sábado, 11 de junho de 2011

Cordiais infâmias de Erik Satie

Erik Satie tinha 64 anos quando, às 20 horas de 1º de julho de 1925, morreu durante o sono, de cirrose hepática, em seu quarto no segundo andar da casa "das Quatro Chaminés", situada em Arcueil-Cachan, subúrbio da região sul de Paris. Nos últimos 27 anos de sua vida, o músico havia morado naquele endereço. E, apesar de ser paparicado, mesmo à morte, por gente famosa – Picasso lhe mandava lençóis novos, Brancusi lhe preparava sopas –, não consentiu a entrada de uma única alma em seus aposentos. Nem seu irmão mais novo, Conrad, com quem se correspondia obsessivamente. Este se viu forçado a profanar o ambiente para recolher os objetos pessoais do morto. Acompanhado por dois amigos de Erik, o compositor Darius Milhaud e o poeta Paul Claudel, Conrad Satie destrancou a porta do quarto. Os três se depararam com uma cena van-goghiana: o quarto possuía apenas cama, mesa, cadeira, roupas amontoadas (dezenas de costumes de veludo monotonamente idênticos) e uma pilha de papéis velhos. Ali estavam partituras manuscritas, rascunhos e cópias de cartas enviadas e centenas de envelopes... todos fechados. Eram as cartas que os correspondentes endereçavam a Satie, sem que ele se dignasse a abri-las.

"Ele tinha conservado todas as cartas recebidas, assim como os rascunhos das que havia enviado, mesmo as mais insignificantes", lembrou-se Milhaud. E Claudel: "Sob uma montanha de poeira, todas as cartas dos seus amigos. Ele não havia aberto uma única sequer."

Milhaud fez as partituras achadas, como 3 Gymnopédies (1888) e Véxations (1893), voltar à vida e semearam a inspiração dos compositores contemporâneos, sobretudo os minimalistas. As cartas se espalharam. O livro Correspondência Quase Completa (Correspondance Presque Complète) as reúne pela primeira vez. O volume com a correspondência ativa e passiva (põe passiva nisso) de Erik Satie (1866-1925) saiu na França em edição patrocinada pelos correios locais e organizada pela historiadora e musicóloga Ornella Volta. O livro compila as 1.165 cartas encontradas de e para um compositor de papel capital na arte de vanguarda que dominou o início do século XX. Satie participou da formação de diversos grupos artísticos parisienses, para depois, naturalmente, desmantelá-los a golpes de pena própria. Testemunhou, por exemplo, o batismo artístico de Montmartre, na época em que o bairro ainda não passava de uma montanha agreste de onde os dândies oitocentistas podiam divisar a ville lumière com alguma tranqüilidade, e do êxodo da intelligentsia dali quando virou bairro e foi infestado por casas de cancã.

No início do século XX, artistas e escritores se mudaram para outra colina, Montparnasse, que passou a abrigar o berço do futurismo e do dadaísmo – movimentos dos quais Satie fez parte, pelo menos indiretamente. Apesar de morar numa banlieue, costumava ir a pé ao bairro para trabalhar.

De Montmartre a Montparnasse foi o percurso boêmio e criativo de Satie. Trabalhou como pianista de cabarés e ganhou fama como compositor de cançonetas de caf'conc, como o gênero "café-concerto" era chamado na Paris da Belle Époque.

Em uma carreira de imensos tropeços e glórias escassas, Satie privou da amizade tanto dos últimos músicos impressionistas e simbolistas como daqueles que construíram o alicerce da vanguarda. Neste aspecto, representa um caso único de longevidade estética. O preço que pagou foi a incompreensão de sua geração; seus colegas de turma tachavam suas composições de bizarras e esotéricas. Só passou a ser aceito com a chegada da geração que se seguiu à de Debussy, mais aberta para o grotesco e o bas fond e conscientemente iconoclasta. A troca de guarda na Paris da virada dos século XIX para o XX se faz sentir nas cartas de Satie.

A edição das cartas é resultado de três décadas de pesquisas por parte da maior especialista contemporânea em Satie. A publicação era esperada havia muito tempo. Ornella denominou a correspondência que coletou de "quase completa" tanto por preciosismo como por temor de ser acusada de haver faltado com o rigor. Exagero, claro. Ela consultou diversas fontes ligadas a Satie que poderiam ter as cartas e se encarregou de escrever textos que esclarecem as circunstâncias da correspondência de cada período, além de oferecer, na segunda parte do volume, biografias sobre os principais correspondentes do músico. Embora crítica, a edição não está atulhada de notas de rodapé. Quase tudo é explicado em textos fluentes, estampados em corpo grande.

