sexta-feira, 9 de março de 2012

Os dilemas da fama, segundo Jennifer Egan

               

            A escritora e jornalista Jennifer Egan tomou um susto em 2011 quando foi avisada de que havia recebido o prêmio mais importante da ficção americana, o Pulitzer, por seu romance A visita do tempo cruel. “Como não divulgam os candidatos, o prêmio veio do nada”, diz ela. “Passei a sentir o peso da responsabilidade dos autores consagrados, e isso por uma obra que muitos críticos nem consideram romance, tão cheia é de vaivéns e mudanças de planos narrativos.”

            Jennifer teve razão em se espantar. Histórias como a dela, organizada de forma descontínua, com várias vozes contando suas versões e avanços e recuos no tempo, costumam amargar o desprezo dos prêmios literários. Isso quando alguma editora concorda em publicá-las. O romance e o conto experimentais caíram em desgraça ainda nos anos 1980 em benefício da narrativa linear tradicional. O último autor americano desse tipo a ter tido repercussão suicidou-se há quatro anos: David Foster Wallace (1962-12008), autor da ficção hiperfragmentária Infinite Jest, de 1996, enforcou-se em meio a dilemas enquanto escrevia um livro ainda mais instável, The pale king, cujos fragmentos foram lançados em volume em 2010. Algo muito diferente, por exemplo, de dois romances hoje em moda: o realista Liberdade, do americano Jonathan Franzen, e o fantástico 1Q84, do japonês Haruki Murakami. Um e outro seguem os preceitos consagrados da linearidade – e vendem milhões de exemplares pelo mundo.

            Nada credenciava A visita do tempo cruel à fama. Mas, surpreendentemente, ele vendeu 300 mil exemplares nos Estados Unidos, está sendo adaptado para uma série de televisão pela rede HBO e sai nesta semana no Brasil pela editora Intrínseca ( 336 páginas, R$ , tradução de Fernanda Abreu). Trata-se do quinto livro de Jennifer Egan em 19 anos de carreira. Jennifer diz que, aos 49 anos, já experimentou todas as formas, inclusive a tradicional. Foi o caso de seu segundo romance, Amor a três, o circo invisível, de 1995, uma história de amor adaptada para o cinema e estrelada pela atriz Cameron Diaz. “Não tenho estilo nem ideias definidos antes de começar a escrever uma história”, diz Jennifer. “Gosto de escrever à mão porque assim é como se eu sonhasse aos poucos o enredo, que vai aparecendo à medida que jogo as ideias no papel.”

            O impacto da obra junto à crítica foi positivo. Mesmo assim, alguns resenhistas o chamaram de fora de moda por abordar irregularmente o tema clássico da passagem do tempo e por cometer ousadias que consideraram ingênua. Uma delas é compor um capítulo inteiro em PowerPoint, o software de apresentação que justapõe textos, gráficos e imagens.

            O livro se revela tão irresistível com seu humor e tom satírico quanto difícil de resumir, já que uma parcela da experiência de construir a história fica a cargo do leitor. O romance se divide em 13 capítulos – cada um deles em formatos e narradores diferentes, O pano de fundo é a decadência da indústria da música, incapaz de se adaptar às novas tecnologias. Quem encarna o drama é Bennie Salazar, roqueiro da cena punk de San Francisco dos anos 1970. Ele abandona os palcos, torna-se executivo de uma grande gravadora em Nova York e, por fim, é despedido aos 50 anos. Diante de Bennie transitam personagens excêntricos como o guitarrista Scottie, o astro do rock Bosco e o repórter de celebridades Jules Jones. De todos se destaca Sasha Blake, a secretária cleptomaníaca de Bennie, que parece ter sido prostituta em Nápoles – e, em um futuro próximo, mora no deserto da Califórnia com seu filho Alison, de 11 anos, autista e obcecado por pesquisar a função da pausa na história das canções do rock’n’roll. Alison monta seu projeto em PowerPoint.

            “A história determina a forma”, diz Jennifer. “Adotei o PowerPoint porque Alison está obcecado em buscar as pausas musicais e expressa sua obsessão na apresentação que monta no computador. O PowerPoint tem uma descontinuidade interessante e ingênua. Se Laurence Sterne vivesse hoje, escreveria seu romance Tristram Shandy em PowerPoint.” O irlandês Sterne (1713-1768) inovou com seu livro, publicado em 1759, que influenciou, entre outros, Machado de Assis em suas Memórias póstumas de Brás Cubas (1881).

            Além de se inspirar nas obras Sterne e Cervantes, Jennifer Egan criou sua história baseada em dois produtos culturais aparentemente opostos: o ciclo de romances Em busca do tempo perdido (1909-1922), de Marcel Proust, e a série de televisão Família Soprano (1999-2006). “Levei seis anos para ler Proust em inglês, no mesmo período em que vi Família Soprano pela TV”, diz. “Os livros e a série abordam a questão do tempo de uma forma densa. Só depois descobri que o criador dos Sopranos, David Chase, é um admirador de Proust. Tentei transportar o problema do tempo para os dias de hoje, quando a tecnologia apaga nossa memória e nos empurra para o desconhecido. Nada melhor que a cena do rock e a indústria da música para expor o que acontece com todos nós hoje.”

            Jennifer viveu seus tempos de estudante em San Francisco às voltas com bandas de punk e, ao se tornar jornalista, fez reportagens sobre bandas pop. Tudo lhe serviu como material para A visita cruel do tempo. Hoje ela mora com o marido e dois filhos – meninos de 9 e 11 anos – no bairro do Brooklyn em Nova York. “É complicado fazer as crianças se interessarem em leitura, porque elas só querem saber de videogame. Mas continuo tentando.” No momento, prepara um romance histórico, em formato tradicional, sobre as mulheres que trabalharam na construção de navios no porto de Manhattan durante a Segunda Guerra Mundial. “Estou entusiasmada com a história, e espero que o público tenha o mesmo prazer.” Diz que o grande desafio do escritor de ficção é continuar a atrair o leitor. “O romance ainda vai continuar, porque é uma forma livre, flexível e adaptável aos novos tempos. Se as pessoas estão deixando de ler livros, não é culpa da tecnologia. É nossa, porque não estamos escrevendo histórias interessantes.”

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