domingo, 2 de maio de 2010

A ninfa da Luz

Cumprimento as estátuas quando cruzo com elas. Para compensar as descortesias da História, dou-lhes boa-tarde e, às vezes, puxo uma conversa. Ao longo do tempo, elas sentiram na carne (no mármore, melhor dito) a mudança de comportamento dos passantes. Além de presenciar atos indecorosos os mais variados, elas têm sofrido atentatados. Os vândalos adoram mutilar, pichar, ultrajar essas criaturas. Logo elas, que não têm direito de ir e vir, pois são transportadas de lugar a lugar, ao capricho das administrações. Elas poderiam até repetir o que muitos dizem aos pais numa discussão: “Eu não pedi para existir!”

Pois foram precisamente estas as palavras que a deusa do Parque da Luz sussurrou-me no último domingo. Eu passeava em torno do lago, quando me deparei com a linda moça nua, ligeiramente coberta por um pano, oferecendo o seio direito, sentada em cima de ma cabra. Ela sentiu minha presença, apesar de estar olhando para o lado. “Atrevida!”, pensei. Apesar de conhecê-la desde a infância, nunca havia prestado atenção em como Diana, como é chamada, era sensual e provocante... Ela então se queixou de não ter culpa de ter vindo ao mundo. “Não seja cínico”, continuou, adivinhando meus pensamentos. “Já não suporto o estado letárgico de mulher-objeto. Apesar de admirada, ninguém sabe nem meu nome, e sou testemunha das maiores barbaridades à beira deste lago!”

“Mas seu nome não é Diana?”, desconversei. “E tem quem chame você de deusa, ninfa...” Ela pareceu esboçar um sorrizinho malicioso, mesmo mantendo a pose contorcida. “Que nada! Eu me chamo Amaltéia. E esta aqui”, disse acariciando o animal, “é a cabra de Júpiter”. Contou sua história. Era uma réplica de uma escultura rococó que está no Museu do Louvre em Paris, símbolo da amamentação. Vangolriou-se: “A cabra e eu demos leite a Zeus!” Informou que a rainha Maria Antonieta encomendou a escultura para decorar seu castelo. Depois foi removida ao museu. “Em 1913”, prosseguiu, “tiraram um molde, fui criada e trazida para enfeitar este parque. E como era bonito o Jardim da Luz! Famílias vestidas para o domingo, ouvindo a banda do coreto... Hoje isto aqui virou uma imundície. Podemos ir embora com o senhor?”

Quando tive a sensação de que Amaltéia ia me abraçar, dei um jeito de sair sem dar vexame. Alinhei a roupa e me despedi dela e do animal com a máxima gentileza possível. Eu eu, que pensava que as estátuas eram as criaturas mais serenas desta cidade, posso jurar que a ninfa da Luz quis me seduzir... Quem mandou dar confiança a uma virgem de 95 anos?