A reunião forma um quadro extenso de uma das correspondências mais excêntricas da história da arte. Por meio dela, o músico destilou seu ódio pelos críticos, projetou suas aspirações artísticas, teorizou sobre estética e religião e manteve amizades com heróis da modernidade. Entre eles figuram os músicos Claude Debussy, Maurice Ravel, Stravinsky e Edgard Varèse, os artistas plásticos Francis Picabia e Pablo Picasso, os poetas Paul Claudel e Guillaume Apollinaire, os cineastas René Claire e Claude Autant-Laura, o coreógrafo Serge Dhiaghilev e até mesmo os tão abominados críticos de música. É o caso de Roland Manuel, biógrafo inaugural de Ravel e um dos primeiros a ter publicado um texto escrito de Satie. O título do texto é típico: "Observations d'un Imbécile (moi)" – "Observações de um Imbecil (eu)". Ele saiu em 1912 na revista L'Oeil de Veau, que Manuel editava. As circunstâncias da publicação ressurgem na troca de cartas entre músico e jornalista. Evidentemente, era um diálogo no qual pelo menos uma das partes fazia papel de surda. Ou cega. Satie escrevia sem responder. Suas cartas eram literalmente unilaterais.

"A correspondência privada é uma espécie em extinção", escreve Ornella Volta. "Por suas inumeráveis variantes, a de Satie constitui um exemplo representativo de um costume cuja morte é lamentável."

A estudiosa chama atenção para a beleza dos documentos que encontrou. Satie escrevia com cuidado caligráfico impressionante – "a meio caminho da escrita chinesa", nos termos de Jean Cocteau. Segundo Claudel, ele era capaz de levar 20 minutos para redigir seis linhas de diatribe contra um crítico, como o wagnerita Jean Wiéner, a quem acusava de produzir "excrementos do espírito" (expressão de Victor Hugo) e de ser um "bufão infame".

"Em Satie, a relação epistolar aparece como uma forma de expressão privilegiada que acompanha todas as circunstâncias marcantes de sua vida", segue Ornella. "Pelas cartas abertas, ele se iniciou na sociedade; com cartas formais, obteve o primeiro exame de sua produção no teatro nacional. Um pacote de cartas nunca enviadas nos dá a oportunidade de tomar contato com sua única paixão amorosa, e foi via um cartão postal injurioso que ele conheceu seus piores embaraços." Morreu gritando por uma carta desaparecida.

Se constituem uma das peças que faltava ao quebra-cabeça da história da música moderna, tais cartas devem embaralhar ainda mais as peças em vez de resolver a questão. O "músico medieval e doce, perdido neste século", nas palavras de seu amigo e colega Debussy (carta de 27 de outubro de 1892), ainda oferece campo para decifração.

Conforme demonstram suas cartas, o músico escrevia como compunha, breve e fragmentariamente, com caligrafia cuidadosa e os mais variados tipos de papel. Chegou a compor em cartas ou dar indicações sobre esta ou aquela obra. Exemplo do cuidado está na missiva enviada em 26 de março de 1913 ao pianista Ricardo Viñes, intérprete responsável pela execução de muitas peças de Satie. Ali, o compositor se ocupa em corrigir um "mi" estampado erroneamente na partitura da peça On joue. E arremata: "Você compreende? Erro do gravador, o mi. Assim, ruim. Muito ruim." Em outra carta, de 8 de dezembro de 1909, convida o jovem compositor Robert Monfort (morto em 1941) para jantar no restaurante de Douau. O texto não tem um conteúdo notável e muito menos seu destinatário, obscuro funcionário do Ministério das Finanças francês ligado ao círculo dos poetas fantasistas e, segundo Ornella, "compositor sutil e original". Mas Satie escreveu sua carta sobre uma folha de pentagrama, com capricho de escriba e frases de operador de telégrafo. "Devo confessar-lhe, com rubor na fronte, que esse Douau é um mercador de... vinho?"

