e o compasso de um maçom veloz e intrépido?

Em tempos recuados, havia a filosofia dos parachoques de caminhão. Os caminhoneiros eram os maiores solitários do Brasil. Viviam longe de namoradas e da família. Só lhes sobrava um pouco de humor para compartilhar com quem os ultrapassava. Quantos aforismos maravilhosos não li em alta velocidade: “De pensar, morreu um burro, e, aposto que ainda não entendeu!” “Estrada reta é igual à mulher sem cintura, só dá sono.” “Divórcio é igual engenho, só devolve o bagaço.” “Há males que vem para pior.” “Se a prática conflita com a teoria, muda-se a teoria!” “Do frio do sul ao calor do norte, montado na morte, à procura da sorte” “Se a vida é um buraco, esta rua é cheia de vida”. Essas frases geniais dos caminhoneiro – que valem uma crônica à parte - estão desaparecendo das estradas, talvez porque tenham arranjado companhia fixa, talvez porque instalaram DVD-player na boleia, ou porque a nova ortografia aboliu a palavra “para-choque” e a substitui por uma feiosa “parachoque”. Com isso, os motoristas de caminhão estão perdendo o traço que os distinguia dos outros. Hoje a maioria usa o símbolo banal da companhia de seguros ou então os dizeres colados pelo dono da empresa de transporte com uma pergunta específica: “Como estou dirigindo? Ligue para...” Não existe mais metafísica nem mesmo no seu último baluarte: as carrocerias dos caminhões.

De um tempo para cá, noto que os carros e até os caminhões andam exibindo bonequinhos que representam um grupo de pessoas. São figurinhas simples, quase desprovidas de senso artístico que começaram a povoar todo tipo de veículo. Elas não estão ali apenas para fins de decoração, como anos atrás acontecia com Bart Simpson, Pink e o Cérebro e outros personagens de desenho animado. Não: as novas imagens têm um sentido específico, elas representam quem está dentro do carro, ou melhor, quem o ocupa habitualmente: a conjuntos com pai, mulher e filhos; outros já trazem o gato e o cão; há os que incluem até a sogra no alegre grupo de passageiros. A moda pegou. Trata-se de uma nova forma de afetividade. É também uma forma de informar que dentro do carro tem gente, tem muita gente. E também de parecer inofensivo aos outros motoristas. Alguns especialistas chegam a dizer que as “familinhas” põem os passageiros em perigo, pois assim os bandidos podem detectar facilmente quem está dentro do veículo que pretendem assaltar. É um pouco de paranoia desses experts.

Não vejo perigo nem desdouro nos adesivos de identidade. Eles são veículos de proteção e de aproximação, formas de expressão de credo, origem, profissão e vínculo. Nada mais. Aqui do meu carro lento, suponho que o problema não seja o que desejam dizer, mas o que evitam dizer: as figurinhas passaram a servir como substitutos das relações humanas reais. Funcionam como uma anestesia à solidão que, apesar de toda a nova iconografia, insiste em existir. Quem vê carro quer ver coração. Mas acaba por enxergar o vazio que quer se ocultar sob a aparência de algum sentido.

 

Quem vê carro quer ver famíia

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Normal 0 21

Não posso reclamar de solidão porque vivo cercado de gente. Por isso, para mim os momentos em que passo sozinho não são nada dolorosos. Ao contrário, servem para refletir, ouvir as músicas que amo, fazer planos para os próximos minutos e mesmo pensar em abstrato, sem um alvo fixo. Mas hoje a solidão dos outros me contagia. Estou só no carro, indo ao trabalho. Ouço um triste quinteto com piano e cordas e olho para frente com lágrimas impostas pelo compositor nos olhos. Vejo apenas as traseiras dos carros que nervosamente passam à minha frente.

Sou devagar no carro, não acelero muito talvez para não sentir o tempo passar. Os outros são diferentes, e não formam exatamente o paraíso que inventei em alguma história. É isto: ao dirigir o carro, escrevo mentalmente histórias, que podem ser chamadas de crônicas porque no Brasil poema em prosa é crônica. Sim, estou distraído no meio do trânsito, os outros buzinam e sou puxado por todos os lados, tenho de acelerar e parar quando me forçam a isso. O clima está meio frio, as janelas de todos os veículos estão fechadas. É um hábito recente, derivado do excesso de violência e assédio nas esquinas.

Lembro que não havia solidão no trânsito quando todo mundo andava de janela aberta, batia papo com o motorista do carro do lado, ou mesmo o insultava com ímpeto. Eu gostava de observar a madame nervosa que esnobava os outros de seu carrão alto; o mocinho que, ao volante, enchia o peito se fingindo de adulto; o profissional paramentado para ir, todo ereto no banco, ao trabalho; o mano dançando com som alto; a mãe que transportava um enxame de filhos barulhentos, mais o cachorro tomador de vento; o folclórico velho de chapéu que rareia, até porque chapéu voltou à cabeça dos jovens... Essa divertida fauna sobre jaulas motorizadas sumiu para dentro dos veículos superprotegidos, que mais parecem incubadoras ou foguetes. Hoje, as pessoas se esconderam por trás do insufilm – já quase não é possível observar o quem está dentro dos carros.

Talvez para compensar o isolamento, começaram a surgir adesivos nas traseiras dos carros. São adesivos de identidade, de todos os tipos e feitios. Eles pretendem obviamente revelar as personalidades, os gostos e até os origens do motorista e dos passageiros. Os carros agora querem dizer coisas específicas, enviar mensagens determinadas para quem está fora e em volta. Os bairristas exibem orgulhosamente as bandeiras de seus estados, só mesmo conhecida e compartilhada por seus concidadãos. Descubro hordas de gaúchos pela cidade, já que muitos fazem questão de usar a bandeira verde, vermelha e amarela do estado, que eu conheço por ser de lá (confesso: eu próprio já usei a bandeira farroupilha no meu carro, para assim ser reconhecidos pelos conterrâneos, e só por eles). As gentes manifestam sua fé, ao grudar no carro símbolos religiosos: cruzes, peixes (sabe-se que é um carro evangélico), estrelas de Davi, terços de imagens da Virgem Maria. Curiosamente, para falar na religião mais forte do pais, poucos ousam exibir símbolos de times de futebol, por medo de depredação da torcida rival. Médicos e advogados trazem suas respectivas credenciais simbólicas em suas respectivas traseiras. Parecem dizer: “olha o respeito, você aí!). Há aqueles motoristas que, ao contrário, espantam o medo ao querer infundir pavor, e se jactam de pertencer a algum clube secreto ou a uma tribo temível. Esses ostentam um símbolo como uma carranca amedrontadora. Como não temer a caveira do metaleiro, o distintivo de algum tribunal de alçada ou o esquadro e o compasso de um maçom veloz e intrépido?

