sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O ser e a bola


Como o futebol pode se apoderar da alma do torcedor – e constituir sua personalidade

 

                Um amigo tenta me consolar do rebaixamento do Palmeiras à segunda divisão: “Ainda bem que você tem outros times para compensar!” É verdade. Como muitos meninos criados no interior do Brasil, adotei um time para cada Estado da federação. Assim, já que minha cidade não contava com possíveis campeões (havia um revezamento de troféus entre os dois times de Porto Alegre), eu mantinha meu interesse à distância pelo futebol. 

                Em São Paulo, calhou de meu time ser somente o Palmeiras, um dos símbolos da imigração italiana no Brasil. Mas tenho times espalhados pelo Brasil e pelo mundo, não vou citar todos aqui. Fico apenas com o Rio de Janeiro. Houve um tempo em que adotei quase todas as equipes cariocas, já que eu promovia campeonatos de botão com os amigos na condição de “treinador” dos times cariocas disponíveis. Em relação ao campeonato do Rio, portanto, tornei-me ecumênico, pois gosto de todos. Consigo ser Vasco, Fluminense e Flamengo ao mesmo tempo, bem como Botafogo, Bangu e América.

                O que eu quero dizer é que possuo uma espécie de defeito de personalidade porque não me prendo visceralmente a nenhum clube, embora torça por alguns. Em futebol, meu coração é leviano. Eu colecionava figurinhas de todos os times. Sou de um tempo em que amigos e suas famílias iam aos estádios com camisas de times diferentes, torcendo no mesmo espaço por times rivais. E ninguém se matava ou matava os outros por isso. Com o tempo, os torcedores foram forçados a se transformar em fanáticos. Enquanto isso, cresci e me interessei por outros assuntos além do futebol. Mas ele permaneceu, como o menino permanece no homem.

                Hoje, torcer consiste em uma ação bem diferente daquela de minha infância. Torcer é “ser”. Assim, “ser” palmeirense em São Paulo, sobretudo nos últimos meses, significa apreciar as grandes tragédias, purgar os pecados nas chamas da derrota, rastejar em tempos difíceis e sair purificado ao final. No domingo passado, a assistir pela televisão a mais uma derrocada palmeirense, preferi ouvir uma ópera completa, O crepúsculo dos Deuses, de Richard Wagner, na versão “mozartiana” de Karl Böhm. Ao mesmo tempo que terminavam os últimos acordes - que marcam o fim dos deuses e o nascimento da humanidade – ouvi ao longe os fogos da torcida adversária, locupletando-se com a derrota alheia. Não atendi ao telefonema de meu cunhado santista, para não ouvir zombarias. Depois, no Twitter, algum gaiato postou: “Palmeirenses, tranquem as portas e fiquem em casa porque vamos festejar e arrebentar quem usar camisa verde”. Quase fui obrigado a me sentir humilhado, ofendido e acuado. 

                A razão, no entanto, veio me socorrer. Em vez de sair para berrar ofensa ou me mortificar, passei a refletir sobre como o futebol no Brasil não apenas faz parte da vida das pessoas, como sobretudo  constitui o sujeito, para roubar um termo de psicanálise. Assim como Jean-Paul Sartre diria que o ser precede a essência, eu me arrisco a dizer que no Brasil e em outros países a bola precede o homem. O futebol, em especial o time, fornece as características do que constrói o sujeito. E, numa tosca paráfrase a Thomas Hobbes, o homem é o time do homem.

                A tradição de glórias e derrotas de uma equipe e futebol deve necessariamente pesar sobre os ombros do torcedor. Ser palmeirense é assumir a pungência da tragédia. O palmeirense é o novo sofredor diante da força do destino (é um título de ópera aliás). Ocupa o lugar deixado há muito tempo pelos coritintianos. Da mesma forma, ser corintiano hoje impõe ao ser do torcedor uma certa dose de grandiosa insanidade. Quando a Fiel grita que é um bando de loucos, não é só força de expressão. Trata-se da manifestação de uma crença arraigada na essência de cada um dos integrantes do grupo. Pertencer a uma torcida implica compartilhar cores, valores, origens, amizades, amores e idiossincrasias. É odiar os mesmos inimigos. É matar e morrer por esses “ideais”. Daí o surgimento das agressivas torcidas organizadas, que também podem reencarnar no Carnaval, com suas facções fantasiadas de escolas de samba.

