quarta-feira, 28 de março de 2012

Redes Vorazes

Como as redes sociais transformam o seu cérebro – e o seu coração

O amadurecimento das relações humanas via redes sociais permite uma constatação meio tola: o ser humano é o mais do mesmo. Ele se afigura igual em todo canto, em qualquer terreno que descubra, explore ou colonize. Na internet - um mundo que pela primeira vez ele inventou por completo e pisa nele como habitante - não tem se mostrado diferente. Comporta-se de forma previsível, mesmo quando tenta surpreender. Faz estragos, é capaz de atos generosos, finge, mente, confessa, pratica pecados e se arrepende, para depois voltar às velhas práticas. Por isso, as redes sociais expõem as grandezas e precariedades humanas. Ainda que alterem a maneira como as pessoas se relacionam, não o fazem de forma profunda.

A abolição daquilo que se chama de privacidade, por exemplo, não foi causada exclusivamente pelas redes sociais ou mesmo pela internet. Esta apenas acelerou um processo que já vinha ocorrendo na sociedade hiperracional do controle de dados em que vivemos. O que a internet fez foi revelar que nossas vidas viraram sinônimos de bits de informação. Cada indivíduo torna-se um fornecedor de dados preciosos para o mercado – e mesmo a individualidade pode ser convertida em listas de gostos e tendências que dependem da história pessoal. As redes sociais e os mecanismos de busca deram cabo do processo. Hoje mostram que podem abraçar a subjetividade mais profunda e oculta. 

O indivíduo não passa de uma abstração binária. Sua vida – feita de lembranças, vivências, imagens, lições, sons, pensamentos, desejos, sonhos – pode ser inteiramente quantificada e estocada em algum servidor de nuvem em algo como 60 gigabytes, ou, talvez, 1 terabyte. Não por outro motivo, o Facebook lançou o Timeline, mecanismo que organiza a sua vida sem você precisar se preocupar. “Conte a sua vida por meio de fotos, amizades e marcos pessoais, como se formar ou viajar a novos lugares”, diz o Facebook. O que ele não diz é que, caso você não queira narra sua vida, ele a narra por você – e para você. Também promete filtrar e direcionar toda informação para você e sobre você. E assim estamos nos retribalizando, em hemisférios (ou guetos) de consenso e resignação.

As redes sociais aumentam sua voracidade. Enredam tanto o conhecimento como a subjetividade. O saber tende à estratificação e particularização. Assim, o usuário (cidadão é termo fora de contexto) perde as noções de universalidade e fraternidade que vêm sendo cultivadas desde o Iluminismo. Cada um é restrito à própria caverna, iludido de que está em contato com uma espécie de universo digital universal, quando, na realidade, jamais esteve tão isolado. As redes sociais condicionam e restringem os seu pensamento. Fala-se de uma nova Idade Média. Ora, ela já aconteceu. Para quê de novo? A História tem que se repetir na forma de bits de informação? Será possível uma nova Idade das Trevas superiluminadas pelos monitores de LED e retina? Pelo jeito, sim.

As trevas com alta iluminação parecem comparecer às relações intersubjetivas. Antes das redes sociais, havia trocas de fotos e crimes, havia pedofilia, adultério e sexo às escondidas. A diferença hoje é que tudo isso é replicado no céu aberto das trocas de mensagens. Amamos e odiamos em rede. O novo endereço dos homens provoca surpresa: assistimos a jovens se suicidando online, casais marcando encontros de sexo virtual e até filósofos (que pensam da mesma forma) discutindo e concordando sobre grandes ideias nos espaços permitidos do Facebook e do Linkedin. Agora morremos enredados. É curioso como os perfis de gente morta se transformam em cemitérios com direito a flores, depoimentos e diálogos que os vivos entabulam com os mortos para desejar a estes bons augúrios no além. Antes aconteciam falecimentos e manifestações de luto. Morríamos de fato e éramos enterrados diante da presença física de amigos e parentes. Agora morremos de novo, só que solitários, na falsa companhia dos bytes, e desencarnamos digitalmente (talvez “desencarnar” não seja um verbo correto, já que nos encontramos desencarnados nas redes sociais). Enfim, desaparecemos também delas, e merecemos tributos póstumos: o mais eloquente deles é sermos excluídos da lista de clientes dos patrocinadores das redes sociais. E, como você não está nem online nem off-line para consumir e contar a sua história, o Timeline realiza uma impossibilidade lógica, assume a primeira pessoa e conclui o trabalho da autobiografia. Ainda por cima lhe presenteia com uma formosa lápide virtual.

Por tudo isso, ainda prefiro a vida off-line à online. Antes só no Orkut que mal acompanhado no Facebook. Ou melhor, antes sozinho no mundo real que super mal acompanhado no digital. 

sábado, 24 de março de 2012

A Arte da Guerra: auto ajuda ou autoengano?

Refugue tudo o que você leu sobre autoajuda. E esqueça até mesmo os conselhos que você aprendeu na Arte da Guerra, de Sun Tzu, sobre como vencer no trabalho, treinamento atlético e regência orquestral. Isso porque até hoje no Brasil tivemos apenas acesso a traduções indiretas do clássico chinês de 2.500 anos de idade.  Leia a primeira tradução feita diretamente do chinês  em edição bilíngue da Arte da Guerra de Sun Tzu. A tradução é do jornalista taiwanês Adam Sum, morto em 20008 aos 55 anos.  E esta tradução veio para derrubar suas crenças. E, graças ao saudoso Adam Sun, permanecer no catálogo dos livros essenciais.

         Isso porque o tratado escrito no século sexto antes de Cristo, durante a dinastia Zhou, nada tem a ver com conselhos de como melhorar a governança corporativa, aplicarem  ações ou vencer um campeonato. No seu estilo didático, a Arte da Guerra – ou Método Militar de Sunzi – trata simplesmente das formas de ganhar guerras.

         Não encontrei no livrinho um único conselho útil para minha vida ou carreira. Por exemplo, no último capítulo, Sun Tzu trata dos cinco empregos de um espião e o valor da espionagem para vencer uma guerra. “ Os destituídos de conhecimento e sabedoria não podem empregar espiões’, diz Sun Tzz. E conclui: “ Sutileza das sutilezas, nada impede o uso do espião.” Bom, se eu for aplicar esse método no trabalho ou na vida, seria no mínimo bizarro. Espionar os colegas, parentes e amigos? Espionar a conta bancária alheia? OK, preciso interpretar o texto e chegar aos subentendidos. Mas será que a vida é essa guerra horrível?

         A primorosa tradução da Arte da Guerra serve acima de tudo para que deixemos de lado a leitura metafórica dos antigos sábios e para aplicá-losl à vida moderna. Nossas guerras hoje são bem diferentes das de 25 séculos atrás. O fato é que em qualquer livro você busca o que quer encontrar. Autoajuda  nada mais é que autoengano.

 

sexta-feira, 23 de março de 2012

Abaixo o “chafé” estrangeiro

Abaixo o “chafé” estrangeiro

 

 

            As pessoas estão hipnotizadas por um novo e banal totem de consumo: um copo de papel, imagine só. Tenho observado os jovens circularem com ele nos shoppings centers e pelas calçadas que já não têm poste de luz. O objeto vem decorado com um logotipo verde em forma de círculo, mostrando o desenho em branco e preto de uma sereia de longos cabelos. É dotado de tampa e um buraquinho retangular na borda onde o sujeito pode queimar os lábios bebendo um café de gosto estranho, quase um “chafé”. O hálito quente da sereia da Starbucks é sedutor. A companhia de Seattle chegou por aqui há poucos meses e já arrebanhou freguesia, fascinada porque se sente em qualquer outro lugar do mundo que não São Paulo. É a bênção da globalização: fazer a gente estar em qualquer lugare do planeta ao mesmo tempo, sem sentir diferença em nada. .