Satie ironizava a própria persona. Apresentava-se como "gimnopedista" e não mestre de música. Isso numa época, pouco distante da nossa, em que os títulos eram tão importantes quanto o talento. Não conseguiu ter formação musical acadêmica. No Conservatório de Paris, onde estudou entre 1879 e 1882, foi reprovado por total incompetência em lidar com contraponto e harmonia. Seu professor de piano, Mathias, anotou num relatório sobre o desempenho do aspirante a concertista: "Nada. Três meses para aprender uma peça. Incapaz de ler à primeira vista." Ainda assim, insistiu em escrever música à margem do grande mundo e estudou harmonia na Schola Cantorum de Vincent d'Indy. Para compensar deficiências, usou uma técnica primitivista, para não dizer primária, a fim de escrever peças, suítes e canções com melodias repetitivas e progressões harmônicas inauditas para a época. Dava-lhes nomes humorísticos, como as peças para piano Embryons desséchés (Embriões ressecados, 1913) e Choses vues à droite e à gauche (sans lunettes) – Coisas vistas à direita e à esquerda (sem óculos), de 1914. O compositor privilegiava o instrumento, até porque só sabia tocá-lo. Suas obras orquestrais e para grupo de câmara se destinavam a cerimônias rosas-cruzes e a balés dadaístas.

Auto-intitulando-se fundador de uma suposta Igreja Metropolitana da Arte de Jesus Condutor, expedia bulas de excomunhão para meia crítica parisiense. Daí, talvez, o reconhecimento tardio como autor. Foi citado em obra de referência somente em 1910, no Dicionário de Hugo Riemann nestes termos: "Compositor da Rosa-Cruz, autor de Gymnopédies, orquestradas por Debussy".

Talvez ironizando Riemann, em maio de 1915, a pedido do pianista Paul Viardot, Satie mandou seu currículo para constar de um verbete de enciclopédia da música: "Eric Satie – dito Erik Satie – nascido em Honfleur (Calvados) em 17 de maio de 1866. Realizou péssimos estudos no Conservatório de Paris. Tardiamente, foi aluno de Albert Roussel & Vincent d'Indy. Assinou, em 1892, obras absolutamente incoerentes: Sarabandes; Gymnopédies (orquestradas por Debussy); prelúdios do Fils des Étoiles (orquestrados por Maurice Ravel), etc... Escreveu também fantasias de uma rara estupidez: Véritables Préludes Flasques, que Ricardo Viñes bisou na Société Nationale; depois, Embryons Desséchés, que Jane Mortier igualmente bisou em um de seus concertos. O sr. Satie passa, a justo título, por um pretensioso cretino. Sua música não tem sentido e provoca o riso ou o dar de ombros."

À medida que os "novos jovens", como dizia, iam aceitando sua música, Satie mudava o registro das cartas. Mostra autoconfiança nos anos 20, como na carta a Cocteau, de março de 1920, na qual descreve o projeto de criar uma Música de Mobília (Musique d'Ameublement) – aparentada da futura música pop: "A Música de Mobília é profundamente industrial (...) Queremos estabelecer uma música feita para satisfazer as necessidades úteis. Arte não entra nesse negócio. A Música de Mobília cria vibração. Ela não tem outro objetivo: tem o mesmo papel que a luz e o calor – & o conforto sob todas as formas". Musique d'Ameublement, para piano, trombone e três clarinetes, estreou naquele ano no intervalo de uma peça de Max Jacob. Nesta época, a obra do autor ganhou apelido de "cubista"; Satie, o "Picasso da música". Os atributos se revelaram inadequados. Melhor seria chamá-lo de "belo excêntrico".

A leitura da abstrusa montanha de cartas pode levar a um raciocínio fácil: o estilo direto, o modo informal e a rapidez de comunicação exibidos por Satie remetem à estética do e-mail. Seria ele precursor do correio eletrônico? Pouco lógico. Uma figura milenar define a criatividade musical e epistolar do artista e que tem a ver com internet: a elipse. Por este motivo, a organizadora do volume completou as lacunas deixadas pelas alusões e pilhérias. O ouvido também deve preencher as reticências para dar conta das peças de Satie.

Um homem sem profissão, nem esperança

A busca de textos escondidos é uma dengue literária bem brasílica. Mesmo assim, a obra inédita do escritor paulistano Oswald de Andrade constituiu seara pouco escrutinada pelos caça-fantasmas do verbo. O motivo talvez seja este: a produção final do agitador do Modernismo não reserva aos leitores e aos críticos o traço explosivo de seus textos de juventude e, de certo modo, é destituída daquilo que os teóricos denominam “literariedade”, ou, em palavras mais simples, valor de troca literário.