Em tempos recuados, havia a filosofia dos parachoques de caminhão. Os caminhoneiros eram os maiores solitários do Brasil. Viviam longe de namoradas e da família. Só lhes sobrava um pouco de humor para compartilhar com quem os ultrapassava. Quantos aforismos maravilhosos não li em alta velocidade: “De pensar, morreu um burro, e, aposto que ainda não entendeu!” “Estrada reta é igual à mulher sem cintura, só dá sono.” “Divórcio é igual engenho, só devolve o bagaço.” “Há males que vem para pior.” “Se a prática conflita com a teoria, muda-se a teoria!” “Do frio do sul ao calor do norte, montado na morte, à procura da sorte” “Se a vida é um buraco, esta rua é cheia de vida”. Essas frases geniais dos caminhoneiro – que valem uma crônica à parte - estão desaparecendo das estradas, talvez porque tenham arranjado companhia fixa, talvez porque instalaram DVD-player na boleia, ou porque a nova ortografia aboliu a palavra “para-choque” e a substitui por uma feiosa “parachoque”. Com isso, os motoristas de caminhão estão perdendo o traço que os distinguia dos outros. Hoje a maioria usa o símbolo banal da companhia de seguros ou então os dizeres colados pelo dono da empresa de transporte com uma pergunta específica: “Como estou dirigindo? Ligue para...” Não existe mais metafísica nem mesmo no seu último baluarte: as carrocerias dos caminhões.

De um tempo para cá, noto que os carros e até os caminhões andam exibindo bonequinhos que representam um grupo de pessoas. São figurinhas simples, quase desprovidas de senso artístico que começaram a povoar todo tipo de veículo. Elas não estão ali apenas para fins de decoração, como anos atrás acontecia com Bart Simpson, Pink e o Cérebro e outros personagens de desenho animado. Não: as novas imagens têm um sentido específico, elas representam quem está dentro do carro, ou melhor, quem o ocupa habitualmente: a conjuntos com pai, mulher e filhos; outros já trazem o gato e o cão; há os que incluem até a sogra no alegre grupo de passageiros. A moda pegou. Trata-se de uma nova forma de afetividade. É também uma forma de informar que dentro do carro tem gente, tem muita gente. E também de parecer inofensivo aos outros motoristas. Alguns especialistas chegam a dizer que as “familinhas” põem os passageiros em perigo, pois assim os bandidos podem detectar facilmente quem está dentro do veículo que pretendem assaltar. É um pouco de paranoia desses experts.

Não vejo perigo nem desdouro nos adesivos de identidade. Eles são veículos de proteção e de aproximação, formas de expressão de credo, origem, profissão e vínculo. Nada mais. Aqui do meu carro lento, suponho que o problema não seja o que desejam dizer, mas o que evitam dizer: as figurinhas passaram a servir como substitutos das relações humanas reais. Funcionam como uma anestesia à solidão que, apesar de toda a nova iconografia, insiste em existir. Quem vê carro quer ver coração. Mas acaba por enxergar o vazio que quer se ocultar sob a aparência de algum sentido.

 

Quem vê carro quer ver famíia

Familia

 

Normal 0 21

Não posso reclamar de solidão porque vivo cercado de gente. Por isso, para mim os momentos em que passo sozinho não são nada dolorosos. Ao contrário, servem para refletir, ouvir as músicas que amo, fazer planos para os próximos minutos e mesmo pensar em abstrato, sem um alvo fixo. Mas hoje a solidão dos outros me contagia. Estou só no carro, indo ao trabalho. Ouço um triste quinteto com piano e cordas e olho para frente com lágrimas impostas pelo compositor nos olhos. Vejo apenas as traseiras dos carros que nervosamente passam à minha frente.

Sou devagar no carro, não acelero muito talvez para não sentir o tempo passar. Os outros são diferentes, e não formam exatamente o paraíso que inventei em alguma história. É isto: ao dirigir o carro, escrevo mentalmente histórias, que podem ser chamadas de crônicas porque no Brasil poema em prosa é crônica. Sim, estou distraído no meio do trânsito, os outros buzinam e sou puxado por todos os lados, tenho de acelerar e parar quando me forçam a isso. O clima está meio frio, as janelas de todos os veículos estão fechadas. É um hábito recente, derivado do excesso de violência e assédio nas esquinas.

Lembro que não havia solidão no trânsito quando todo mundo andava de janela aberta, batia papo com o motorista do carro do lado, ou mesmo o insultava com ímpeto. Eu gostava de observar a madame nervosa que esnobava os outros de seu carrão alto; o mocinho que, ao volante, enchia o peito se fingindo de adulto; o profissional paramentado para ir, todo ereto no banco, ao trabalho; o mano dançando com som alto; a mãe que transportava um enxame de filhos barulhentos, mais o cachorro tomador de vento; o folclórico velho de chapéu que rareia, até porque chapéu voltou à cabeça dos jovens... Essa divertida fauna sobre jaulas motorizadas sumiu para dentro dos veículos superprotegidos, que mais parecem incubadoras ou foguetes. Hoje, as pessoas se esconderam por trás do insufilm – já quase não é possível observar o quem está dentro dos carros.

Talvez para compensar o isolamento, começaram a surgir adesivos nas traseiras dos carros. São adesivos de identidade, de todos os tipos e feitios. Eles pretendem obviamente revelar as personalidades, os gostos e até os origens do motorista e dos passageiros. Os carros agora querem dizer coisas específicas, enviar mensagens determinadas para quem está fora e em volta. Os bairristas exibem orgulhosamente as bandeiras de seus estados, só mesmo conhecida e compartilhada por seus concidadãos. Descubro hordas de gaúchos pela cidade, já que muitos fazem questão de usar a bandeira verde, vermelha e amarela do estado, que eu conheço por ser de lá (confesso: eu próprio já usei a bandeira farroupilha no meu carro, para assim ser reconhecidos pelos conterrâneos, e só por eles). As gentes manifestam sua fé, ao grudar no carro símbolos religiosos: cruzes, peixes (sabe-se que é um carro evangélico), estrelas de Davi, terços de imagens da Virgem Maria. Curiosamente, para falar na religião mais forte do pais, poucos ousam exibir símbolos de times de futebol, por medo de depredação da torcida rival. Médicos e advogados trazem suas respectivas credenciais simbólicas em suas respectivas traseiras. Parecem dizer: “olha o respeito, você aí!). Há aqueles motoristas que, ao contrário, espantam o medo ao querer infundir pavor, e se jactam de pertencer a algum clube secreto ou a uma tribo temível. Esses ostentam um símbolo como uma carranca amedrontadora. Como não temer a caveira do metaleiro, o distintivo de algum tribunal de alçada ou o esquadro e o compasso de um maçom veloz e intrépido?

Em tempos recuados, havia a filosofia dos parachoques de caminhão. Os caminhoneiros eram os maiores solitários do Brasil. Viviam longe de namoradas e da família. Só lhes sobrava um pouco de humor para compartilhar com quem os ultrapassava. Quantos aforismos maravilhosos não li em alta velocidade: “De pensar, morreu um burro, e, aposto que ainda não entendeu!” “Estrada reta é igual à mulher sem cintura, só dá sono.” “Divórcio é igual engenho, só devolve o bagaço.” “Há males que vem para pior.” “Se a prática conflita com a teoria, muda-se a teoria!” “Do frio do sul ao calor do norte, montado na morte, à procura da sorte” “Se a vida é um buraco, esta rua é cheia de vida”. Essas frases geniais dos caminhoneiro – que valem uma crônica à parte - estão desaparecendo das estradas, talvez porque tenham arranjado companhia fixa, talvez porque instalaram DVD-player na boleia, ou porque a nova ortografia aboliu a palavra “para-choque” e a substitui por uma feiosa “parachoque”. Com isso, os motoristas de caminhão estão perdendo o traço que os distinguia dos outros. Hoje a maioria usa o símbolo banal da companhia de seguros ou então os dizeres colados pelo dono da empresa de transporte com uma pergunta específica: “Como estou dirigindo? Ligue para...” Não existe mais metafísica nem mesmo no seu último baluarte: as carrocerias dos caminhões.