            Outras redes de café também têm ganhado fama. É o caso da argentina Havanna. A bebida é menos aguada que o café colombiano da Starbucks – e o cliente, envolvido pelo mobiliário de falso mogno do estabelecimento,  pode achar que se transporta para Mar del Plata . Não vou estragar o prazer do incauto, dizendo que os argentinos aprenderam a fazer café há pouco tempo. Há vinte anos, o café buenairense era mais aguado e intragável  que o da Starbucks. Não adianta, como seria inútil fazer uma campanha contra a falsa idéia de café-gourmet ianque, com o slogan “Starbucks, go home!” A mundialização alterou para sempre o paladar.

            Mas o que me deixa furioso é que o hábito do café, tão arraigado entre os paulistanos, esteja sendo corrompido pelas franquias pseudochiques. Por muito tempo o Brasil venerou a beberagem servida na Paulicéia, mais forte do que no resto do país. As primeiras máquinas de expresso foram instaladas aqui. E as redes de café locais se estabeleram há três décadas, e se espalharam pelo país.

Que eu saiba, São Paulo é a terra do café. Assim, o sucesso dessas redes multinacionais com café pior que o de qualquer bar é a prova de que é possível vender geladeira para pingüim, café diluído para os maiores apreciadores de café deste e do outro mundo.

            De minha parte, já aviso que me recuso a entrar nesses lugares que profanam a genuína arte de sorver o cafezinho. Eu me recuso a queimar minha boca no bafo de ruibarbo da sereia de Seattle, ou ter engulhos com o repugnante mocha portenho que disfarça o pó ruim com calda de chocolate. Odeio esses fetiches. Para me exorcizar, vou agora mesmo à padaria da esquina e pedir um pretinho servido em objetos em extinção, aqueles minúsculos copos de vidro maciço. O hábito bem brasileiro de tomar cafezinho virou agora um gesto de resistência cultural. 

A menina do poema

 A menina do poema

 

            Eu mal conheci Isadora, mas fazer o quê, se Manuel Bandeira lhe deu um poema ao nascer? Foi meu amigo Ernesto, primo dela, quem me contou. Não acreditei. Para provar, ele trouxe um livro da casa deo seu tio Ely, um médico importante, e me apontou bem direitinho onde ficava o texto. Era cara de verdade. Lá nas últimas páginas da edição Aguilar em papel-bíblia das Obras completas do Manuel Bandeira. Quando soube da história e li o poema, devia ter 10 anos. Isadora ia pelos 6. Eu não passava de um quase, e aquela menina gorducha espevitada já tinha um poema só seu, e nem sabia ler. 

            Em “Isadora”, o poeta graceja com a menina pela menção a Isadora Duncan, a dançarina da Belle Époque que inspirou os pais da menina no batismo. Um nome que sugeria em português um anagrana para as palavras “dançarina” e “dançar”. Dizia assim, em redondilha menor: “Pois que és Isadora,/ Dança, dança, dança/ Não direi agora/ Que ainda és criança/ A idade da trança,/ Dança, dança, dança/ Dança até cansares/ Dança, dança, dança/ Como na Ásia dançam/ As moças de Java./ Pois que és Isadora/ Dança como outrora,/ Como linda outrora/ Dançava, dançava/ Isadora Duncan.” Em seguida o poeta se foi, Ernesto me disse; morreu ainda matutando a elegia. Talvez a derradeira entre tantas que dedicou a meninas como Rosalina, Leda Letícia, Joanita, Isá. A folha manuscrita da poesia chegou às mãos do pai de Isadora feito um atestado de além-óbito. 

            Eu nem quis saber de Isadora, mas tudo concorreu pelo avesso. Ali estava eu, adolescente, tomado por ela, pelo ritmo que Bandeira imprimia ao nome e um corpo futuro de dançarina que eu imaginava numa volúpia depois do amanhã. O poema queria ser uma cartinha para o instante em que Isadora pudesse compreender tudo. E então, empurrada pela melopeia dos versos, escolheria dançar como dançasse a Duncan, ficaria famosa. E contaria a um repórter de revista (eu) que tudo vinha daqueles 16 versos, que ela toda só tinha existido para saltar do poema ao palco. Previ tudo, mas me esqueci. Ainda bem, porque não se cumpriu, como quase todas as profecias (salvo a parte do repórter).

            Anos depois meu irmão namorou Giselle, a irmã mais nova de Isadora – que também ganhou um poema de Bandeira. De sorte que cheguei mais perto do poema, pois quase virei concunhado da musa... Estava mais magra e bonita aos 17 anos. Mal e mal falamos. Eu a via só de longe, esperando ainda que o poema ganhasse músculo. Mas nada. Isadora cursou Letras, fez plástica no nariz, casou-se e teve uma filha. 

            Não me lembrava mais dela até me contarem de sua morte, em uma mesa de cirurgia de lipoaspiração, aos 35 anos. O poema “Isadora” sai agora de novo em livro. Só ele evoca, sem quase ninguém saber, a linda outrora que jamais dançou.

Ciclo de vingança

Ciclo de vingança

 

Remonta ao tempo do Onça o hábito de a torcida vaiar e agredir jogadores e técnicos de futebol.  Começou com a primeira derrota, o frango primordial. O Onça foi esquecido, embora a prática bárbara continue popular. Os tempos mudam uma hora destas. E mudaram para o Gilmar.

Ele é chefe de uma torcida de um tradicional clube de futebol da capital. Pode ser chamado de fanático. Seu lado positivo é organizar excursões quando o time joga fora, conferir os treinos, pintar faixas. Sabe conciliar as atividades com a de caixa de banco. O lado negativo está em não suportar quando o time perde uma partida. Toda vez que isso acontece,  chama seu bando de choque e dá um jeito de espezinhar ou agredir a equipe.

Um dia Gilmar combinou com a torcida de jogar moedas no campo na direção de Uonderson, o atacante que idolatrava. Como Uonderson recebeu uma proposta melhor de um clube estrangeiro, tudo mudou. De herói, passou a saco-de-pancada.

No jogo seguinte, Gilmar esperou Uonderson se aproximar da lateral para puxar o coro: ”Mercenário! Mercenário”. Enquanto isso, uma chuva de moedas atingia o atleta. Não foi o bastante, Gilmar e gangue esperaram o jogador à saída do vestiário. Em formação de correcor polonês, desferiram-lhe uma saraivada de cascudos. O jogador foi para casa humilhado no seu carrão importado. No ônibus, a turma de Gilmar só ria.

Uonderson planejou sua revanche. E como vingança é um prato frio, demorou semanas para se realizar. Na manhã do dia 5 do mês de dezembro, Gilmar pegou no serviço. De paletó e gravata, sentou-se ao caixa para iniciar um expediente cheio, pois era dia de pagamento. As portas se abriram. Um grupo de rapazes fez fila diante dele. Eram un 20 atletas de seu time, ecabeçados por Uonderson. “E aí, vai demorar pra atender?”, gritou o craque. “Calma, amigos, vou atender a todos!”, replicou o bancário, pasmo. “Mano, cê tá demorando”, falou alguém de trás da fila. Outro ofendeu: “Você não vale nada!” Gilmar não teve tempo de pensar, nem o segurança de intervir. O bando avançou, deu-lhe cascudos e o arremessou para o alto, gritando: “Mercenário! Mercenário!” Uonderson mandou colocarem Gilmar de volta à cadeira, e proclamou. “É para você aprender como a gente se sente quando a torcida nos agride. A gente é tão profissional quanto você. Dói, né?” No fim, o time à paisana lançou sobre o subgerente um tornado de notas de um real, e se retirou às gargalhadas. Gilmar quis morrer, mas engoliu em seco e atendeu o primeiro cliente. 

