quarta-feira, 22 de abril de 2009

As cores e o tempo

Enquanto eu fazia teste de equilíbiro na guia da calçada, admirando pela rua as roupas, cabelos, maquiagens, cartazes, prédios e carros, passei a refletir sobre o poder das cores. Imaginei um filme que mostrasse o passado colorido e o presente preto-e-branco, para captar como a cidade e a vida alteram suas tonalidades. Queria assim inverter um lugar-comum no cinema: aquele tipo de cena monocromática que representa o passado, em contraposição às seqüências coloridas do presente. É como se o passado se esmaecesse na memória, até virar sépia. O chavão deve ter sido criado na época da popularização do cinema a cores – e aí talvez o preto-e-branco tivesse um sentido de inovação tecnológica, ainda vibrante na cabeça do público.
No meu novo esquema, fantasiei uma história ambientada em São Paulo na virada dos anos 70 para os 80, quando os hippies sumiram em nome das sombras do punk e do gótico. Um momento que testemunhei. Os resquícios da cultura florida e exuberante dos anos 60 se apagou aos poucos, até que triunfaram os trajes negros dos roqueiros de várias tribos. De repente, tudo escureceu. Os cidadãos adotaram a moda e passaram a se vestir com os mesmos cinzas e pretos. A mudança de modelo poderia ser representada pelo branco-e-preto do presente e o arco-iris do passado. Não é uma idéia original, devo tê-la visto em algum longa-metragem.
Então pensei em ir além, em outra cena, passada no século XXI. O filme teria de exibir o presente com supercolorido, e o passado em cores básicas. O que aconteceu nas últimas décadas foi a explosão das cores, nuanças e tons jamais vistas antes. Apesar do cinza reinante nas ruas, surge uma cor a cada dia.
Há 30 anos a gradação dos pigmentos era mais restrita. Nas roupas e nas artes, nos carros e paredes, havia um espectro menor de verdes, azuis, laranjas. Predominavam as cores básicas. A gente saía da cidade para caçar tons diferentes do rosa, o cromatismo do amarelo nas areias. As flores e as borboletas tinham mais imaginação que os artistas. A natureza aquarelava o mundo.
Agora as variantes são aos milhões, ao gosto do freguês. Basta ir a uma loja de tintas para escolher uma cor para pintar a parede de casa. Até o branco tem centenas de opções. É como se as pessoas tentassem encobrir a destruição da natureza – cada vez mais cinzenta e sombria - com um ambiente imprevisível de tons artificiais. Diante de tamanha proliferação de matizes, eu, pelo menos, perdi a noção das cores originais do mundo. Quase cambaleio ao perguntar aos meus cadarços cítricos: o que era o vermelho da minha infância? Jamais vou reencontrá-lo. Perdeu-se no vasto catálogo das tintas.


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domingo, 12 de abril de 2009