De um tempo para cá, noto que os carros e até os caminhões andam exibindo bonequinhos que representam um grupo de pessoas. São figurinhas simples, quase desprovidas de senso artístico que começaram a povoar todo tipo de veículo. Elas não estão ali apenas para fins de decoração, como anos atrás acontecia com Bart Simpson, Pink e o Cérebro e outros personagens de desenho animado. Não: as novas imagens têm um sentido específico, elas representam quem está dentro do carro, ou melhor, quem o ocupa habitualmente: a conjuntos com pai, mulher e filhos; outros já trazem o gato e o cão; há os que incluem até a sogra no alegre grupo de passageiros. A moda pegou. Trata-se de uma nova forma de afetividade. É também uma forma de informar que dentro do carro tem gente, tem muita gente. E também de parecer inofensivo aos outros motoristas. Alguns especialistas chegam a dizer que as “familinhas” põem os passageiros em perigo, pois assim os bandidos podem detectar facilmente quem está dentro do veículo que pretendem assaltar. É um pouco de paranoia desses experts.

Não vejo perigo nem desdouro nos adesivos de identidade. Eles são veículos de proteção e de aproximação, formas de expressão de credo, origem, profissão e vínculo. Nada mais. Aqui do meu carro lento, suponho que o problema não seja o que desejam dizer, mas o que evitam dizer: as figurinhas passaram a servir como substitutos das relações humanas reais. Funcionam como uma anestesia à solidão que, apesar de toda a nova iconografia, insiste em existir. Quem vê carro quer ver coração. Mas acaba por enxergar o vazio que quer se ocultar sob a aparência de algum sentido.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Yamandu, a genius with the size of music

Yamandu

  On the CD with which he became famous, Yamandu Live , the fourth of his career, the guitarist Yamandy Costa still had unbridled virtuosity that made him famous in his early career, his side gaucho super fussy and lacking so typical of our Southern culture . But he soon proved he was seven teachers in a single instrument.

Yamandu, um gênio do tamanho da música

Yamandu

 A primeira vez que ouvi falar em Yamandu Costa foi no final do século passado na casa do compositor Guinga, no Rio de Janeiro. Guinga me disse de seu espanto de ouvir um jovem violonista que, de tão genial, parecia a reencarnação de Raphael Rabello: “Ele se chama Diamandu. Até o nome dele é diabólico”, disse Guinga. “Ele é parecidíssimo com o Raphael, e você vai ouvir falar dele em breve.” Nunca subestimo as profecias dos artistas. Por experiência própria, sei que, salvo erro, elas costumam se realizar. “Você vai notar uma característica nele, que eu acho um pouco inquietante”, disse Guinga. “Como eu disse a ele certa vez: ‘Diamandu, você só tem um defeito. Você quer ser maior que a música’.”

            O vaticínio se cumpriu. Não demorou muito para eu ouvir falar de Diamandu, que em 1999 lançava o seu primeiro CD. Até então ele não se chamava Yamandu, não sei por quê mudou de nome, mas imagino que seja pela sonoridade e pela pronúncia meio uruguaia que seu nome guarda: “yamandu” é pronunciado “diamandu” no acento oriental. Fui ouvi-lo em um show, e fiquei impressionado com a liberdade que ele tomava com seu instrumento e, mais ainda, com as músicas que tocava. Seus dedos feriam asperamente as cordas, em uma ânsia em dominar os gêneros brasileiros, do regional sul-riograndense ao choro, o público e tudo o que estava à sua volta. Era um ímpeto dominador, e muitas vezes demolidor. Não é que o Guinga tinha razão? Ele parecia querer se apossar da música, impor-se a ela.

            No CD que o projetou nacionalmente, Yamandu Ao Vivo, o quarto da carreira, ele ainda exibia o virtuosismo desenfreado que o notabilizou no início da carreira, seu lado de gaúcho espalhafatoso e desprovido de superego tão típico de nossa cultura sulista.

            Yamandu nasceu em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, em 25 de janeiro de 1974, de pais músicos: a cantora gauchesca Clari Marson e o multi-instrumentista Algacir Costa.  Suas primeiras influências são os ritmos da cultura gaúcha, compartilhada por brasileiros, uruguaios e argentinos. Ele conta que começou a expandir sua visão de mundo quando ouviu as composições do conterrâneo Radamés Gnatalli, o maestro que fundiu jazz, choro e música clássica genialmente. Foi assim que Yamandu decidiu se dedicar à música brasileira, incluindo os ritmos sulistas a sua corrente principal.

            Começou exagerado. Felizmente, com o passar do tempo e o amadurecimento, Yamandu domou seus impulsos, passou a frequentar o eixo Rio-São Paulo, conviver com músicos e a ampliar suas referências musicais – e principalmente aprendeu a refinar sua arte de interpretação. Dos 15 discos lançados em 22 anos, destacam-se os que fez em parceria com Paulo Moura, Dominguinhos e Hamilton de Hollanda: são obras-primas, cada uma delas em um tipo de música, cada uma delas indicando um degrau na formação do gênio musical que se tornou Yamandu.

            Seu primeiro CD solo, Mafuá é uma espécie de resumo do violonista e de seu lado de compositor. O trabalho saiu em 2007 na Alemanha, onde foi gravado, e somente agora é editado em versão brasileira pela Biscoito Fino. É a melhor introdução para entender a inspiração grandiosa do Yamandu senhor de sua técnica, arte e interpretação. O álbum compreende 13 faixas, em um passeio pelos gêneros sulistas, o samba e o choro. Yamandu baixou a bola, desceu do salto alto do exibicionismo e agora está do tamanho da música – da grande música, bem entendido...  

Lenine's new sonic space

Lenine

The singer-songwriter Lenine's tenth album of his career, Chão, cannot be called as a surprise because he has already established itself as one of the most powerful voices of contemporary Brazilian music. It is a work at the same time electro-acoustic, avant-garde and (why not?)  outdated. A mature work of ten tracks, taken from the musician's spritit, as a reflection on the current phase of the life and career of the musician. Lenine construct songs that sound more like "grooves", edited and finished tracks themselves, keeping intact its peculiar style, based on the rock in northeastern folklore and in the best of MPB. Although he exhibits a tendeyncy to over-rationality, Lenine's work is one of the best albums of Brazilian music in 2011.

 

 

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Por que todos viramos bregas

 

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 Discos sempre foram para mim fontes de descoberta. Talvez o hábito de ouvi-los tenha ficado fora de moda por causa da internet e da pirataria, mas nada se compara em nitidez sonora a um CD feito com plástico, alumínio e bits sonoros. Pois ontem escutei dois discos de duas cantoras representantes de faixas de público aparentemente diversas que me ajudaram a refletir sobre a atual situação da música popular brasileira: O que você quer saber de verdade (EMI), da cult MPB carioca Marisa Monte, e Ao Vivo (Universal), da mineira e sertaneja Paula Fernandes.