Será que aprendeu a lição? Quase. Agora mesmo ele está lá no centro de treinamento do clube, todo feliz, jogando pipoca nos jogadores... 

Pão, circo e adolescentes

 


   Pão, circo e adolescentes

 

 

O que a trilogia "Jogos Vorazes" diz sobre a sociedade do espetáculo 

 

Ando meio farto de trilogias e franquias pueris feitas para atrair um público que parece ser de crianças e adolescentes, mas, na verdade, abarca todos, de crianças a velhos. Nós, adultos, estamos nos infantilizando a fórceps por meio do consumo popular planetário – ou, para os entusiastas, cultura pop. No começo era Batman, Polyana, Super-Homem, Homem-Aranha e Harry Potter. Agora nos vemos infestados de personagens e platitudes os mais variados, todos produtos tramados para conquistar uma fatia da ansiedade juvenil – a nossa ansiedade. E assim abundam vampiros, anjos, zumbis e outros seres colecionáveis e suas histórias descartáveis (faz tempo que não escrevo esta palavra que deixou de marcar a diferença, já que o todo virou descartável, então não precisa ser dita).

O esquema se afigura sempre igual: um livro dá início a uma trilogia (ou tetralogia, no caso da “saga” Crepúsculo, que de saga só tem o apelido), faz sucesso, é adaptado para o cinema, vira brinquedo, depois vai para o DVD, então para a internet, e assim povoa milhões de inconsciências. Os ficcionistas trabalham com uma espécie de revenda de mitos arcaicos já conhecidos, mas que certamente foram esquecidos. Os autores refilmam arquétipos. Isso mesmo, refilmam, porque já pensam no filme que o livro vai se tornar em breve se tudo der certo. Eis a razão de tantos romances hoje se parecerem com roteiros de cinema. E, como o escapismo está na ordem do dia, os mitos redramatizados servem para gerar distração, e não para causar horror ou compaixão, como queria Aristóteles em sua Poética. Percy Jackson é um Ulisses “teen” de San Francisco, à caça de monstros homéricos. Bella, que não é Lugosi, beija seu imortal Edward e dá à luz um vampiro dócil à domesticação. Anjos se metem em batalhas sem sentido pela conquista de um céu tão inverossímil quanto o Papai Noel inventado pela Coca-Cola. A Guerra das Rosas, da Inglaterra do século XV, é convertida em Guerra dos tronos, uma matança carnavalesca, repleta de seres os mais risíveis e improváveis. Afinal, todos queremos sonhar e, desse modo, esquecer que a realidade dói.  

saiba mais

 

  • Sem noção do limite
  •  

  • Não me roubem a noite
  •  

  • O segredo dos palestrantes
  •  

  • A amante de Machado de Assis?
  •  

  • Sertanejos universais
  •  

  • Animais de superestimação
  •  

  • Festas de lembrar
  •  

  • O esfoliante que apaga a memória
  • Diante do panorama de fuga, a trilogia Jogos vorazes, agora iniciando a carreira no cinema estrelado por Jennifer Lawrence, parece trazer um pouco do princípio de realidade a um mundo mergulhado na busca de um escape fácil. A história é uma distopia que lembra os romances1984, de George Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, as três grandes distopias produzidas no século XX. Só que com pitadas de idílio piegas e baseada em uma premissa inconsistente. A autora americana Suzanne Collins se vale dos esquemas de sucesso para, diz ela, chamar a atenção dos jovens para sua forma de viver atual, em uma sociedade espetacularizada e em crescente degradação da natureza e dos costumes. Para isso, baseou-se no mito grego de Teseu e o Minotauro. 

     

     

    Os três livros de Suzanne – Jogos vorazes, Em chamas e A esperança, publicados entre 2008 e 2010 – são ambientados em um futuro sombrio. Depois de uma guerra civil que destruiu a América, ela foi rebatizada de Panem e convertida em um regime totalitário. Panem (reminiscência do lema “panem et circenses”, pão e circo, dos imperadores romanos) pode ser descrito como um Estado privatizado cuja festa patriótica maior é um reality show. A Capital, dominada por uma elite de políticos, empresários e fashionistas que mudam a cor da pele – e formam 1 % da população - exige que cada um dos doze distritos do país, pobres e espoliados, envie anualmente, como tributo, um menino e uma menina de 12 a 18 anos para lutar até morrer em uma competição cívica intitulada Jogos Vorazes (da mesma forma que o rei Minos manda sete casais de jovens anualmente para o labirinto do Minotauro). Trata-se de um reality-show dentro de uma floresta supercontrolada, a que todos os habitantes de Panem são convidados a assistir pela televisão. A cada ano, 24 gladiadores mirins se matam das mais variadas formas nesse dédalo macabro, até que saia um vencedor. O espetáculo deve ser completo. Dois mestres-de-cerimônia apresentam o show, e comentam as escaramuças do princípio ao fim, com tiradas irônicas e até momentos de “conteúdo humano”, quando os contendores falam de suas vidas antes do início da carnificina. Tudo se inicia com uma parada de biga para a apresentação dos participantes e termina com a glorificação do vencedor. O jogo é viciado, e as regras se alteram ao sabor dos patrocinadores. É como se a crueldade de Roma Antiga se acoplasse ao voyeurismo dos atuais reality-shows em um Estado-Minotauro, a um tempo humano e bestial. Difícil crer que esse tipo de espetáculo possa apaziguar e dar exemplo aos povos dominados. Obviamente, não consegue cumprir a meta a longo prazo.

     

    Katniss_foto_divulgacao
    A heroína Katniss, interpretada pela atriz Jennifer Lawrence. (Foto: Divulgação)

     

    A heroína vai passar de colaboradora do regime a líder revolucionária. Ela se chama Katniss, uma jovem de 16 anos do Distrito 12, que aprendeu a caçar com arco e flecha, e se oferece para participar dos Jogos Vorazes no lugar da irmã, que foi sorteada. Ela é a narradora dos romances. Isso não é mostrado no filme, fato que obscurece o processo de educação de Katniss, pois, se no início ela conta sua história como uma personagem de chick lit, uma Polyana desprovida de massa cinzenta, ela vai exibindo estados de consciência mais agudos à medida que a história se desenvolve. O livro é muito superior ao que se produz hoje no gênero, embora não seja perfeito. Há um aspecto “Crepúsculo” na trama, pois Katniss se divide entre o amor do resignado Peeta e do revolucionário Gale. Eles lutam ao lado dela. Mas Katniss se revela a mais valente. Aos poucos, toma consciência da opressão e, no final de A esperança, ela se converte aos rebeldes para liderar uma campanha que resultará na redemocratização de Panem. De ser passivo, mero objeto de um reality show, ela se transforma em sujeito transformador da História, para usar outro termo surrado, marxista. O filme Jogos Vorazes traz a primeira parte do entrecho, quando Katniss e Peeta são jogados no inferno do show e ainda não entendem direito por que estão ali e têm de matar outras crianças. O diretor Gary Ross compõe um ambiente irreal e bruto que remete a O show de Trumane à ficção científica japonesa Battle Royale (também surgida de um livro, o romance homônimo de Koushun Takami, de 1999, que muitos dizem que inspirou Suzanne Collins). Até 2015 ou depois, o espectador que não gosta de ler saberá do resto. 