A maior parte do que Oswald escreveu entre a metade dos anos 40 até sua morte, em 22 de outubro de 1954, aos 64 anos, resume-se a fragmentos de memórias e romances, lamentações sobre a falta de inspiração, cartas e Telefonemas – minicrônicas que publicou no carioca Correio da Manhã a partir de 1944, como correspondente de São Paulo; a propósito, o derradeiro texto da coluna saiu no dia seguinte de sua morte.

Nos estertores da criatividade do escritor, há passagens impublicadas impublicáveis, se o critério da excelência poética for levado ao pé da letra. Existem, por outro lado, textos reveladores da personalidade desse escritor ainda não contemplado com uma biografia e nem com a admiração por parte considerável da crítica.

Muito do artista está para ser trazido à luz. A maior parte de seus manuscritos foi doada pela família ao Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE), da Universidade de Campinas e forma o Fundo Oswald de Andrade, aberto ao público.

Com base no arquivo e em documentos ainda em posse da família do escritor, o crítico literário Jorge Schwartz organizou o volume Obra Incompleta de Oswald de Andrade, a ser publicado pela editora Scipione até o fim deste ano. O volume integra a Coleção Archivo - Série Unesco. “É uma obra 1.800 páginas e estamos na última revisão”, revela Schwartz. De acordo com ele, o volume se restringe à produção dos anos 20, quando Oswald experimentou seu estágio mais inventivo, com os romances “de ruptura” – como define Schwartz – Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (publicado em 1933, mas desenvolvido na década anterior). O volume de Schwartz compara dois manuscritos de Memórias Sentimentais e três de Serafim descobertos durante a pesquisa. Em torno dessas narrativas, Oswald produziu fragmentos como “História de José Rabicho Nascido em 5 de Janeiro” e uma infinidade de poemas e epigramas. Um festival de cacos ou, como prefere o organizador, “uma verdadeira usina literária”. A edição se completa com um “Caderno de imagens”, com fotografias e desenhos inéditos do autor. Segundo Schwartz, ficam fora do volume a correspondência, o teatro, os romances posteriores e os textos menores, como jornalístico e de memória.

A intenção da Obra Incompleta é delimitar o momento em que o dragão antropofágico alterou a história da literatura brasileira por meio da narrativa experimental de inspiração cubista. Separa o Oswald 1, modernista, do Oswald 2, socialista utópico, teórico da descolonização cultural e romancista de tese. É excluída, assim, a imagem do intelectual arrasado dos anos finais. O Oswald 1 é o que fica valendo para a história da literatura.

A presença de Oswald é mais como ídolo da contracultura de 1968 do que um escritor efetivamente respeitado. As lições transgressivas do Oswald 1 inseminaram uma geração de artistas que gozou o ápice criativo na segunda metade da década de 60. O revisionismo da obra do autor se deu pela poesia e por força dos poetas que passaram a considerá-lo um santo padroeiro autor de poemas-piadas e de epigramas cômicos. O fenômeno pode ser definido como euforia da influência ad hoc, que atravessa gerações e se alimenta mais das auto-exaltações do que de assimilações efetivas.

No início, existia o elogio... de Oswald a Gullar, que o velho escritor considerava a esperança da nova poesia nativa. No esquema do curso de História da Literatura Brasileira que planejava ministrar na Universidade de Upsala, Suécia, nos seus delírios de resgate intelectual pela academia, Oswald incluiu um capítulo especial a Ferreira Gullar. Ele chegou a comentar o fato ao jovem poeta, que ficou encantado com a sedução que provocou no velho antropófago.

A veracidade da declaração pode ser confirmada na coleção da Unicamp, onde consta, sob o número 1372, um caderno como “Roteiro de Upsala”. As anotações datam de 20 de junho de 1954 e dividem a história da literatura brasileira em quarenta tópicos, indo da “Idade da Pedra” do Brasil ao romance existencialista de Gustavo Corção e à poesia laboratorial de Ferreira Gullar (colocado no mesmo nível de Drummond de Andrade no item 26). No tópico 23, ele trataria do programa de “recuperação nativista” ensaiado pela Semana de 22. A conversão ao marxismo pela maior parte dos modernistas, inclusive ele, em 1931, é definida como “divisor de águas” da literatura brasileira do século XX. E devota a Jorge Amado e à questão social aquele que seria o capítulo 35. O curso, porém, não chegou a se concretizar.