Há dez anos, para não ir muito longe, minha experiência sonora seria considerada abstrusa, pois obviamente duas artistas de registros tão diferentes iriam apenas mostrar a multiplicidade da música brasileira – e reafirmariam minhas convicções em relação àquilo que é refinamento e singeleza. Marisa, representante da alta cultura; Paula, das camadas populares. Mas minha experiência não se deu assim. Antes pelo contrário: o que eu ouvi nos dois discos são cantoras quase idênticas, entoando baladas românticas muito simples, acompanhadas por instrumentos acústicos, repletas de uma versalhada tida antes por piegas, tresmolhados de bons sentimentos e mensagens de amor nada discretas. Ambas seriam chamadas de bregas no Brasil Velho. Nos anos 60 e 70, a música romântica influenciada pelo bolero, a modinha e a toada caipira era considerada um produto barato, para uso do  povão. Nos 80, bandas da vanguarda paulistana e cantores como Eduardo Dussek exploraram a verve paródica, meio que esnobandoo brega, mas lucrando com o gênero. Depois da apreensão ingênua e da paródica, as pessoasassumiram o gênero com pungente fé. Hoje o brega é a convicção de um povo. Ele se consagrou. Marisa e Paula, duas grandes artistas vocais brasileiras, assumem com serenidade o novo bom gosto. Uma prova de que o brega se converteu em cult –e vice-versa.

O cult está brega. Isso quer dizer que o cidadão brasileiro cool e descoladose vale de todo tipo de referências para compor a sua roupa, seu modo de agir e seu imaginário. Esse novo comportamento reflete a mudança demográfica do país, com a ascensão das classes C e D. Essas camadas se tornaram importantes e terminam por impor seu gosto, seushábitos e costumes ao restante da sociedade de consumo. A gente vê isso na novela Fina Estampa, da TV Globo, de Aguinaldo Silva. Ela relata a ascensão social da pobretona Griselda (Lília Cabral), que de quebra-galho se torna empresária. A novela não maquia a luta de classes, e mostra o conflito entre a emergente Griselda e a socialite Maria Teresa (Cristiane Torloni). Baseado em pesquisas, o autor faz um retrato realista de como a mulher brasileira se tornou chefe de família, está galgando posições – e, no universo da cultura, obriga a turma do narizinho empinado a prestar atenção no que ela gosta, no que ela sente, pensa e consome. Esse “ovo Brasil” é uma realidade insofismável. É preciso considerá-la e respeitá-la. Os novos-ricos e os novos-classe-média vieram para ficar e se mostrar, para horror das marias-teresas da vida.

Além da novela, o cinema brasileiro tem explorado, de uns cinco aos para cá, o universo da nova classe média: são favelas que enriquecem com o tráfico e o tráfico que domina os “bem-nascidos”(Tropa de Elite 1 e 2, Meu nome não é Johhny), mulheres que lutam para sobreviver sem preconceito (O céu de Suely, Bruna Surfistinha, De pernas para o ar), formas de arte em extinção que insistem em se manter vivas (O palhaço, Suprema Felicidade), personagens que questionam a identidade e os tabus sexuais (Se eu fosse você 1 e 2). É um novo mundo que se descortina, e talvez não se coadune com aquela ilha da fantasia sonhada pelos estetas, que hoje só sabem admirar o cinema classe-média-bonitinha da Argentina. Infelizmente (eu diria felizmente), o Brasil não é a Argentina. O Brasil se mostra muito mais rico e variado em termos demográficos e, por isso, culturais. Se é cultura “inferior” nos padrões europeus, paciência.

Os gostos, os hábitos, os amores e os ventos mudam, já dizia o poeta seiscentista Luís de Camões. Até a novidade sofre tantas e tamanhas metamorfoses em sua estrutura que chega o dia em que as coisas mais antigas, descartáveis e antes desprezíveis viram artigo de luxo. Experimentamos hoje o choque do velho, em contraposição ao que preconizavam as vanguardas artísticas até os anos 1920. No terreno da música cultura de massa, o processo se acelera ainda mais. Não apenas velhos paradigmas voltam à tona – trata-se de uma forma de reciclagem rápida dos produtos culturais – como também os usos e costumes de classes sociais antes antagônicas começam a interagir e a se fundir de forma irreversível, alterando o que se pensa sobre o mundo e como se consome arte, entre outras coisas.

Mas voltemos à música, que sempre foi a antena das tendências por aqui, e, apesar de viver momentos não muito brilhantes, continua a ser uma arena de mudanças. O que tem acontecido na música brasileira é uma quebra de paradigma. Caiu a hegemonia do eixo Rio-São Paulo. A música axé da Bahia tomou conta do país inteiro, e gerou estrelas como Ivete Sangalo, Claudia Leitte e Carlinhos Brown. O interior invadiu as capitais, e surgiu o forró universitário e, mais recentemente, o sertanejo universitário. O funk se fundiu com o samba e a MPB. E vieram para baixo os sons amazônicos. Época publicou recentemente uma reportagem intitulada “E o brega virou cult”, de Mariana Shirai, sobre o gênero tecnobrega paraense e sua influência no movimento Avalanche Tropical, que congrega bandas e DJs bregas do país inteiro. Dessa enxurrada fazem parte a cantoraGaby Amarantos, Garotas Suecas e a Banda Uó.

O que as vertentes do pós-bom gosto ensinam? Em primeiro lugar, que é inútil ter preconceitos musicais, porque ela é invasiva mesmo, capaz que é de se apossar de sua alma. Em segundo, que aquilo que é considerado de mau-gosto na verdade ajuda a enriquecer a imaginação. Em terceiro, que nada é fixo no mundo, e nada mais dinâmico e pervasivo que o som. Quarto, torna-se urgente reavaliar nossas próprias crenças artísticas.

Por isso, finalmente o “populacho” e os “caipiras” invadiram os salões. Na nova geopolítica sonora do Brasil, podemos ouvir os ecos do brega na voz de Marisa Monte, e traços de erudição na de Paula Fernandes. Junte as duas e o resultado será parecido com Vanessa da Mata, uma acoplagem do sertanejo e do alto pop dançante. Junte a duas e você ouve a volta ainda não anunciada de Zezé di Camargo & Luciano. Você vai entender nas entrelinhas o tecnobrega, a axé. Junte-as em uma audição e você comporá o seu rosto. O Brasil joga na nossa cara quem e como somos de fato. Querendo ou não, se fazendo de culto ou nem tanto, você é brega, meu velho.

 

(www.epoca.com.br, 1/11/11)

 

 

Por que todos viramos bregas

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 Discos sempre foram para mim fontes de descoberta. Talvez o hábito de ouvi-los tenha ficado fora de moda por causa da internet e da pirataria, mas nada se compara em nitidez sonora a um CD feito com plástico, alumínio e bits sonoros. Pois ontem escutei dois discos de duas cantoras representantes de faixas de público aparentemente diversas que me ajudaram a refletir sobre a atual situação da música popular brasileira: O que você quer saber de verdade (EMI), da cult MPB carioca Marisa Monte, e Ao Vivo (Universal), da mineira e sertaneja Paula Fernandes.