     

    Jogos_vorazes_foto_divulgacao
    Katniss (Jennifer Lawrence) e Stanley Tucci, como mestre de cerimônias de "Jogoz Vorazes" (Foto: Divulgação)

     

    Toda ficção futurista, por mais fantástica, capta o espírito do tempo em que ela foi imaginada.Admirável mundo novo relata o nascimento da sociedade tecnológica e da manipulação genética. 1984 é a mais devastadora das críticas ao totalitarismo stalinista. Farhenheit 451 chama atenção para a degeneração da cultura, com o banimento dos livros em um Estado de perfeição. A distopia de Suzanne Collins apresenta a alegoria da recessão econômica americana. E vai além: denuncia as estratégias de ilusão usados para fazer a população se esquecer de sua precária realidade. Suzanne Collins dá a entender que os Estados Unidos não passam do fruto do coito danado entre a militarização à romana e a espetacularização da realidade. Talvez esteja errada.

    Tenho dúvida de que a intenção conscientizadora de Suzanne Collins resista à espetacularização de sua própria história. Talvez Jogos Vorazes corrobore os mecanismos vis da sociedade do espetáculo, apenas inovando na violência e na crueldade. Afinal, pão, circo e adolescentes estão vendendo como nunca.

    LAGiron 

    Sabedoria sem esforço

    Onde encontrar a sabedoria? A pergunta feita pelo crítico Harold Bloom é pertinente porque as pessoas cada vez mais precisam saber menos um assunto do que onde está esta assunto. Então onde a gente pode achar sabedoria de forma rápida e sem esforço? Com o mundo em aceleração crescente, não há local melhor para achar sabedoria que o aforismo.

    O livro O Mundo em uma Frase, do pesquisador James Geary, lançado no Brasil pela editora Objetiva, propõe “uma breve história do aforismo”. Aforismo é aquela frase curta e precisa que parece iluminar o entendimento com uma estocada filosófica certeira. Ou, como define Geary, os aforismos são como acelereadores de partículas para  a mente.

    O bom aforismo deve seguir cinco leis, segundo o filósofo Stuart Mill: Deve ser breve; Deve ser definitivo; Deve ser pessoal;  Deve conter uma guinada, uma virada; E, por fim, a  quinta lei: o aforismo deve ser filosófico. Observadas essas regras, o resultado só pode surtir bom efeito. O exemplo é este aforismo do poeta francês Chateaubriand: “Um escritor original não é aquele que não imita ninguém, mas aquele que ninguém consegue imitar”. Ou este do polonês Stanislaw Jerzi Lec: “Otimistas e pessimistas divergem somente sobre a data do fim do mundo”.

    O aforismo ministra sabedoria em pílulas. E talvez a sabedoria instantânea seja nossa única saída viável no momento. Se é verdadeiro o aforismo de Buda, de que somos o que pensamos, o que podemos ser agora, que nada conseguimos pensar? Se Buda está certo, somos tudo menos pensadores.


    LAGiron

    quinta-feira, 22 de março de 2012

    Bioy contra a juventude

    > > > Adolfo Bioy Casares passou aos anais da literatura argentina como a sombra do Jorge Luis Borges. Bioy seguiu tão fielmente seu e parceiro, que, dizem , aquele que é considerado o seu melhor livro, o romance A invenção de Morel, de 1940, teria sido reescrito por Borges. O certo é que o suposto escritor-fantasma se encarregou de redigir um prefácio à obra. Nele, Borges afirma que o jovem pupilo fundou um novo gênero nas letras hispânicas em uma narrativa – mescla de especulação filosófica e ficção científica - “perfeita”. A declaração tanto ajudou a glorificar o livro como ofuscar os restantes. Depois de Morel, Bioy escreveu dezenas de volumes, alguns em parceria com Borges, coletâneas de contos e oito romances, três deles após a morte de seu mestre, em 1986. No entanto, nenhum de seus esforços se equiparou a Morel. > O que mais próximo chegou a isso foi o romance Diário da guerra do porco (CosacNaify, 204 páginas, R$ 55, tradução de José Geraldo Couto), que chega ao Brasil com quatro décadas de atraso. A desatenção para com a obra de Bioy pode ter retardado as traduções de suas obras. > A edição conta, na quarta capa, com um texto de Rubem Fonseca. Ele diz preferir O diário da guerra do porco a Morel, porque “o escritor fala do compromisso que o ser humano tem com a vida” e “do dever de enfrentar a morte e a velhice e o desprezo da sociedade e o desdém e a violência dos jovens”. A comparação soa exagerada. O diário... pode conter as virtudes citadas, mas não ombreia com a fantasia concisa de A invenção de Morel. Mesmo assim, trata-se de um romance repleto de achados, especialmente no plano alegórico. > A cena se passa em Buenos Aires. Lá vive o herói do romance, Isidro Vidal. Ele tem quase 60 anos e mantém a vida sexual ativa, mas se comporta como ancião. Mora num cortiço e passa os dias jogando truco na bodega com os amigos. Eles demoram a descobrir que os jovens promovem uma rebelião contra os “porcos” – como chamam os mais velhos. Provocam tumulto e lincham criaturas que julgam repugnantes e mesquinhas. Dn Isidro e turma são forçados a buscar um esconderijo. Ali, imersos na consciência de seus defeitos, discutem a situação. Diz um deles: “O que me aborrece nessa guerra ao porco (..) é o endeusamento da juventude. Estão como loucos porque são jovens. Que estúpidos.” Outro: “Nesta guerra os garotos matam de ódio pelo velho que um dia vão ser. Um ódio bastante assustado...” A atmosfera claustrofóbica aos poucos se desanuvia até chegar à farsa. > Publicado em 1969, O diário da guerra do porco apresenta uma fábula sobre a revolução da cultura jovem dos anos 60, que então pegava os mais velhos de surpresa. Lido hoje, vale como provocação e uma ironia: a geração que linchava os velhos em 1968 chegou à terceira idade.

    quarta-feira, 21 de março de 2012

    Pão, circo e adolescentes

    O que a trilogia "Jogos Vorazes" diz sobre a sociedade do espetáculo 

    Ando meio farto de trilogias e franquias pueris feitas para atrair um público que parece ser de crianças e adolescentes, mas, na verdade, abarca todos, de crianças a velhos. Nós, adultos, estamos nos infantilizando a fórceps por meio do consumo popular planetário – ou, para os entusiastas, cultura pop. No começo era Batman, Polyana, Super-Homem, Homem-Aranha e Harry Potter. Agora nos vemos infestados de personagens e platitudes os mais variados, todos produtos tramados para conquistar uma fatia da ansiedade juvenil – a nossa ansiedade. E assim abundam vampiros, anjos, zumbis e outros seres colecionáveis e suas histórias descartáveis (faz tempo que não escrevo esta palavra que deixou de marcar a diferença, já que o todo virou descartável, então não precisa ser dita).

    O esquema se afigura sempre igual: um livro dá início a uma trilogia (ou tetralogia, no caso da “saga” Crepúsculo, que de saga só tem o apelido), faz sucesso, é adaptado para o cinema, vira brinquedo, depois vai para o DVD, então para a internet, e assim povoa milhões de inconsciências. Os ficcionistas trabalham com uma espécie de revenda de mitos arcaicos já conhecidos, mas que certamente foram esquecidos. Os autores refilmam arquétipos. Isso mesmo, refilmam, porque já pensam no filme que o livro vai se tornar em breve se tudo der certo. Eis a razão de tantos romances hoje se parecerem com roteiros de cinema. E, como o escapismo está na ordem do dia, os mitos redramatizados servem para gerar distração, e não para causar horror ou compaixão, como queria Aristóteles em sua Poética. Percy Jackson é um Ulisses “teen” de San Francisco, à caça de monstros homéricos. Bella, que não é Lugosi, beija seu imortal Edward e dá à luz um vampiro dócil à domesticação. Anjos se metem em batalhas sem sentido pela conquista de um céu tão inverossímil quanto o Papai Noel inventado pela Coca-Cola. A Guerra das Rosas, da Inglaterra do século XV, é convertida em Guerra dos tronos, uma matança carnavalesca, repleta de seres os mais risíveis e improváveis. Afinal, todos queremos sonhar e, desse modo, esquecer que a realidade dói.  