Depois da morte de Oswald, Gullar se esforçou em propagar a memória do admirador. Conta que apresentou, nos idos de 1955, os poemas do livro Pau Brasil (1925), de Oswald, para Augusto. Este levou o livrinho para os outros concretos. E foi Haroldo a dar a formulação teórica para a poética de Oswald como tardo-construtivista inspirador da experimentação com a linguagem em língua portuguesa em introduções a livros e antologias de Oswald que publicou no início dos anos 60. Como resultado, o trocadilhismo oswaldiano até hoje oferece o pretexto para músicos discípulos dos concretos e dos tropicalistas fazer poesia pelo recurso da enumeração repetitiva de palavras. Assim, Oswald se tornou precursor do teatro de vanguarda, do concretismo, do tropicalismo e da música pop. No fim dos anos 80, tal “poética” foi anexada à cultura oficial do Estado de São Paulo. De certo modo, a Obra Incompleta reforça a imagem de vitalidade agressiva do autor tão admirada pela posteridade contracultural.

Figura bem diversa vem à tona nos textos não publicados de Campinas que não fazem parte dos planos imediatos de Schwartz. No CEDAE, encontram-se am um caderno azul-marinho de capa dura, com 300 páginas (documento número 1364); contém o primeiro capítulo de Marco Zero III - Beco do Escarro e trechos confessionais, e um caderno menor, escolar, de marca “Guarany” (1380) com capítulo do segundo volume de Um Homem Sem Profissão (memórias e confissão), intitulado “O Salão e a Selva”. A documentação retrata as hesitações e a revolta de um escritor que havia perdido a reputação e lutava para se manter intelectualmente vivo, às voltas com leituras de autores existencialistas, projetando palestras e cursos, descobrindo autores jovens e se dedicando à elaboração de uma ética antropofágica. É o Oswald patético que os idólatras precisam esquecer.

“Um dia fui visitá-lo no apartamento dele no Bexiga e fiquei estarrecido com o que vi”, conta Mario da Silva Brito, amigo íntimo de Oswald e historiador da Semana de 22. “Sentado à poltrona, ele tinha manchas no rosto e parecia sofrer de uma doença rara. Disse-me: ‘Vou morrer. Mas não estou preocupado comigo. Me preocupo é com esses aí’. E fez um movimento de cabeça na direção de seus dois filhos, um menino e uma menina, Antonieta Marília e Paulo Marcos.”

Brito afirma que Oswald sempre foi um crianção. “Confessou-se um eterno edipiano. Suas aventuras amorosas serviram para perseguir a mãe nas mulheres com quem se envolvia. Finalmente apareceu, em 1942, Maria Antonieta d´Alkmin, a última com que se casou. Encontrou nela a mãe que sempre buscou”.

Atesta a afirmação uma carta inédita pesquisada por Schwartz e conservada por Antonieta Marília. Dirigida aos dois filhos pequenos, é datada de 7 de julho de 1954, três meses antes de morrer, e faz a confissão da rendição amorosa: “Uma noite, no hall de um hotel popular de Sevilha encontrei Don Juan – o rosto marcado e severo, a presença imponente e simples. Fiquei encadeado àquela figura anônima de espanhol com quem sentia secretos compromissos. Quem era eu senão Don Juan – um experimentador de amores e de aventuras? A mãe de vocês me fixou no solo atávico, realizou o milagre de me autenticar, ressuscitou em mim o que era essencial e se esquivava. Enquanto eu doente permaneço sentado ao meu leito, ela organiza a biblioteca – santa ideal de minha mocidade. Ela teima em organizar um ambiente de trabalho intelectual para o caído que eu sou. Só ela é capaz de acreditar na minha ressurreição”.

A “debacle” artística está fixada nos citados cadernos, que Maria Antonieta organizou e anotou cuidadosamente.

Beco do Escarro ocupa dez folhas do caderno e completaria a trilogia de romances sociais sobre a industrialização de São Paulo iniciada em 1943 com Marco Zero: A Revolução Melancólica, seguida dois anos depois por Marco Zero: Chão. O capitulo, datado de 1946, intitula-se “Muralha Queimada” e narra as agruras da pobretona Miguelona Serafim no Fórum de São Paulo. Ela tenta processar um major que lhe roubou as terras, mas perde o julgamento e volta à vila onde mora. É o típico episódio de denúncia da luta de classes que o amigo de Oswald, Jorge Amado, fazia na época. O capítulo é escrito a lápis. Das páginas seguintes consta um plano de Beco do Escarro, com sete capítulos que narrariam episódios entre 1935 e 1945. O escritor lançou ao papel algumas tiradas para inclusão posterior, como a frase do agiota: “Minha filha está gordinha, mas não sabe quanto custa aquela gordurinha dela”.