Há dez anos, para não ir muito longe, minha experiência sonora seria considerada abstrusa, pois obviamente duas artistas de registros tão diferentes iriam apenas mostrar a multiplicidade da música brasileira – e reafirmariam minhas convicções em relação àquilo que é refinamento e singeleza. Marisa, representante da alta cultura; Paula, das camadas populares. Mas minha experiência não se deu assim. Antes pelo contrário: o que eu ouvi nos dois discos são cantoras quase idênticas, entoando baladas românticas muito simples, acompanhadas por instrumentos acústicos, repletas de uma versalhada tida antes por piegas, tresmolhados de bons sentimentos e mensagens de amor nada discretas. Ambas seriam chamadas de bregas no Brasil Velho. Nos anos 60 e 70, a música romântica influenciada pelo bolero, a modinha e a toada caipira era considerada um produto barato, para uso do  povão. Nos 80, bandas da vanguarda paulistana e cantores como Eduardo Dussek exploraram a verve paródica, meio que esnobandoo brega, mas lucrando com o gênero. Depois da apreensão ingênua e da paródica, as pessoasassumiram o gênero com pungente fé. Hoje o brega é a convicção de um povo. Ele se consagrou. Marisa e Paula, duas grandes artistas vocais brasileiras, assumem com serenidade o novo bom gosto. Uma prova de que o brega se converteu em cult –e vice-versa.

O cult está brega. Isso quer dizer que o cidadão brasileiro cool e descoladose vale de todo tipo de referências para compor a sua roupa, seu modo de agir e seu imaginário. Esse novo comportamento reflete a mudança demográfica do país, com a ascensão das classes C e D. Essas camadas se tornaram importantes e terminam por impor seu gosto, seushábitos e costumes ao restante da sociedade de consumo. A gente vê isso na novela Fina Estampa, da TV Globo, de Aguinaldo Silva. Ela relata a ascensão social da pobretona Griselda (Lília Cabral), que de quebra-galho se torna empresária. A novela não maquia a luta de classes, e mostra o conflito entre a emergente Griselda e a socialite Maria Teresa (Cristiane Torloni). Baseado em pesquisas, o autor faz um retrato realista de como a mulher brasileira se tornou chefe de família, está galgando posições – e, no universo da cultura, obriga a turma do narizinho empinado a prestar atenção no que ela gosta, no que ela sente, pensa e consome. Esse “ovo Brasil” é uma realidade insofismável. É preciso considerá-la e respeitá-la. Os novos-ricos e os novos-classe-média vieram para ficar e se mostrar, para horror das marias-teresas da vida.

 

Além da novela, o cinema brasileiro tem explorado, de uns cinco aos para cá, o universo da nova classe média: são favelas que enriquecem com o tráfico e o tráfico que domina os “bem-nascidos”(Tropa de Elite 1 e 2, Meu nome não é Johhny), mulheres que lutam para sobreviver sem preconceito (O céu de Suely, Bruna Surfistinha, De pernas para o ar), formas de arte em extinção que insistem em se manter vivas (O palhaço, Suprema Felicidade), personagens que questionam a identidade e os tabus sexuais (Se eu fosse você 1 e 2). É um novo mundo que se descortina, e talvez não se coadune com aquela ilha da fantasia sonhada pelos estetas, que hoje só sabem admirar o cinema classe-média-bonitinha da Argentina. Infelizmente (eu diria felizmente), o Brasil não é a Argentina. O Brasil se mostra muito mais rico e variado em termos demográficos e, por isso, culturais. Se é cultura “inferior” nos padrões europeus, paciência.

 

Os gostos, os hábitos, os amores e os ventos mudam, já dizia o poeta seiscentista Luís de Camões. Até a novidade sofre tantas e tamanhas metamorfoses em sua estrutura que chega o dia em que as coisas mais antigas, descartáveis e antes desprezíveis viram artigo de luxo. Experimentamos hoje o choque do velho, em contraposição ao que preconizavam as vanguardas artísticas até os anos 1920. No terreno da música cultura de massa, o processo se acelera ainda mais. Não apenas velhos paradigmas voltam à tona – trata-se de uma forma de reciclagem rápida dos produtos culturais – como também os usos e costumes de classes sociais antes antagônicas começam a interagir e a se fundir de forma irreversível, alterando o que se pensa sobre o mundo e como se consome arte, entre outras coisas.

 

Mas voltemos à música, que sempre foi a antena das tendências por aqui, e, apesar de viver momentos não muito brilhantes, continua a ser uma arena de mudanças. O que tem acontecido na música brasileira é uma quebra de paradigma. Caiu a hegemonia do eixo Rio-São Paulo. A música axé da Bahia tomou conta do país inteiro, e gerou estrelas como Ivete Sangalo, Claudia Leitte e Carlinhos Brown. O interior invadiu as capitais, e surgiu o forró universitário e, mais recentemente, o sertanejo universitário. O funk se fundiu com o samba e a MPB. E vieram para baixo os sons amazônicos. Época publicou recentemente uma reportagem intitulada “E o brega virou cult”, de Mariana Shirai, sobre o gênero tecnobrega paraense e sua influência no movimento Avalanche Tropical, que congrega bandas e DJs bregas do país inteiro. Dessa enxurrada fazem parte a cantoraGaby Amarantos, Garotas Suecas e a Banda Uó.

 

O que as vertentes do pós-bom gosto ensinam? Em primeiro lugar, que é inútil ter preconceitos musicais, porque ela é invasiva mesmo, capaz que é de se apossar de sua alma. Em segundo, que aquilo que é considerado de mau-gosto na verdade ajuda a enriquecer a imaginação. Em terceiro, que nada é fixo no mundo, e nada mais dinâmico e pervasivo que o som. Quarto, torna-se urgente reavaliar nossas próprias crenças artísticas.

 

Por isso, finalmente o “populacho” e os “caipiras” invadiram os salões. Na nova geopolítica sonora do Brasil, podemos ouvir os ecos do brega na voz de Marisa Monte, e traços de erudição na de Paula Fernandes. Junte as duas e o resultado será parecido com Vanessa da Mata, uma acoplagem do sertanejo e do alto pop dançante. Junte a duas e você ouve a volta ainda não anunciada de Zezé di Camargo & Luciano. Você vai entender nas entrelinhas o tecnobrega, a axé. Junte-as em uma audição e você comporá o seu rosto. O Brasil joga na nossa cara quem e como somos de fato. Querendo ou não, se fazendo de culto ou nem tanto, você é brega, meu velho.

 

(www.epoca.com.br, 1/11/11)

 

 

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domingo, 30 de outubro de 2011

How to listen to Zezé di Camargo & Luciano

I  have no particular musical prejudice. For me there are only two genres of music: good music and bad music. Not conside r mediocrity, because it pertnce the second kind, and do not pay much attention to it. Throughout life, I made some observations: the most of good music is located in classical music and jazz. The worst, in rap, especially gangsta rap. And the rest is to hunt for gems among impurities. A friend of mine used to say that in country music need not be afraid to go out on the prairie in search of uncomplicated flowers of the field. So there are some flowers in the work of uncomplicated Zézé di Camargo and Luciano. No reason to not listen to them.