    Diante do panorama de fuga, a trilogia Jogos vorazes, agora iniciando a carreira no cinema estrelado por Jennifer Lawrence, parece trazer um pouco do princípio de realidade a um mundo mergulhado na busca de um escape fácil. A história é uma distopia que lembra os romances1984, de George Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, as três grandes distopias produzidas no século XX. Só que com pitadas de idílio piegas e baseada em uma premissa inconsistente. A autora americana Suzanne Collins se vale dos esquemas de sucesso para, diz ela, chamar a atenção dos jovens para sua forma de viver atual, em uma sociedade espetacularizada e em crescente degradação da natureza e dos costumes. Para isso, baseou-se no mito grego de Teseu e o Minotauro. 

    Os três livros de Suzanne – Jogos vorazes, Em chamas e A esperança, publicados entre 2008 e 2010 – são ambientados em um futuro sombrio. Depois de uma guerra civil que destruiu a América, ela foi rebatizada de Panem e convertida em um regime totalitário. Panem (reminiscência do lema “panem et circenses”, pão e circo, dos imperadores romanos) pode ser descrito como um Estado privatizado cuja festa patriótica maior é um reality show. A Capital, dominada por uma elite de políticos, empresários e fashionistas que mudam a cor da pele – e formam 1 % da população - exige que cada um dos doze distritos do país, pobres e espoliados, envie anualmente, como tributo, um menino e uma menina de 12 a 18 anos para lutar até morrer em uma competição cívica intitulada Jogos Vorazes (da mesma forma que o rei Minos manda sete casais de jovens anualmente para o labirinto do Minotauro). Trata-se de um reality-show dentro de uma floresta supercontrolada, a que todos os habitantes de Panem são convidados a assistir pela televisão. A cada ano, 24 gladiadores mirins se matam das mais variadas formas nesse dédalo macabro, até que saia um vencedor. O espetáculo deve ser completo. Dois mestres-de-cerimônia apresentam o show, e comentam as escaramuças do princípio ao fim, com tiradas irônicas e até momentos de “conteúdo humano”, quando os contendores falam de suas vidas antes do início da carnificina. Tudo se inicia com uma parada de biga para a apresentação dos participantes e termina com a glorificação do vencedor. O jogo é viciado, e as regras se alteram ao sabor dos patrocinadores. É como se a crueldade de Roma Antiga se acoplasse ao voyeurismo dos atuais reality-shows em um Estado-Minotauro, a um tempo humano e bestial. Difícil crer que esse tipo de espetáculo possa apaziguar e dar exemplo aos povos dominados. Obviamente, não consegue cumprir a meta a longo prazo.

     

    katniss (Foto: Divulgação)

     

    A heroína vai passar de colaboradora do regime a líder revolucionária. Ela se chama Katniss, uma jovem de 16 anos do Distrito 12, que aprendeu a caçar com arco e flecha, e se oferece para participar dos Jogos Vorazes no lugar da irmã, que foi sorteada. Ela é a narradora dos romances. Isso não é mostrado no filme, fato que obscurece o processo de educação de Katniss, pois, se no início ela conta sua história como uma personagem de chick lit, uma Polyana desprovida de massa cinzenta, ela vai exibindo estados de consciência mais agudos à medida que a história se desenvolve. O livro é muito superior ao que se produz hoje no gênero, embora não seja perfeito. Há um aspecto “Crepúsculo” na trama, pois Katniss se divide entre o amor do resignado Peeta e do revolucionário Gale. Eles lutam ao lado dela. Mas Katniss se revela a mais valente. Aos poucos, toma consciência da opressão e, no final de A esperança, ela se converte aos rebeldes para liderar uma campanha que resultará na redemocratização de Panem. De ser passivo, mero objeto de um reality show, ela se transforma em sujeito transformador da História, para usar outro termo surrado, marxista. O filme Jogos Vorazes traz a primeira parte do entrecho, quando Katniss e Peeta são jogados no inferno do show e ainda não entendem direito por que estão ali e têm de matar outras crianças. O diretor Gary Ross compõe um ambiente irreal e bruto que remete a O show de Trumane à ficção científica japonesa Battle Royale (também surgida de um livro, o romance homônimo de Koushun Takami, de 1999, que muitos dizem que inspirou Suzanne Collins). Até 2015 ou depois, o espectador que não gosta de ler saberá do resto. 

     

    Jogos vorazes (Foto: Divulgação)

     

    Toda ficção futurista, por mais fantástica, capta o espírito do tempo em que ela foi imaginada.Admirável mundo novo relata o nascimento da sociedade tecnológica e da manipulação genética. 1984 é a mais devastadora das críticas ao totalitarismo stalinista. Farhenheit 451 chama atenção para a degeneração da cultura, com o banimento dos livros em um Estado de perfeição. A distopia de Suzanne Collins apresenta a alegoria da recessão econômica americana. E vai além: denuncia as estratégias de ilusão usados para fazer a população se esquecer de sua precária realidade. Suzanne Collins dá a entender que os Estados Unidos não passam do fruto do coito danado entre a militarização à romana e a espetacularização da realidade. Talvez esteja errada.

    Tenho dúvida de que a intenção conscientizadora de Suzanne Collins resista à espetacularização de sua própria história. Talvez Jogos Vorazes corrobore os mecanismos vis da sociedade do espetáculo, apenas inovando na violência e na crueldade. Afinal, pão, circo e adolescentes estão vendendo como nunca.

    LAGiron

    Tradutores mais que traidores

    Os livros no Brasil são tão mal traduzidos que comprometem a categoria


    Uma das obrigações mais agradáveis da função de jornalista é a de ler muito e acompanhar de perto os lançamentos de livros, selecionando os bons dos maus lançamentos. O prazer, no entanto, pode facilmente se transformar em tortura, já que os maus títulos sempre superam numericamente os bons. Nós setoristas de cultura somos obrigados a lidar com obras esotéricas, romances para moças (hoje chamados de chick-lit), suspenses de quinta disfarçados de inteligência (os smart-thrillers) e biografias pretensiosas, cujo autor parece desejar loucamente ofuscar o biografado. Aproveitamos menos de 5% do total estimado de 20 mil títulos lançados anualmente no país.

    Ora, dentro dessa tortura mora outra ainda mais cruel: a oferecida pelas traduções de obras estrangeiras para o português do Brasil. É cada vez menos raro encontrar traduções de baixa qualidade de obras importantes lançadas por grandes editoras brasileiras. O problema se dissemina por toda parte, do setor de didáticos e paradidáticos ao dos best-sellers e grandes obras literárias. Ninguém escapa da má tradução. A grande vítima é o leitor, prejudicado sem saber, mesmo porque não tem obrigação de julgar uma tradução.

    Como leitor profissional, tenho vivido momentos de horror crescente ao me deparar com traduções literárias, aquelas que deveriam merecer um pouco mais de cuidado por parte dos encarregados do texto vernáculo. Para não ferir egos, é melhor não citar quem e que obras foram vertidas. Afinal, os problemas são recorrentes em boa parte dos títulos literários. Eles são de três ordens: técnica, educacional e cultural.