A desorganização de Oswald é grande nos manuscritos. Juntava planos, pensamentos e ficção num mesmo espaço. Nas páginas 296 a 298 do mesmo caderno, figura uma passagem confessional, com data de 29 de junho de 1948.

Nela, Oswald confessa a si mesmo que sua “vida caçadora” representa uma derrota. “Por que negar?”, escreve, sempre a lápis. “Por que dissimular a mim mesmo? Ficaria uma ferida. Aquele sujo pretexto de dever cumprido não possa de um recurso sanitário da velha hipocrisia que me caracteriza. O mal não é meu só. É de todo o século.” Reclama que não atingiu o auge almejado: “Quando não cumpriu o seu dever antropofágico, que é o de estraçalhar a prosa à vista, perante a adesão gulosa dos outros, compõe uma máscara generosa que o justifique. Por que, no fundo, essa timidez de colegial num velho sexagenário que já perdeu todas as ilusões? Menos a da barata noturna que procura um naco de chulé num chinelo velho de um quarto. E que foge desatinada ante o menor barulho.”

No início de 1954, ele publicava o primeiro volume de sua memórias, Um Homem sem Profissão: Sob as Ordens de Mamãe pela Livraria Martins Editora. O livro conta seus primeiros passos até o início da carreira jornalística, nos anos 10. Não teve repercussão alguma, o que desgostou o escritor. Ele ainda tentaria escrever o segundo volume, O Salão e a Selva. Nele, narraria como se deu a preparação da Semana de Arte Moderna de 22. Mas não teve tempo para realizar o projeto. Restou apenas o capítulo aqui publicado pela primeira vez. O trecho de três páginas não traz data, mas bilhetes escritos para Maria Antonieta no início do caderno dão conta de que foi redigido em 1942.

Não é difícil prever os desdobramentos do capítulo. Narra ali suas impressões nada favoráveis da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde se formou em 1919. Imagina o que os escritores românticos sofreram quando estudaram ali no início do século XIX, buscando diversão com prostitutas numa ilha do rio Tamanduateí (hoje soterrado por avenidas). A “bucha” era o nome de uma das sociedades secretas que vicejaram na São Francisco. E lança suas farpas contra a classe jurídica. A seqüência de episódios conduziria o leitor à conspiração modernista, às noites de tumulto em fevereiro de 22, à fama do movimento e à conversão ao marxismo. Mesmo desdentado e desiludido, o antropófago ainda se expressava como um romântico. Oswald 2 se enxergava como Oswald 1. Um ou outro, ele passou à história como o anti-herói que triunfou na depressão.

Originalmente publicado no jornal Valor Econômico, a 22 de março de 2002. Acompanha fragmento inédito de Oswald de Andrade intitulado “O Salão e a Selva”.

Quando a vida liquida o espírito

Escrever é perigoso como existir; talvez ainda mais em alguns casos, pois a escrita expande a presença do autor para além da duração do corpo. Nem tudo o que se escreve, porém, merece crédito na eternidade. A vida pode dar cabo do espírito antes que se encerre a produtividade da escritura. Oscar Wilde - nascido em Dublin, em 16 de outubro de 1853 e morto em Paris, em 30 de novembro de 1900, de meningite encefálica - é o exemplo de arte que se exaure antes da vida.

A demonstração do fato está nas "Complete Letters of Oscar Wilde", versão revista e aumentada das "Collected Letters", de 1962. Ambas as edições foram organizadas pelo filólogo inglês Rupert Hart-Davis em colaboração com o neto de Wilde, o jornalista Merlin Holland. Davis morreu em dezembro de 1999 sem ter feito a revisão da edição definitiva da correspondência para celebrar o centenário da morte do autor. No Brasil, o lançamento mais expressivo da efeméride foi "O Álbum de Oscar Wilde", de Merlin Holland, publicado originalmente em 1997, com fotos, desenhos e caricaturas resultantes de 30 anos de coleta. As pesquisas para a primeira edição das "Complete Letters" tiveram início antes do início da carreira de Merlin, em 1954. Naquela altura, parte das cartas se encontrava desaparecida; algumas foram arrematadas em leilões e se espalharam por diversas coleções; outras os destinatários se encarregaram de destruir. Rupert Hart-Davis se baseou no material da família e consultou seis volumes de correspondência do escritor, lançados entre 1917 e 1936, alguns deles falsificados.