Como ouvir sertanejos sem preconceio

Não tenho preconceito musical. Para mim só existem dois gêneros de música: música boa e música ruim. Nem con sidero a mediocridad e, porque ela pertnce ao segundo gênero, e não presto muito atenção nela. Ao longo da vida, fi z algu mas c  onstatações: a maior concenração de musica  boa está na música erudita e no jazz. A pior, no rap, em  especial o gangsta. E o resto do tabalho é caçar preciosidades no mal de impurezas. Um amigo meu costumava dizer que na música sertaneja é preciso não ter medo de sair pela campina à busca de flores singelas do campo. Então há algumas flores singelas na obra de Zézé di Camargo e  Luciano. Não há por que não ouvi-las.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Eco de volta ao suspense de ideias

O mestre do suspense erudito

Umberto Eco criou um gênero. O Cemitério de Praga mostra que ainda não foi superado na controvérsia e na intriga

                O escritor italiano Umberto Eco já se destacava como teórico literário, medievalista e investigador de signos quando, em 1980, lançou o seu primeiro romance, O nome da Rosa. O livro causou surpresa porque não se tratava de mais um ensaio sobre a narrativa ou os fenômenos da cultura pop – matérias nas quais Eco se mostrava mais que versado – e sim um thriller ambientado na Idade Média. O enredo, intrincado, envolve monges obcecados pela descoberta do mistério de um texto perdido: a segunda parte da Poética, de Aristóteles, que abordava a comédia. O livro foi traduzido para 44 idiomas e vendeu 5 milhões de exemplares no mundo inteiro. Trinta anos depois, Eco, de 79 anos, repete a façanha. No final de outubro de 2010, ele lançou O cemitério de Praga (editora Record, 480 páginas, R$ 49,90-, tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo), seu sexto romance, agora traduzido no Brasil. A história gira em torno das aventuras do notário Simoni Simonini, um falsário atuante na Itália e na França no século XIX, assombrado por conspirações políticas. Em uma semana, o livro vendeu meio milhão de exemplares na Itália, e se tornou o maior sucesso do escritor desde O nome da rosa.

                O segredo das vendas de Eco é conhecido. Com O nome da rosa, ele inaugurou e tornou moda um gênero de narrativa: o suspense erudito, ou, como chamam os críticos americanos, “smart thriller”. Essa modalidade ficcional pode ser decomposta em cinco partes: contém ação, com cenas de perseguição, morte e violência; apresenta um mistério que, ao ser decifrado, revela um aspecto surpreendente sobre o funcionamento do mundo; envolve, por isso, uma grande causa ou missão, a ser levada adiante pelo herói ou anti-herói; resulta de pesquisas de documentos raros ou jamais divulgados; e, finalmente, gera uma polêmica no mundo real, de preferência ao causar indignação em instituições consolidadas. Eco, ateu agnóstico, aprendeu a divertir os leitores mexendo nos nervos de entidades como a Igreja Católica e a Maçonaria. Em O nome da rosa, ele questionava a infalibilidade do papa. No romance seguinte, O pêndulo de Foucautl (1988)  lançava dúvidas sobre o esoterismo das sociedades secretas. Rejeitando a própria receita, buscou assuntos menos controversos nos anos 1990 e 2000. Seus três romances posteriores – A ilha do dia anterior (1994), sobre um náufrago desmemoriado no século XVII, Baudolino (2000), peripécia medievalesca, e as memórias de infância A misteriosa Chama da rainha Loana (2004) – nada continham do estilo com que fez a fama, e quase deixou de ser visto no mercado como best-seller.

                Eco evitou, assim, cair na armadilha da fórmula que descobriu. Mas criou um vazio, que logo foi preenchido por diversos seguidores (leia quadro abaixo). Pelo menos um deles, o americano Dan Brown, superou o mestre em vendas com o romance O código Da Vinci (2003), aventura estrelada, aliás, por um semioticista como Eco, Robert Langdon.  O romance vendeu 80 milhões de exemplares. E causou fúria entre os católicos, já que defendia a tese de que o catolicismo se fundamentaria no culto à deusa Vênus. Os smart thrillers atuais não são e nem pretendem virar obras de arte. Fazem parte da área do entretenimento. Talvez mordido pelo êxito de seus epígonos, Umberto Eco volta à carga em O cemitério de Praga. Com o livro, deseja provar que o suspense erudito deve avançar em ousadia e controvérsia, e chegar perto do que a crítica denomina alta ficção – sem, no entanto, abdicar das grandes vendagens.

                Eco também mostra que é possível voltar a fazer sucesso de escândalo. Jornais católicos e entidades judaicas denunciaram o antissemitismo do livro, parte dele narrado em primeira pessoa, contada pelo antissemita Simone Simonini, um notário com dupla personalidade: ele também responde pelo nome de padre Dalla Piccola. Eco defendeu-se em entrevista a Claudio Magris, no Corriere delal Sera, valendo-se do argumento do narrador não-confiável. : “O que coloco em cena é o discurso do antissemitismo, e é ele que persegue meu Simonini, que ‘vende”os judeus como fantasma, como um Outro que é necessário imaginar para reforçar a sua identidade nacional ou provinciana.”  Lucetta respondeu: “Não se denuncia o antissemitismo assumindo a parte dos antissemitas”.

                Talvez seja exagero levar tão a sério uma obra de ficção. Simonini conta uma história que parece ser, a um só tempo, antissemita, anticlerical, anticomunista e anticapitalista. O cemitério de Praga é uma fantasia cômica sobre a paranoia e os complôs que envolveram as revoluções de 1830 e 1848, o Risorgimento italiano, o Caso Dreyfus na França e o antissemitismo do fim do século XIX. O móvel da trama é a elaboração de O protocolo dos sábios de Sião, texto que “documenta” a reunião dos rabinos mais poderosos da Europa no cemitério judaico de Praga em meados do século XIX, com o fim de destruir a fé cristã e as instituições morais e econômicas do Ocidente.  O documento, publicado em Moscou em 1897, tornou-se popular, até ser desmascarado por uma série de reportagens do jornal The Times de Londres em 1925. O jornal descobriu que o texto havia sido criado pela Okhrana,  a polícia secreta do czar Nicolau II, para justificar a perseguição dos judeus na Rússia. Os redatores do Protocolo se basearam em uma série de panfletos antissemitas que remontavam aos tempos de Napoleão. A base oi  “O diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu” (1865), de Maurice Joly, de 1865 – personagem do romance, junto a uma galeria de vultos históricos. 

                Eco afirma no posfácio que todos os fatos são reais, exceto Simonini, talvez o personagem menos absurdo do romance. Ele jura sua missão é salvadora, que foi roubado por Joly e vem a ser o verdadeiro autor do Protocolo. A diferença está no seu alvo: em vez dos judeus, ele retratou o encontro dos jesuítas no cemitério, para dominar o mundo. Depois,  refalsificou a própria falsificação, a mando da Okhrana. Em 1860, mora na cidade natal de Turim, quando é chamado pelo papa para conspirar contra Garibaldi e a unificação da Itália. Em 1897, exilado em Paris, tem delírios xenófobos, ao mesmo tempo que, à noite,  transforma-se no jesuíta Dalla Picola para frequentar os lupanares, as casas de jogos e missas negras patrocinadas pela maçonaria e os judeus. O discurso de Simonini é tão virulento contra tudo, todos e ele próprio, que provoca risos. Ele entremeia suas diatribes com intermináveis listas de receitas de iguarias. Tudo ilustrado com gravuras extraídos dos jornais sensacionalistas do tempo.

                No enredo que oscila entre fatos e fantasias, o escritor atingiu um nível inédito de cenas de ação e invencionices misteriosas. “Inventar histórias acontece em toda parte”, disse. “Por isso, ainda hoje os dossiês secretos são compostos unicamente de recortes de jornal, e quase sempre de jornais sensacionalistas – os folhetins dos nossos dias.” Assim, revolvendo o desejo de sensações novas do leitor, Umberto Eco mostra que ainda é o papa do suspense erudito.