    O primeiro aspecto que chama atenção está na abundância de falhas de revisão ortográfica. São aqueles erros que atrapalham a leitura, desviam a atenção e, pior, fazem a gente duvidar da qualidade do conteúdo do que está lendo. Erros tipográficos, como se dizia antigamente, já deveriam ter sido eliminados de nossas vidas. Em revistas e jornais, cometem-se muitas dessas falhas, e é uma luta cotidiana para tentar banir esses monstrengos que rebaixam qualquer texto. Quando se trata de livros, porém, essa questão já deveria ter sido ultrapassada. Com revisores competentes e corretores de texto de última geração, é possível detectar os erros. Claro que seria necessário algum tempo para o trabalho ser realizado. Esse tempo parece ter acabado.

    Os erros de português são mais frequentes do que os de ortografia. Concordância, regência e sintaxe são massacradas impiedosamente, tudo em nome de vultos literários conhecidos. Ler um clássico dessa forma conspurcado irrita e muitas vezes ultraja o leitor. O tradutor atua aqui não como um traidor (de acordo com a expressão italiana clássica dada à profissão: “Traduttore, Tradittore” - tradutor, traidor), e sim como um genuíno usurpador dos tesouros da literatura. Com um mínimo de conhecimento, qualquer um percebe que oportunistas quase analfabetos se encarregam de tarefas para as quais obviamente não têm competência.

    Ainda mais graves são as ocorrências de equívocos que demonstram a falta de cultura daqueles que estão fazendo tradução. Eles produzem versões desprovidas de coerência do enunciado e coesão entre as diversas partes de um texto. Isso indica que falta pensamento lógico básico em muitos tradutores. Eles usam barbarismos imundos e contaminam o idioma. Como se não bastasse, desconsideram que a tradução também deve envolver conhecimento da parte do tradutor em relação ao contexto do idioma que ele está vertendo. Em um romance que li recentemente, traduzido do espanhol, o teatro São Carlos de Lisboa está grafado “San Carlos”, como se fosse um teatro espanhol, e a região da Saxônia aparece como “Sajonia”. E assim por diante, derrapadas desse tipo desqualificam a tradução como um todo, pois evidenciam a falta de preparo e de conhecimento que o tradutor possui do assunto. É interessante que essas traduções parecem subestimar a inteligência do consumidor, como se ele não fosse capaz de distinguir o ruim do pior.

    Tenho quase certeza que esses indivíduos que se dizem tradutores fazem questão de assinar seu trabalho nas páginas de rosto dos livros lançam mão dos mais pérfidos recursos para completar suas tarefas. Já li muito livro cuja tradução em português parece ter sido produzida no Google Translator.

    Até aqui descrevi a situação. Chega a hora de perguntar por que todos esses erros, equívocos e bandalheiras ocorrem. Dois motivos me ocorrem de imediato: o fenômeno da vulgarização das traduções, que reflete o avanço do mercado, e a indigência cultural brasileira, que não prepara adequadamente profissionais de tradução, ou, pelo menos, desconsidera os profissionais da área e remunera mal tradutores arrivistas ou mesmo amadores.

    Vamos ao primeiro motivo. Como tudo no mundo, livros não consistem em entidades perfeitas. E eles se tornam cada vez mais precários à medida que o mercado impõe uma alta velocidade de lançamentos. O mercado brasileiro de livros cresce 8% ao ano. Além disso, os livros já estão livres do papel, e chegam agora até nós no formato digital de e-books. Havia um respeito talvez exagerado pelo texto impresso em papel. Hoje o papel não passa de um subproduto do texto digitalizado. O papel traz matéria a um bem imaterial chamado texto. A dessacralização do objeto livro deixa os salteadores à vontade para fazer o que bem entenderem com as obras alheias.

    O segundo motivo afeta a profissão do tradutor. A alta frequência de inexatidões acaba por prejudicar a minoria de excelentes tradutores em atividade no Brasil. Por isso, os tradutores profissionais estão se rebelando contra a situação. Sentem-se excluídos porque a tabela do Sintra (Sindicato Nacional dos Tradutores) é alta de acordo com as editoras, que querem trabalhar com orçamentos cada vez mais reduzidos. E já que os bons profissionais custam mais e levam mais tempo para entregar o trabalho, a solução encontrada é ignorá-los em benefício de amadores ou arrivistas. Criou-se uma espécie de lúmpen da tradução, que aceita pagamentos mínimos por uma tarefa da qual se safa rapidamente.

    O que fazer para melhorar o nível das traduções e não comprometer a ínclita categoria dos tradutores? Não tenho resposta para isso. Talvez fosse útil criar instrumentos mais precisos para controlar a atividade. Mas quem faria isso sem medo de ser chamado de inimigo da liberdade de expressão? Melhor então seria empreender uma caça às bruxas para julgar e banir os maus tradutores do mapa. A desaparição de muitos tradutores preencheria uma lacuna em nossas vidas. A verdade é que a tarefa é mais complicada do que parece, além de exigir o longo prazo. Seria necessário investir com seriedade na formação dos tradutores, com critérios de seleção menos complacentes que rigorosos. Má tradução e a má leitura são farinha do mesmo saco de permissividade cultural em que estamos metidos. 


    LAGiron

    A nova cara do imperador

    Dom Pedro I ganha uma dimensão trágica e vira best-seller mundial com o romance O império é você
     
     
                    Uma nação se faz de heróis e vilões, fundadores e traidores. Dom Pedro I (1798-1834) simboliza esses traços opostos ao mesmo tempo. Tanto historiadores como contadores de histórias brasileiros se encantam há gerações por suas façanhas, incoerências e deslizes. O romance O império é você (Planeta, 494 páginas, R$ 49,90), do espanhol Xavier Moro, conta mais uma vez a história de dom Pedro. Desta vez, não só para os brasileiros. A obra virou best-seller na Espanha desde que foi lançado, em novembro. Vendeu 200 mil exemplares em duas semanas, ganhou o prêmo Planeta, um dos maiores de língua espanhola, e já foi lançado em 10 países e está sendo traduzido para 17 idiomas. 

    "Dom Pedro se presta à narrativa romanesca", diz o jornalista Laurentino Gomes, autor do livro de História 1822, um dos grandes sucessos de vendas de 2010. "A história dele dá impressão de se contar sozinha."

    Ele foi um homem público contraditório. Declarou a independência do Brasil em 1822 para, em seguida, partir para a Europa para lutar e instaurar a monarquia constitucional em Portugal, onde nasceu. Foi liberal e romântico quando príncipe, mas como imperador do Brasil rasgou a constituição que ajudou a formular. Logo depois, seria coroado dom Pedro IV, o primeiro monarca constitucional português, morrendo como um poeta, de tuberculose, no quarto Dom Quixote – com afrescos que representam o personagem de Cervantes, do palácio de Queluz, no mesmo cômodo em que havia sido concebido e nascido. Sua vida privada foi tempestuosa e bárbara. Casou-se com a princesa austríaca dona Leopoldina, com quem teve quatro filhos, e a quem atribuiu algumas vezes funções de governo. Mesmo assim, manteve no palácio várias amantes, a mais famosa delas Domitila, a marquesa de Santos. Reconheceu como legítimos mais de 50 filhos. Era carinhoso com as mulheres, mas agrediu Leopoldina, provocando-lhe o aborto e a morte, em 1827. Sensível, era dado a compor música, embora manifestasse a maior crueldade ao ser contrariado. Era epiléptico, fato que podia explicar as famosas mudanças de comportamento. Seus hábitos de higiene incluíam defecar em público, durante uma parada, enquanto os soldados se mantinham em continência.

                    A alteração de sua imagem e reputação acompanham a história do Brasil. Cada período representa dom Pedro a seu modo e segundo suas necessidades (leia quadro abaixo) Depois de ser sido ignorado durante o segundo reinado (1841-1889), de seu filho, dom Pedro II, tornou-se o saco de pancadas favorito dos ideólogos republicanos. "Para a construção simbólica da República, dom Pedro funcionava como o vilão monárquico ideal", diz Laurentino. "Os romancistas embarcaram na onda, e até hoje a gente assite a resquícios da estigmatização do personagem." 