O esforço resultou em um tomo com 1.008 cartas, quase todas escritas por Wilde. O livro ganhou status de totem dos estudos literários, embora parte do material disponível não constasse do volume, por veto do único filho sobrevivente do escritor, Vyvyan Holland. Merlin era muito jovem para tomar a decisão de liberar as cartas "comprometedoras". "O expurgo das cartas foi discutido", conta Merlin no prefácio da nova edição. "Mas, na época, o homossexualismo ainda era ilegal na Grã-Bretanha e eu não passava de um adolescente impressionável na escola." E arremata: "Muitas cartas escritas depois da prisão de Wilde eram explícitas quanto a suas inclinações sexuais e sua publicação causaria constrangimento à família." Ainda assim, lembra Merlin, Vyvyan concordou em abrir o armário do pai. O gesto incentivou a reinterpretação da personalidade do escritor. Hart-Davis publicou "More Letters of Oscar Wilde" em 1985, com 164 cartas inéditas. Uma das obras mais importantes derivadas da liberação da correspondência de Wilde foi a festejada biografia de Richard Ellman, de 1987. Ellman se valeu da parte não publicada da correspondência para montar sua obra que, apesar de conter erros, é a biografia mais confiável de Wilde.

A nova edição das cartas fornece detalhes e nuanças não contemplados por Ellmann. Acrescenta 300 às já vindas a público, num total de 1.562 itens que cobrem 32 anos de trajetória intelectual. Elas contam como nenhuma fonte a vida do artista, desde os primeiros bilhetes à mãe em 1868, na Portora School, em Enniskillen, Irlanda, aos desesperadores pedidos de dinheiro aos amigos, cerca de duas semanas antes de morrer no modesto Hôtel d'Alsace, em Paris.

Merlin decidiu incluir no livro cartas comerciais, bilhetes, telegramas e até cartões-postais. O resultado é uma documentação extensa que pode afastar o leitor mais interessado nas passagens picantes - que abundam nos dois últimos anos da vida de Wilde. Além de trazer à tona uma fatia libertina das cartas ao amante, lorde Alfred Douglas, Bosie por apelido, e ao antigo namorado, o jornalista literário Robert Ross, escritores e até a antigos companheiros de prisão, o volume flagra Wilde às voltas com as mais diversas atividades. Entre 1888 e 1889, devota-se à edição da revista "Women's World". Após sair da prisão, em 1898, escreve aos jornais para criticar o sistema carcerário inglês. Na derradeira carta, ei-lo a implorar que o editor e escroque Frank Harris (1856-1931) lhe pague a dívida de 150 libras. A figura do dândi esteta dá lugar à do doente atormentado.

Sem a liga retórica dos historiadores, sua vida exposta na correspondência se revela uma coleção de saltos mortais, frases de virtuosismo e atitudes inexplicáveis. Para Merlin, as mil e tantas páginas recompõem a "rica qualidade violoncelística" da voz do escritor, capaz de criar paradoxos que cimentavam erudição e percepção. Ressurge a fala do artista que revelou ao amigo André Gide: "Sabe qual é o drama da minha vida? É que pus meu gênio em minha vida. Em minhas obras, pus apenas meu talento."

O mito do gênio eloqüente se recicla, como se Wilde reencarnasse Sócrates. Tal situação justificaria o crepúsculo da imaginação do escritor, que não escreveu quase nada mais depois do julgamento que o levou à prisão com trabalhos forçados, em maio de 1895, sob acusação de crime de "sodomia". O único texto posterior de relevo foi "De Profundis", publicado na íntegra na edição de Davis. Tratava-se de uma longa missiva a Bosie, assinada por seu codinome na prisão (C.3.3.), datada de janeiro-março de 1897, com a qual Wilde queria se reconciliar com o mundo, professando uma constrangedora mea culpa.

O fato é que Wilde assumiu uma atitude fatalista diante da justiça inglesa, do amor de Bosie - com quem voltaria a viver ao ser libertado - e da vida. Como conseqüência, seu engenho epigramático minguou e foi substituído pela depressão de um artista desorientado.