O historiador (2005)  – Elisabeth Kostova . A autora americana imagina que Drácula, aos 500 anos, tornou-se historiador do Leste Europeu. Enquanto discorre sobre suas fontes, distribui dentadas nos ouvintes

O Códex 632 (2005) – O português  José Rodrigues dos Santos vendeu 200 mil exemplares de um trhiller sobre um documento que revela um segredo que altera a visão de mundo da humanidade: o descobridor Cristóvão Colombo não era genovês, e sim português.

  

Os crimes do mosaico (2004). O professor romano Giulio Leoni ambienta um ciclo de quatro romances de crime na Florença da Idade Média. O detetive que investiga os casos é o poeta Dante Alighieri 

O símbolo perdido (2009) – Dan Brown repetiu o sucesso de O Código Da Vinci, desta vez investigando os mistérios em torno das origens maçônicas dos fundadores dos Estados Unidos

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A cultura virou poeira

O avanço tecnológico tem um preço: o fim da possibilidade de escolher e testar livros e discos novos no mundo real
Imagine o que seria das mulheres se, de repente, suas lojas favoritas de roupas, acessórios e perfumes desaparecessem. Não de repente, mas de uma forma lenta, cruel e inevitável, até que toda e qualquer roupa e acessório só fosse acessível via internet. Tenho certeza de que elas fariam uma revolução para recolocar as vitrines nos seus antigos lugares. Seria um choque a ausência da possibilidade de se aventurar pelos produtos materiais, escolher ao acaso um item e se arriscar. É assim que estou me sentindo: como uma mulher sem loja. Não quero sexualizar o debate. De fato, muitas são as mulheres que consomem produtos culturais com a mesma fúria dos homens (não avistei nenhuma até hoje, mas creio que elas existem). Assim, uma grande parcela do público está sendo atingida com a eliminação do varejo de cultural.
Sempre fui um consumidor da área. Um dos meus prazeres em viagens era (estou enfatizando o pretérito mais que perfeito) encontrar lojas de discos e DVDs e livrarias, passear pelas estantes e, sem um objetivo definido, descobrir uma banda, um autor, um filme. Mesmo em casa, eu adorava ir a uma locadora de vídeos e pegar um filme no qual jamais pensei, e que nem conhecia. Era um gesto de acaso, um ato lúdico de apostar em uma manifestação artística desconhecida. Como visitar uma galeria desconhecida, era desse modo que as coisas funcionavam. Aos poucos, estou assistindo ao desmoronamento desse hábito. A evolução tecnológica é inevitável e cobra seu preço: o consumidor terá os produtos que deseja, mas não mais o prazer da interação concreta com eles – e, não raro, não mais a qualidade que eles apresentavam anteriormente.
As primeiras lojas a sumir do mapa foram as de CDs. Com a pirataria de arquivos digitais pela internet, tornou-se possível achar qualquer coisa sem pagar por isso. Depois os e-books derrubaram as livrarias. E, finalmente, as locadoras estão com os dias contados. As lojas de videogame, os últimos baluartes da compra cultural, são as próximas. Tudo está migrando para o buraco cintilante do atacado do mundo virtual.
Os exemplos são incontáveis. Assisti ao fechamento de muitas lojas que eu amava. Alguém lembra da Virgin na Times Square de Nova York? Ou da Tower Records em San Francisco? Acabaram de fechar a mais antiga loja da HMV de Londres, a primeira especializada em discos clássicos, que estava no local, na Oxford Street, desde 1897, desde a invenção do gramofone. No lugar dela, estão inaugurando neste momento uma loja de moda jovem, a Forever 21. Lamentável para mim e todos os consumidores de cultura, que bom para as lolitas. Em Toronto, fecharam a venerável Sam Goody’s – loja de vinil e CDs que serve como cenário para o filme Scott Pilgrim. Estão construindo uma torre de 40 andares no local. As lojas HMV de Toronto estão liquidando todos os seus discos clássicos, a preço de banana. Não tenho mala para tantos itens preciosos. Afinal, eles estão lá desde o ano 4 A.B. (antes de Bieber, sendo que o Annus Bieberi é 2009), quando vim à cidade pela primeira vez. Os discos demoravam a desaparecer das prateleiras. Eles esperavam por quem se interessasse por eles e os comprasse. Eu demorava anos até me decidir por este ou aquele disco.
Vamos às livrarias. Os livros eletrônicos vieram para sempre. Não nego sua funcionalidade e incrível rapidez. Mas muitas e inimagináveis são as transformações que eles impõe aos hábitos de leitura e de compra de títulos. Só nos Estados Unidos, o consumo de livros em papel caiu 14 por cento nos dois últimos anos, com um crescimento acelerado de downloads de livros eletrônicos, na ordem de 30 por cento ao ano. Isso pode ser verificado na vida real. Observo as grandes livrarias vendendo e-readers, como que assinando a rendição ao mundo digital. Isso quando já não estava falida mesmo. É o caso da cadeia Borders. Presenciei a liquidação de estoque das filiais londrinas há um ano. Agora vi a xepa da Borders do CNN Center, em Nova York. Antes a gente reclamava que as pequenas livrarias haviam sido devoradas pelas grandes cadeiras. Agora a gente chora pelas grandes cadeias... Também as redes de bancas de revistas e jornais de aeroportos do mundo inteiro estão restringindo o espaço aos livros de bolso, os populares best-sellers. É o que nos Estados Unidos chamam de “mass market books”, livros do mercado de massas. Curiosamente, a popularidade dessas brochuras baratas está em queda. Os livros de bolso barato deixaram de ser expostos – suprimindo, com isso, a eventual a possibilidade de comprar um livro ao acaso, um dos maiores deleites que um passageiro pode ter para matar o tédio das viagens. Hoje, as bancas de aeroporto, rodoviária e ferroviária americanas preferem os livros em capa dura de autores consagrados e as brochuras de prestígio, com autores vendáveis conhecidos. Não parece haver mais espaço para surgirem talentos nem mesmo na área dos best-sellers. Não existe mais a pausa para folhear um volume qualquer, ruim ou não.
Também não vale a pena chorar pelas lojas e locadoras de DVD, embora eu continue a lamentar seu extermínio. Provavelmente por culpa do meu sentimentalismo, ainda freqüento a locadora do meu bairro, para manter viva a chama da resistência. O que é cretino, já que eu sozinho não consigo segurar a integridade de minha locadora, que já terceirizou parte do espaço para um bar e uma loja de consertos de computadores. Eu raramente compro DVDs, mas agora é o caso, já que os espaços para o produto estão encolhendo nas poucas lojas que sobraram. No Brasil, já há vários serviços de aluguel de filmes pela televisão ou pelo computador. O Netflix – que inclui envio pelo correio de DVDs e downloads de filmes – acaba de chegar ao país.
Não pretendo condenar a evolução, mas apenas um aspecto do progresso que desconsidera o gosto e os hábitos dos consumidores. À medida que as compras no mundo online estão cada vez mais divertidas, o mundo offline – antigamente conhecido como mundo real – ficou mais triste. Pelo menos para quem gosta de livros, revistas, HQs, discos, DVDs e games. Não há o que fazer. Preciso me acostumar com cidades sem as lojas que eu adorava freqüentar, e me render à intangibilidade e à desvalorização dos produtos que gostava de tocar, escolher e arriscar. O comércio de massa aboliu o comprador distraído, expulsou o devaneio do mundo das compras em shopping centers e ruas. Tudo aquilo que fazia parte do mercado de massa tornou-se um nicho alternativo. Aos saudosistas, só resta mesmo freqüentar os sebos e lojas de artigos de segunda mão. O detalhe é que, nesses negócios, o material é exibido sem cuidado, amontoado e empoeirado. Quem consome artigos de cultura não terá mais acesso a produtos novos que possa testá-los antes de comprá-los. É a morte do experimento. É a morte da experiência física. Eu gostava de objetos, de coisas, não de algoritmos abstratos na internet. Por isso me considero vítima do assalto do suposto progresso. E o pior é que o criminoso não tem corpo.  
Comprar pela internet é como sexo virtual: muita imaginação para nenhuma presença...