    Nos anos 1970, ápice do regime militar, o imperador recebeu uma promoção como soldado exemplar. Para comemorar o Sesquicentenário da Independência do Brasil – um tipo de data, 150 anos, pouco festejada - o presidente militar Emílio Garrastazu Médici usou o imperador como santo de caserna. O ator Tarcísio Meira incorporou o dom Pedro galante, que dava o grito do Ipiranga montado em um alazão – e não, como informam os historiadores, abotoando as calças, surpreendido por emissários quando se aliviava no riacho Ipiranga. Com a democracia plena, a paritr de 1989, ele se tornou alvo de mais pancada, tanto da parte dos intérpretes do Brasil vinculados ao marxismo como dos escritores, dramaturgos e cineastas. Surgiu um dom Pedro escrachado que encarnava a desordem econômica e institucional que o país experimentou na passagem dos anos 1980 para os 1990.

    "Somente no século XXI ele passou a ser compreendido como ser humano e precursor do liberalismo", diz Iza Salles, autora do romance O coração do rei, de 2008. "No novo século, o Brasil se encontra mais ao centro, não há mais polarizações políticas", diz Laurentino. "Somente agora é possível enxergar dom Pedro de um modo realista, como um pai da pátria e um ser humano. Não existe história definitiva." A historiadora Mary del Priore, que publica daqui a dois meses o livro Carne e sangue (Rocco), com documentos inéditos sobre o triângulo Pedro-Leopoldina-Domitila, afirma que o público exige informações verdadeiras em vez de mitos. "Dom Pedro I sofreu uma derrota simbólica, foi um monarca à deriva", diz Mary. "Não podemos é continuar a acreditar em panteões de mitos, que não passam de construções de um período histórico."

                  Dom Pedro, até então desconhecido mundialmente, agora começa a ser conhecido em toda parte por causa do romance O imperio é você. O livro chega ao Brasil em uma edição de 50 mil exemplares. Não que não tenham havido tentativas anteriores de internacionalizá-lo. Em 1941, o filme argentino Embrujo mostrava as aventuras amorosas do brasileiro, envolvido entre a imperatriz Leopoldina e Domitila, a marquesa de Santos. Um detalhe curioso: o famoso mnúsico cubano Bola de Nieve faz no filme o papel de escravo. Mas só agora com o best-seller ele começa a ficar famoso. "Talvez os brasileiros estivessem próximos demais do personagem para lhe dar a devida dimensão – e tenham perdido muito tempo pintando-o como um pícaro", diz Moro, de 56 anos, antropólogo de formação e autor de outros best-sellers, como Paixão índia, 2006 e O sari vermelho, de 2009. Ele teve a ideia do livro nas muitas viagens que fez à Amazônia nos anos 90, para escrever a história do líder seringueiro Chico Mendes. "Dom Pedro é único porque foi fundamental no velho e no novo mundo.", afirma. "É o responsável pelo Brasil ser hoje uma nação unida e poderosa, e serviu de exemplo a outras monarquias europeias, pelos avanços que fez em Portugal."

                    Moro levou três anos pesquisando no Brasil e Portugal para concluir seu livro. "Dom Pedro é um personagem incômodo tanto para portugueses como para brasileiros. Os portugueses o odeiam porque ele jogou fora a colônia mais importante do império. Os brasileiros não o perdoam porque abandonou o país." Moro diz que tentou restaurar a humanidade de Pedro. Mesmo com sua pesquisa extensa, ele tem revoltado alguns historiadores pelas liberdades que tomou. "Só inventei alguns diálogos e cenas", diz. "Mas todos os peronsagens são reais." Moro se fascinou tanto pelo exotismo da figura que, no romance,  o jovem Pedro toca maracas com os escravos (maraca é um chocalho de origem maia e era rara no Brasil no início do século XOX) e mora em um barraco no morro com a bailarina francês Noémie – quando ainda não existiam favelas nos morros. Como se não bastasse, feito um enredo de escola de samba, dom Pedro I casa-se com Noémie em uma cerimônia de candomblé à beira da praia, organizado por seu fiel criado Chalaça. "Tudo isso seria impossível", diz a colega Iza Salles. "Dom Pedro vivia em uma sociedade católica e jamais se submeteria a um ritual afro."

    Algumas passagens podem provocar risadas no leitor. A tradução também prejudica a leitura. Ela traz um texto cheio de espanholismos e imprecisões, como gravar o largo do Rocio de "Rócio", e chamar de San Carlos o teatro São Carlos de Lisboa.

                    Nesta semana, Moro chega ao Brasil para uma turnê literária, por cinco cidades, começando por São Paulo. "Sei que vou causar polêmica e desagradar a muitos intérpretes do Brasil." Mesmo com todas as liberdades que tomou, seu romance apresenta uma versão empolgante de dom Pedro. Ele ressurge como um herói trágico e romântico, capaz de pecados hediondos e de gestos de martírio. "Ele é uma mistura de Don Juan e Dom Quixote", diz Moro, que visitou em Queluz o quarto de Dom Quixote. "Ele se escravizou a seus desejos, o que não o impediu de ser idealista. Ele nasceu e morreu sob a imagem do Cavaleiro da Tiste Figura.

    sábado, 17 de março de 2012

    Alberto Giacometti, o escultor de sombras

    Chega ao Brasil a obra do artista que destruiu a maior parte de suas peças - e fez a fama com as que sobraram
     
                O artista suíço Alberto Giacometti (1901-1966) ficou famoso pelas esculturas desproporcionais, seres humanos minúsculos ou tão finos e altos que parecem se desfazer no tempo e espaço como vislumbres ou vagas lembranças. Ele produziu centenas de obras que se tornaram modelos para a arte e a forma de ver do nosso tempo. Ainda assim, destruiu milhares delas que às vezes considerava melhores do que as versões acabadas – embora não definitivas. “Ao fazer uma coisa muito rapidamente e ela ficar boa, eu acabo desconfiando da própria velocidade”, disse em 1964 entrevista ao crítico londrino David Sylvester, transcrita em seu livro Um olhar sobre Giacometti (CosacNaify, 272 páginas, R$ 46,00). “Vou querer começar de novo para ver se vou me sair bem uma segunda vez. Na segunda vez nunca fica tão bom, a peça começa a degringolar. Assim, a original é a melhor.” Nessa altura, a peça original já estava reduzida a barro. Sylvester apelidou Giacometti, de quem se tornou amigo, de “um cego na escuridão”, um artista solitário que se recusou a aderir a escolas de vanguarda e destruiu suas criações em nome de um ideal que jamais alcançou.

                A maior amostra dessa “desobra” será exibida pela primeira vez na América do Sul na retrospectiva Alberto Giacometti: Coleção da Fondation Alberto e Annette Giacometti, Paris. A exposição começa nesta semana e fica em cartaz até 17 de junho na Pinacoteca do Estado de São Paulo, para depois seguir para o Rio de Janeiro e Buenos Aires. São 280 itens. O centro da mostra está nas 80 esculturas de materiais e tamanhos diversos, de miniaturas a gigantes. Elas são acompanhadas de trabalhos em outros suportes que ajudam a explicar o trabalho de Giacometti, como 40 pinturas e 80 esboços sobre papel, além de fotografias, ilustrações de livros e objetos decorativos, como vasos e luminárias.