                Os reflexos da ontologia da bola acontecem até na vida amorosa. A comédia O casamento de Romeu e Julieta, de 2004, transforma a rivalidade entre as famílias Capuleto e Montecchio, de Verona, para as torcidas corintiana e palmeirense. Um corintiano pede uma palmeirense em casamento, mas precisa se disfarçar de verde para agradar ao sogro, dirigente do Palestra Itália. Conheço uma situação parecida: um casal de namorados, ela palmeirense, ele corintiano, que muitas vezes têm problemas de relacionamento por causa do fanatismo de um e outra. Uma coisa será impossível, infelizmente: vê-los em um setor de qualquer estádio, juntos, namorando, cada um com sua camisa, como teria sido comum em meados do século passado. Torcidas e amor, torcidas e diversidade são termos incompatíveis. As torcidas organizadas – e mesmo as não - se transformam em falanges de uma guerra perpétua e inexplicável. Pertencer a um time significa satanizar aqueles que não pertencem à falange.

                A que se deve tal situação? Talvez à degeneração dos valores humanos e culturais, fenômeno que se repete e se torna mais dramático nos estádios de futebol.  Assim, o fanatismo clubístico é tanto um fator de união como de cizânia social. Sigmud Freud e Elias Canetti ensinaram que a psicologia das massas é irracional e causadora de tremendos conflitos. O fanatismo não tem outro sentido que estimular o ódio e o ressentimento ao “outro”. Esse tipo de mobilização em torno de uma ideia, ainda que clubística, já mostrou ser deletério. É algo próximo ao fascismo, e as torcidas organizadas são as atacantes do processo.  Como ensinou o Filósofo das Quatro Linhas: “Futebol é futebol – e vice-versa”. Ou, pelo menos, deveria ser assim. O problema é que ele pode deixar de ser só futebol para transbordar para outras áreas. Feito um regime totalitário, por exemplo, o futebol se apodera do sujeito. O esporte atua como um invasor de almas. Sob a capa de cultura, ele vampiriza a vontade e anula a iniciativa do torcedor.

                Você, palmeirense, já pensou em não ser palmeirense por um dia, por uma semana? (neste momento, seria aconselhável). E você, são—paulino, santista, gremista e outros, que tal passar umas horas sem encarnar o time, sem pensar nele? Eu, que me cultivei na admiração ecumênica por vários times, acho isso natural e saudável. Não consigo entender a mentalidade de “onda” com que alguns indivíduos cultivam a própria personalidade. Afinal, futebol não é tão importante assim para compor a maneira de viver, pensar e se comportar de qualquer indivíduo. O ser precede a bola - e é maior que ela.

Image001

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Quem é Mick Jagger mesmo?

Uma biografia mostra que o roqueiro transgressor não passou de uma criação de palco – e que ele é um modelo de ambição, disciplina – e gosto por sexo

Quem vê hoje os shows de Mick Jagger pode não perceber que a figura  salvagem do mito do rock dos anos 60 não passa de uma construção de palco. Por trás do desempenho frenético do vocalista da banda inglesa The Rolling Stones, com seu ar de adolescente malcriado, oculta-se um senhor de quase 70 anos, dado a atitudes esnobes e hábitos aristocráticos, amante do luxo e de sexo, pai severo de sete filhos e avô de duas crianças, acostumado a manter um código de etiqueta escrito na era vitoriana para ser aplicado por sua criadagem nas suas diversas mansões e palácios espalhados pelo mundo.

Para decifrar o enigma das duas imagens conflitantes de Jagger e m revelar a sua face humana e íntima das máscaras que ele criou para si próprio, o escritor inglês Philip Norman levou três anos escrevendo a biografia Mick Jagger (Companhia das Letras, 624 páginas, R$ 49,50 ). “Na verdade, passei minha vida inteira escrevendo sobre duas bandas dos anos 60 que formam uma única saga: Beatles e Rolling Stones”, afirma Norman à Época. Aos 69 anos, ele foi jornalista de música e conheceu esses artistas no início de suas carreiras. Escreveu um livro sobre a história dos Beatles, em 1981, e a consagrada biografia John Lennon: a vida, em 2009. “Mick merecia uma biografia por ser a figura central da contracultura que explodiu em Londres em meados dos anos 60”, diz. “A ‘swinging London’ que rompeu a crosta vitoriana da cidade não teria sido a mesma sem o talento de Mick de fazer de si próprio o símbolo maior daquele tempo, uma espécie de Tirano do Cool, de lançador de modas e de padrões de gosto.”