Lembranças de um hotel

Hotéis são paradoxais. Apesar de sólidos e construídos para durar, deixam ao mesmo tempo transparecer uma instabilidade, como se soubessem que passam. Eles cruzam por nossas vidas, surgem e somem ao sabor do acaso. Eles imitam o destino de seus hóspedes. Hotéis são hóspedes da História, também vão e vêm. Para quem mora nos arredores, evocam visitas, encontros, espetáculos, situações banais ou inusitadas. Por isso, me emociono tanto quando certo hotel some de repente.
O parágrafo que acabou é só uma desculpa para falar de um hotel fascinante, candidato à desaparição: o Maksoud Plaza. O luxuoso prédio com seu átrio de 22 andares, fundado em 1979, foi a leilão e não apareceu comprador. Continua a funcionar, mas ninguém sabe até quando. Outros grandes hotéis tombaram: Crowne Plaza, o Hilton do Centro, o Cesar Park. O Maksoud é o derradeiro representante do brilho dos anos 80.
Vou lá no sábado frio me despedir dos velhos tempos. Já não exibe a velha elegância. Na realidade, está meio às moscas. Sento-me no velho sofá de couro, peço um café e contemplo o lugar, entregando-me a devaneios.
Ainda “foca”, em 1984, entrei de gaiato numa das salas do mezzanino para ver a entrevista coletiva que o escritor Jorge Luis Borges concedeu e segui o ancião cego de bengala para dizer que era seu fã. Ele me olhou nos olhos, sorriu e estendeu a mão. Sim, naqueles corredores, tive a certeza de que Borges enxergava.
Ali perto, diante da sala de jogos, numa madrugada do início dos anos 90, o roqueiro Axl Rose lançou uma cadeira na direção dos repórteres. Adivinhe quem estava entre os alvos? Fomos parar na delegacia. Fiquei orgulhoso de fazer o Axl tocar o seu melhor solo de piano... imprimindo suas digitais no prontuário da polícia.
Tantas outras coisas sucederam lá. No restaurante, em meados dos 80, almocei com a cantora italiana Rita Pavone e encontrei as Supremes. No 150 Night Club, no subsolo do hotel, vi shows lendários, como o do cançonetista Bobby Short e da papisa do blues Alberta Hunter. E as entrevistas? Foram tantas: minha primeira em inglês, com a pianista de jazz Toshiko Akiyoshi, e conversas longas com os mestres Tom Jobim e Miles Davis e o teórico agitador Antonio Negri.
O ápice da minha carreia de freqüentador do hotel foi em 1994: hospedei-me no Maksoud para espionar a banda Rolling Stones: passei dias entrevistando copeiros e garçons, coletando hábitos bizarros de Mick Jagger. O resultado foi nulo, pois a única excentricidade de Mick era tomar coquetéis de vitamina. Era caretão...
O átrio descomunal guarda lembranças, e se esqueceu de tantas outras. Passo pela porta giratória, enquanto tento disfarçar com a garoa uma lágrima impertinente. Sinto que deixei muito de mim para trás.

O Tao da guia

Neste instante tento me equilibrar na guia entre a calçada e a rua, ao passso que espero o ônibus. Por segundos, fecho os olhos para testar meu senso de equilíbrio – ginástica cerebral, dizem. Ao abrir os olhos, satisfeito por me manter a prumo, vejo a lanchonete do outro lado da rua. Ela anuncia refrescos de frutas diferentes. Então me lembro da Mônica e, mesmo no frio, cogito em tomar um suco de, digamos, mangaba com cupuaçu. É perto, mas o trânsito é louco, o ônibus vem rápido. Mais uma vez vou desistir.
É que um dia dsses a minha amiga Mônica (e pelo nome você já identifica a idade que tem, porque até nome tem safra e a safra das Mônicas é de longos anos atrás) me sugeriu pelo messenger que eu tomasse um suco gelado. “É longe”, digitei. O dia suava, mas não tomei suco, não andei nem me distraí. Tudo longe e muito quente. Tomar suco em São Paulo pode ser uma das missões mais difíceis. Ou comprar um parafuso. Pão. Pensamento: eu culpei a Mônica, porque ela não me convidou para o suco, pois estava a passeio em Dublim, longe daqui, na Irlanda. Ela deu a idéia de eu me divertir, numa daquelas semanas em que começo a resmungar que gostaria de saltar de mim mesmo no próximo ponto... mas saltar para quê, e para onde?
Não, leitor, não venha me acusar de pânico social. Pelo contrário, vivo de excesso de gente. Minha família é grande, estou sempre às voltas com parentes, contraparentes e amigos de amigos. Além disso sou jornalista, em contato com centenas de pessoas diariamente na redação – e não conheço nada mais enxameado de seres coisas e para fazer que uma redação. Ando mesmo é ocupado.
Não tenho hora nem ocasião de jogar uma bola ou nadar. Quando leio, vejo filme ou vou a um espetáculo, é para alguma reportagem. Sou como o ginecologista, que trabalha onde os outros se divertem. Só me resta mesmo me divertir onde os outros trabalham... Vivo numa mistura esquisita de espírito aventureiro e ostracismo. Pode me chamar de taoísta, de seguidor de Lao Tsé na prática da não-ação, uma não-ação turbulenta, vamos definir assim.
Mas agora, andando pela beira da calçada, sou tomado de euforia. Não importa embarcar no ônibus sem ter saboreado o refresco. Afinal, ao menos uma vez, tudo estava à mão. Percebo que longe e perto não são mais que preconceitos, reles noções geográficas que dependem do estado do espírito. E o meu espírito erra pela distância. Ou pela preguiça. Vou beber um suco pelo messenger em Dublim.