                A historiadora da arte francesa Véronique Wiesinger, curadora e diretora da fundação do artista, afirma que a obra de Giacometti é mais difícil de ser racionalizada do que percebida pelos sentidos. Ela organizou a retrospectiva em ordem cronológica e temática, convidando o visitante a um passeio metafísico. “Quero mostrar que Giacometti foi tanto um artista completo como um pensador da arte”, diz. “Ele lidou com problemas como o de representar a natureza e lidar com o espaço e o ponto de vista. Mas, acima de tudo, encarou a criação artística como uma experiência filosófica. Sua obra funciona como um buraco negro em que o espectador é leva consigo todas as suas lembranças, experiências e emoções.”

                Na Pinacoteca, as obras ocupam todo o primeiro andar, com doze salas e o octógono, na parte central do prédio. A primeira sala expõe os anos de aprendizado no ateliê do pai, o pintor impressionista Giovanni Giacometti, na cidade de Stampa, na Suíça italiana. De 1901 a 1921, ele aprendeu a desenhar, pintar e esculpir a partir da observação da natureza e de modelos-vivos. Em 1922, mudou-se para Paris para estudar escultura. No final de 1926, instalou seu ateliê na rua Hyppolyte-Maindron, 46, em Montparnasse, e de lá saiu em raras ocasiões, para visitar a família na Suíça ou para viagens de trabalho. Trabalhou nele até a morte. O prédio seria demolido em 1972 e seu conteúdo formou o primeiro acervo da Fundação Giacometti, criada em 2003.

                No espaço reduzido do ateliê, ele viveu suas aventuras mais inquietantes. Ali se apaixonou pela arte “primitiva” da África e Oceania, e inspirado nela esculpiu Casal. Foram suas primeiras peças expostas em 1927 em Paris – e se encontram na sala 2. De 1929 a 1935,  abandonou o figurativismo e os modelos. O grupo surrealista, liderado pelo escritor André Breton, convidou-o a o fazer parte do movimento. Quando fez sua primeira mostra individual, em 1932, Breton celebrou a escultura Bola suspensa como protótipo do Surrealismo. Mas Giacometti foi expulso em 1935 porque voltou a trabalhar com modelos, pecado mortal para os surrealistas, que retiravam o material de suas obras dos sonhos e alucinações. Giacometti não se importou muito. Quando ficou manco ao ser atropelado por um carro em 1938, enfurnou-se ainda mais. Durante a ocupação nazista, foi obrigado a fugir à Suíça. Retornou ao ateliê depois da guerra. Ali se envolveu com suas modelos e se casou em 1949 com uma delas, Annette Arm (1923-1993). E nele recebeu autores famosos que escreveram sobre sua obra, como Jean-Paul Sartre e Jean Genet. Ambos o chamavam de existencialista. No artigo “O ateliê de Giacometti”, publicado em 1957, Genet anuncia que descobriu o segredo da arte do amigo: “Giacometti parece querer descobrir e desnudar essa ferida secreta que existe em tudo e em todos”.

                Uma ferida que fez gosto de nunca cicatrizar e nem comentar. Suas preocupações pareciam ser de ordem estética. “O problema é encontrar o real por meio das aparências externas”, dizia. Giacometti se atormentava com a forma clássica de representação, que respeitava as medidas exatas do volume do modelo.Via arte clássica como falsificação da realidade, já que esta só se apresenta por meio da percepção. “Hoje mesmo de tarde do British Museum, enquanto estava olhando as esculturas gregas, senti que elas eram enormes blocos de pedra, mas blocos mortos”, disse a David Sylvester. “Quando vejo alguém olhando para elas, essa pessoa não tem espessura e dá a impressão de ser uma aparição quase transparente – e leve. O próprio peso da massa é falso. O que faz um ser parecer vivo é o fato de ele, mesmo sendo muito gordo, pode ficar levemente na ponta de um pé, ele até ode dançar num pé só, não pode? Uma das razões por que fiz figuras em tamanho natural que se tornaram extremamente finas deve ser que, para serem reais, elas tinham de ser leves o suficiente para eu erguê-las, carregá-las com uma mão só e coloca-las num táxi junto de mim.”

                Dedicou seus últimos anos a desbastar as peças que criava. À medida que suprimia a matéria, descobria que as figuras se tornavam maiores: “Quanto mais desbasto maior a peça fica. Mas por que isso acontece, ainda não sei. Veja, no busto que estou fazendo agora, não paro de desbastar; no entanto, ele é tão grande que tenho a impressão de que sempre volta a ficar duas vezes mais espesso do que na realidade é. Por isso, tenho de continuar desgastando, desbastando. E depois, bom, simplesmente não sei. É nesse ponto em que realmente me perco. É como se o material real estivesse se tornando ilusório.”

                O professor Teixeira Coelho compara-o aos pintores Lucian Freud e Francis Bacon, que buscaram distorcer a  figura humana para ressaltar a ferida. “Há uma mudança de escala, um colapso da percepção espacial dele”, afirma Coelho. “É diferente de Michelangelo ou Rodin, que podiam apresentar esculturas inacabadas, mas o corpo era proporcional ao espaço que ele ocupava.”Giacometti declarou a derrota da representação, diz o crítico Rodrito Naves: “É como se disesse que, em nosso tempo, não é mais possível encontrar a completude, nem do lado do artista, nem do lado do retratado. É uma somatória de erros, como se fosse o elogio do fracasso.”     

    Até morrer do coração em 11 de janeiro de 1966, Giacometti exaltou a precariedade como a única expressão possível da realidade. Nos seus últimos anos, dedicou-se a três atividades: representar a figura feminina, petrificar aparições de movimentos e moldar cabeças em argila ou terracota sem trair a verdade delas. Essas obsessões comparecem no octógono da Pinacoteca, que abriga o monumento projetado em 1958 a ser instalado na praça diante do edifício do banco Chase Manhattan em Nova York: são figuras  longas e gigantescas em bronze – uma mulher em pé um homem caminhando – ao lado de uma cabeça colocada o chão. O projeto nunca foi concretizado, para alívio do artista sempre insatisfeito. “Um fracasso me interessa tanto quanto um sucesso”, disse. “E devíamos expor as obras que não são boas em vez das melhores.”

                Ele gostava desse tipo de frase de efeito, e talvez as inventasse para se proteger. Apegava-se a suas peças enquanto as fazia. Depois as abandonava, sem terminá-las. “Quando sinto que não estou querendo largar a obra, volto para ela. E quando paro, não é para achá-la mais completa, ou melhor; é porque, naquele momento, ela deixou de ser necessária para mim. Isso quer dizer que eu sempre paro exatamente no dia em que o trabalho estaria apenas começando.” Para Giacometti, a arte verdadeira ainda está por ser feita.


    Participe do Projeto Generosidade: www.projetogenerosidade.com.br


    ---
    As informacoes contidas nesse e-mail e documentos anexos sao
    dirigidas exclusivamente ao(s) destinatario(s) acima indicado(s),
    podendo ser confidenciais, particulares ou privilegiadas. Qualquer tipo
    de utilizacao dessas informacoes por pessoas nao autorizadas esta
    sujeito as penalidades legais. Caso voce tenha recebido esse e-mail por
    engano, por favor envie uma mensagem ao remetente, deletando-o em
    seguida. Quaisquer opinioes ou informacoes expressadas neste e-mail
    pertencem ao seu remetente e nao necessariamente coincidem com
    as desta empresa.

    Nenhum vírus encontrado nessa mensagem.
    Verificado por AVG - www.avgbrasil.com.br
    Versão: 2012.0.1913 / Banco de dados de vírus: 2114/4872 - Data de Lançamento: 03/15/12


    E-mail verificado pelo Terra Anti-Spam.
    Para classificar esta mensagem como spam ou não spam, clique aqui.
    Verifique periodicamente a pasta Spam para garantir que apenas mensagens
    indesejadas sejam classificadas como Spam.