] Uma história em miniaturas

            Objetos antigos são carregados de história. Quando valiosos, costumam sobreviver às pessoas que os compraram, trocaram e presentearam. São passados adiante. Ao mesmo tempo em que resistem à memória de quem um dia os possuiu, os objetos parecem reter algo dos antigos proprietários, uma espécie de carga magnética, espiritual ou qualquer miasma do tipo. Foi assombrado pela relação entre a beleza da matéria e a corrupção imposta pela passagem do tempo que Edmund de Waal escreveu o livro A lebre com olhos de âmbar (Intrínseca, 320 páginas, R$ 29,90). A lebre em questão pertence a uma coleção de 264 miniaturas japonesas, entalhadas em marfim e madeira, chamadas de netsuquês (leia quadro à página ---), que de Waal herdou de um tio-avô, e mantêm em uma vitrine espelhada e aveludada em sua casa em Londres. São representações da vida, assinadas por artistas dos séculos XVII ao XIX: animais em ação, trabalhadores entretidos em suas tarefas, moças nuas tomando banho, casais fazendo sexo, atores no ápice de um drama de teatro Nô. Figuras minúsculas, como diz Waal, divertidas e obscenas - explosões de exatidão, impassíveis às conturbações mundiais dos últimos 200 anos.

            Mas não se trata apenas de um conjunto de obras de arte antigas, “uma coleção imensa de objetos muito pequenos”. Esses netsuquês são os únicos bens que restaram da família materna de de Waal, os Ephrussi, banqueiros e exportadores originários de Odessa, na Rússia, que se estabeleceram um império econômico em Paris e Viena no final do século XIX. De Waal sabia da existência deles desde pequeno. Mas só dois anos atrás sentiu o impulso de contar a história deles – e de como eles testemunharam a decadência de uma família judia que se considerava assimilada pelo alta sociedade europeia, mas terminou dispersa e espoliada de todos os seus bens com a anexação da Áustria pelos nazistas, em 1938.

            “Eu quis evitar o sentimentalismo e contar mais uma saga em sépia sobre a perda tão típica da Europa Central”, diz de Waal a Época. “No livro, pretendi chamar atenção à qualidade de testemunha que anima os objetos, para mim muito forte. Em certo sentido, os netsuquês encarnam a história de minha família como se não houvesse outra ligação entre o passado e agora: eles se mantêm unidos enquanto a família sofreu uma diáspora violenta. Em outro sentido – mais próximo da minha vida – as coisas que são passadas de mão em mão no decorrer do tempo se sentem muito diferentes dos objetos que permaneceram intocados. Não há uma literatura do toque: meu livro tenta explorar esse aspecto.”

            O toque é importante para De Waal. Aos 46 anos, casado e pai de três filhos, ele é um dos mais renomados ceramistas ingleses. Suas peças estão expostas em instituições londrinas, como o Victoria and Albert Museum e a Tate Gallery. A família, de origem judaica pela parte materna e holandesa protestante pela paterna, se estabeleceu na Inglaterra nos anos 1940. Seus pais imigrantes enfrentaram dificuldades para dar a De Waal e seus outros dois irmãos condições de estudar. Desde criança, Edmund mostrou seu talento para moldar peças de cerâmica. Em 1991, ganhou de uma fundação japonesa uma bolsa de estudos para estudar cerâmica em Tóquio. Aproveitava as horas de folga para visitar seu tio-avô materno, Ignace Ephrussi, Iggie, austríaco naturalizado americano, que trabalhava como exportador no Japão desde os anos 1940, depois de servir como soldado na Segunda Guerra Mundial. Na sala de Iggie, de Waal viu pela primeira vez os netsuquês.

            Iggie morreu em 1994 e legou a coleção ao sobrinho-neto. A herança, em vez de satisfazê-lo, deixou-o intrigado: o que as aventuras dos bibelôs do Japão tinham a ver com ele? “Eu me deixei levar pela pesquisa de uma forma que chamo digressiva, pois ‘flanei’ pelos diversos lugares pelos quais a coleção passou e neles pesquisei em arquivos e bibliotecas”, afirma de Waal. A pesquisa se tornou obsessiva.

            Os netsuquês o conduziram para uma viagem no tempo e no espaço pelo mundo.  Os japoneses tradicionais usavam esses bibelôs para tocá-los, como talismãs, carregando-os consigo. No século XIX, em Paris, tornaram-se objetos cobiçados com a moda do “japonismo” – a mania de colecionar peças japonesas. Um dos fanáticos pelo “japonisme” foi o tio-avô de de Waal, Charles Ephrussi (1840-1905). Dândi riquíssimo, patrono das artes e protetor de pintores como Gustave Moreau e escritores como Marcel Proust (que, segundo de Waal se baseou em Charles para criar o personagem Swann, do ciclo de romances Em busca do tempo perdido), Charles comprou o lote de 263 netsuquês do antiquário Philippe Sichel, quando mantinha um caso amoroso com a mulher de um banqueiro judeu, Louise. Ele exibia os netsuquês nos salões de seu palácio. Com o fim da moda japonesa, Charles enviou a coleção a Viena, como presente de casamento de seu primo, Viktor, e a bela socialite Emmy, bisavôs de de Waal. Corria o ano de 1899, e Viena fervilhava de cosmopolitismo – e o antissemitismo parecia impossível em uma cidade dominada por artistas e pensadores judeus, como o músico Gustav Mahler e o psicanalista Sigmund Freud. Emmy guardou os netsuquês em seu quarto de vestir. Seus filhos – entre eles Iggy e Elisabeth, avó de de Waal – gostavam de brincar com os seres minúsculos, com permissão de Emmy. Com a tomada de Viena pelos nazistas, as mansões judias foram invadidas, suas obras de arte catalogadas (“nunca os críticos de arte foram tão úteis”, escreve de Waal) e incoporadas ao patrimônio do Terceiro Reich. Os Ephrussi foram obrigados a emigrar. Depois da Segunda Guerra, Elisabeth voltou a Viena para tentar reaver seus bens – e o único que encontrou lhe foi dado pela velha babá, Anna, que havia escondido sob o colchão os netsuquês. Iggy carregou-os de volta às origens, para Tóquio.

            De Waal percorreu todos esses lugares e, hoje, dizendo-se mais leve: “Me sinto bem mais leve porque me livrei da obrigação de minha herança através da jornada de pesquisas e do livro.” Curiosamente, ele adquiriu o hábito de levar consigo um netsuquê de sua coleção. Sem nostalgia, ele afirma que carrega a história no bolso.