sexta-feira, 21 de outubro de 2011

] Uma história em miniaturas

            Objetos antigos são carregados de história. Quando valiosos, costumam sobreviver às pessoas que os compraram, trocaram e presentearam. São passados adiante. Ao mesmo tempo em que resistem à memória de quem um dia os possuiu, os objetos parecem reter algo dos antigos proprietários, uma espécie de carga magnética, espiritual ou qualquer miasma do tipo. Foi assombrado pela relação entre a beleza da matéria e a corrupção imposta pela passagem do tempo que Edmund de Waal escreveu o livro A lebre com olhos de âmbar (Intrínseca, 320 páginas, R$ 29,90). A lebre em questão pertence a uma coleção de 264 miniaturas japonesas, entalhadas em marfim e madeira, chamadas de netsuquês (leia quadro à página ---), que de Waal herdou de um tio-avô, e mantêm em uma vitrine espelhada e aveludada em sua casa em Londres. São representações da vida, assinadas por artistas dos séculos XVII ao XIX: animais em ação, trabalhadores entretidos em suas tarefas, moças nuas tomando banho, casais fazendo sexo, atores no ápice de um drama de teatro Nô. Figuras minúsculas, como diz Waal, divertidas e obscenas - explosões de exatidão, impassíveis às conturbações mundiais dos últimos 200 anos.

            Mas não se trata apenas de um conjunto de obras de arte antigas, “uma coleção imensa de objetos muito pequenos”. Esses netsuquês são os únicos bens que restaram da família materna de de Waal, os Ephrussi, banqueiros e exportadores originários de Odessa, na Rússia, que se estabeleceram um império econômico em Paris e Viena no final do século XIX. De Waal sabia da existência deles desde pequeno. Mas só dois anos atrás sentiu o impulso de contar a história deles – e de como eles testemunharam a decadência de uma família judia que se considerava assimilada pelo alta sociedade europeia, mas terminou dispersa e espoliada de todos os seus bens com a anexação da Áustria pelos nazistas, em 1938.

            “Eu quis evitar o sentimentalismo e contar mais uma saga em sépia sobre a perda tão típica da Europa Central”, diz de Waal a Época. “No livro, pretendi chamar atenção à qualidade de testemunha que anima os objetos, para mim muito forte. Em certo sentido, os netsuquês encarnam a história de minha família como se não houvesse outra ligação entre o passado e agora: eles se mantêm unidos enquanto a família sofreu uma diáspora violenta. Em outro sentido – mais próximo da minha vida – as coisas que são passadas de mão em mão no decorrer do tempo se sentem muito diferentes dos objetos que permaneceram intocados. Não há uma literatura do toque: meu livro tenta explorar esse aspecto.”

            O toque é importante para De Waal. Aos 46 anos, casado e pai de três filhos, ele é um dos mais renomados ceramistas ingleses. Suas peças estão expostas em instituições londrinas, como o Victoria and Albert Museum e a Tate Gallery. A família, de origem judaica pela parte materna e holandesa protestante pela paterna, se estabeleceu na Inglaterra nos anos 1940. Seus pais imigrantes enfrentaram dificuldades para dar a De Waal e seus outros dois irmãos condições de estudar. Desde criança, Edmund mostrou seu talento para moldar peças de cerâmica. Em 1991, ganhou de uma fundação japonesa uma bolsa de estudos para estudar cerâmica em Tóquio. Aproveitava as horas de folga para visitar seu tio-avô materno, Ignace Ephrussi, Iggie, austríaco naturalizado americano, que trabalhava como exportador no Japão desde os anos 1940, depois de servir como soldado na Segunda Guerra Mundial. Na sala de Iggie, de Waal viu pela primeira vez os netsuquês.

            Iggie morreu em 1994 e legou a coleção ao sobrinho-neto. A herança, em vez de satisfazê-lo, deixou-o intrigado: o que as aventuras dos bibelôs do Japão tinham a ver com ele? “Eu me deixei levar pela pesquisa de uma forma que chamo digressiva, pois ‘flanei’ pelos diversos lugares pelos quais a coleção passou e neles pesquisei em arquivos e bibliotecas”, afirma de Waal. A pesquisa se tornou obsessiva.

            Os netsuquês o conduziram para uma viagem no tempo e no espaço pelo mundo.  Os japoneses tradicionais usavam esses bibelôs para tocá-los, como talismãs, carregando-os consigo. No século XIX, em Paris, tornaram-se objetos cobiçados com a moda do “japonismo” – a mania de colecionar peças japonesas. Um dos fanáticos pelo “japonisme” foi o tio-avô de de Waal, Charles Ephrussi (1840-1905). Dândi riquíssimo, patrono das artes e protetor de pintores como Gustave Moreau e escritores como Marcel Proust (que, segundo de Waal se baseou em Charles para criar o personagem Swann, do ciclo de romances Em busca do tempo perdido), Charles comprou o lote de 263 netsuquês do antiquário Philippe Sichel, quando mantinha um caso amoroso com a mulher de um banqueiro judeu, Louise. Ele exibia os netsuquês nos salões de seu palácio. Com o fim da moda japonesa, Charles enviou a coleção a Viena, como presente de casamento de seu primo, Viktor, e a bela socialite Emmy, bisavôs de de Waal. Corria o ano de 1899, e Viena fervilhava de cosmopolitismo – e o antissemitismo parecia impossível em uma cidade dominada por artistas e pensadores judeus, como o músico Gustav Mahler e o psicanalista Sigmund Freud. Emmy guardou os netsuquês em seu quarto de vestir. Seus filhos – entre eles Iggy e Elisabeth, avó de de Waal – gostavam de brincar com os seres minúsculos, com permissão de Emmy. Com a tomada de Viena pelos nazistas, as mansões judias foram invadidas, suas obras de arte catalogadas (“nunca os críticos de arte foram tão úteis”, escreve de Waal) e incoporadas ao patrimônio do Terceiro Reich. Os Ephrussi foram obrigados a emigrar. Depois da Segunda Guerra, Elisabeth voltou a Viena para tentar reaver seus bens – e o único que encontrou lhe foi dado pela velha babá, Anna, que havia escondido sob o colchão os netsuquês. Iggy carregou-os de volta às origens, para Tóquio.

            De Waal percorreu todos esses lugares e, hoje, dizendo-se mais leve: “Me sinto bem mais leve porque me livrei da obrigação de minha herança através da jornada de pesquisas e do livro.” Curiosamente, ele adquiriu o hábito de levar consigo um netsuquê de sua coleção. Sem nostalgia, ele afirma que carrega a história no bolso.


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