Norman esperou por uma efeméride, os 50 anos da estreia da banda, para publicar a biografia, feita a partir de pesquisas e entrevistas. O paradoxo saltitante Mick Jagger e banda estarão de volta às turnês em novembro, quando os Stones iniciam a turnê 50 and counting, para comemorar o cinquentenário da banda. Eles lançam a coletânea Grrr!, com sucessos da carreira.  A comemoração está atrasada em relação à estreia dos Stones, em 16 de julho de 1962. Houve muita discussão entre os quatro membros da banda até chegar a um projeto viável. Eles formam a empresa de rock mais lucrativa do mundo e encaram a banda como tal.  De 1999 até 2011, os Stones ganharam 2 bilhões de dólares. Jagger deu a última palavra. Alguém esperaria menos do “Tirano do Cool”?

“Os Stones são um fenômeno de longevidade graças Mick,”, diz Norman. “No início, era um conjunto instável, que contou com mortes e a saída de dois integrantes, além do envolvimento com drogas e fugas do fisco. Não tinha nada para se manter. Foi o gênio de organizador de Mick que segurou os Rolling Stones ao longo dos anos. Além de seu talento artístico.” Segundo Norman, o problema de lidar com uma personagem pública como Mick é que ninguém sabe quem ele é, apesar de pensar que sabe: “Ele não ostenta duas faces, mas um número quase infinito delas. São tantas as camadas que ele justapôs ao próprio rosto que nos perdemos na tentativa de desmascará-lo. Ele conseguiu manter seu verdadeiro eu, bem mais complexo e interessante que suas máscaras”.

A personalidade de Mick resultou de sua formação tradicional. Ele contraria todos os estereótipos das celebridades da cultura pop, que construíram seus mitos a partir da pobreza, da rejeição e da privação. Michael Philip Jagger nasceu em uma família convencional de classe média, de pais devotados. A mãe, Eva,  uma esteticista australiana, despertou nele o gosto pela aparência. O pai, Joe, professor de educação física, orientou seus dois filhos, Mick e o caçula Chris, a cultivar o corpo. Mick contou com o apoio deles para seguir sua carreira quando passou na prestigiosa London School of Economics. E não tiveram como reclamar quando o garoto trancou a matrícula, já que ele era capaz de demonstrar que se tornaria milionário, no improvável papel de cantor de uma banda de blues.

Quando o estrelato chegou como a consequência de um silogismo lógico, Mick sobreviveu às tentações de seu tempo: as drogas pesadas e a militância política. Enquanto sua namorada, Marianne Faithfull, entregava-se à heroína e seus companheiros de banda Keith Richards e Brian Jones ao LSD, ele provava sem se jogar nelas. “Mick não gostava de fato de drogas”, diz Norman. “E não se viciou.” Quando todos os artistas daquele tempo participavam de passeatas pacifstas, Mick assistia a tudo de óculos escuros... e de longe.

Seu fraco sempre foi sexo. Hoje ele seria chamado de doente, mas os seus dois casamentos e centenas de casos com homens e mulheres parecem ter lhe servido como elixir da juventude.  “A carreira sexual dele é tão espantosa quanto a musical”, afirma Norman. “Ele se habituou a viver como um adolescente que não precisa tomar providências chatas da vida. E se acostumou a tratar as suas mulheres como lixo, até porque temia que muitas delas lhe roubassem o dinheiro. Mesmo assim, mostrou ser um pai a um só tempo disciplinador  e divertido. Seus filhos o adoram.”

Entre as descobertas de Norman, destacam-se três. A primeira é que Mick e Keith foram injustiçado pela polícia britânica. Além de serem acusados em 1966 de porte de drogas por meio de uma droga plantada por um tabloide, a estada deles em duas prisões diferente, ambas reconhecidas pelas condições terríveis, foi traumatizante. “Eles sofreram violência lá dentro”, diz Norman. A segunda diz respeito á onda de violência durante o show do autódromo de Altamont, em 1969. Mick foi culpado de proteger o bando  Hell’s Angels em seus atos de violência, que culminaram no assassinato de um jovem negro  por um integrante do bando enquanto Mick cantava. “Mas ele se portou com coragem, enfrentou os Hell’s Angels e tentou conter a violência naquela noite”, afirma Norman. Por fim, o papel do produtor Andrew Oldham na definição da identidade dos Stones também ganha nova luz. Foi ele que ele criou o clima de rivalidade e oposição entre os Stones e os Beatles. E foi fundamental para ajudar Mick a forjar a sua persona indomável.

Lançada em outubro no Reino Unido, a biografia obteve boas resenhas, embora alguns críticos tenham dizo que Norman fez um retrato positivo demais de Jagger. “Ele não se manifestou”, diz Norman. “Mick se comporta como um membro da família real britânica. Nunca responde a pedidos de entrevistas, não se manifesta e finge não se lembrar de nada do passado. Como disse o baterista dos Stones Charlie Watts, Mick não pensa no presente e no passado. Só no futuro. Ele continua o mesmo.

LAGiron