"A vida é uma coisa terrível", afirma em carta a Robert Ross em março de 1899, quando de sua visita ao túmulo da ex-mulher, Constance Lloyd, morta aos 40 anos e sepultada em Gênova. Ela morreu revoltada com o comportamento pródigo de Wilde, que, segundo ela, entregara-se a uma vida de dissipação, dependia de uma pensão dela, explorava a mãe e não era digno de ver os filhos, Cyril e Vyvyan. "Não há palavras para descrever o meu horror a essa Besta, pois o chamo assim mesmo", escreveu ela em março de 1898 ao lingüista Carlos Blacker - a quem é dedicado, aliás, o conto "O Príncipe Feliz" (The Happy Prince). Wilde diria numa carta: "O claustro ou o café: lá está o meu futuro. Tentei o lar, mas foi um fracasso." Diante da lápide de Constance, já se considerava um candidato ao necrotério. Evitava se deparar com velhos conhecidos para se poupar da vergonha de ser ignorado. Após cumprir pena, viveu de hotel em hotel, desonrado e constrangido a pedir dinheiro. Para não ser perseguido, adotou o pseudônimo Sebastian Melmoth - inspirado tanto em São Sebastião como no herói do romance "Melmoth the Wanderer" (1820), de seu tio-avô, Charles Maturin.

No verão do ano de sua morte, explicou à amiga Anna de Brémont a razão de haver parado de escrever: "Escrevi tudo o que havia para escrever. Escrevi quando não conhecia a vida e, agora que conheço o significado da vida, não há por que escrever."

A confissão sintetiza o teor de sua correspondência. Ela encena o assassínio da inspiração de um artista pela falta de dinheiro e o abandono à enfermidade. É esta a tragédia pela qual Wilde virou objeto de hagiografia. O esteticismo que pregou em seus anos de ouro deu com os burros na realidade. O encanto que exerce até hoje é o do ídolo que se enxovalha.

Uma febre chamada Baderna

Os estudos sobre o Romantismo estão em alta. Com eles, cresce o interesse pela dança praticada na primeira metade do século XIX e tudo o que a cercava: moda, ópera, primas-donas e primas-bailarinas, lutas de poder, manipulação econômica e embates amorosos. Nos termos de um folhetinista do tempo, José Maria Paranhos, futuro Barão de Rio Branco, o mundo assistia a uma "febre dançante", doença moral só comparável às epidemias de febre amarela que assolavam populações inteiras. A voga repercutiu em filmes - como o longa-metragem "Moulin Rouge" - e no mundo da música, que assiste ao revival das operetas de Offenbach, com o lançamento de CDs e montagens de espetáculos com suas obras.
Dois livros lançados na Europa descortinam um universo esquecido da vida cultural oitocentista, associado tanto ao balé clássico e sua contraparte popularesca - o cancã, o bolero, a cachucha e outras danças de origem folclórica -, quanto aos aspectos transgressivos do imaginário romântico. São eles "Les Cancans de l'Opéra ou Le Journal d'une Habilleuse: 1836-1848" (As Fofocas da Ópera ou O Diário de uma Camareira), do francês Jean-Louis Tamvaco, professor de estudos teatrais da Sorbonne, e "Baderna, la Ballerina dei due Mondi" (Baderna, a Bailarina de dois Mundos), do militante trotskista italiano Silverio Corvisieri.
Os dois volumes se entrelaçam num "pas-de-deux" de historiografia cultural. Ambos trazem à tona uma época de refrega entre gerações, em que as tensões e desejos da sociedade se dramatizavam no palco do teatro lírico, com suas óperas e bailados, as artes mais populares de então. Em suma, os dois retratam o apogeu do Romantismo e fazem desfilar, em suas páginas, personagens quase todos compartilhados.

O livro de Tamvaco acompanha os espetáculos de balé e bel canto na Ópera de Paris e publica, pela primeira vez, em edição crítica, o manuscrito anônimo "Le Journal d'une Habilleuse, 1836-1848", relato do trepidante período anterior à revolução de 1848. A obra de Corvisieri, lançada em 1998 na Itália e agora no Brasil, aborda a mesma atmosfera de rebelião e inventividade que reinava no norte da Itália, oprimido pelo exército de ocupação austríaco. Corvisieri traz um ingrediente interessante em seu livro: trata também do ambiente cultural do Brasil nos primeiros anos do Segundo Império: o papel dos jornais na cobertura dos eventos, da ópera e do balé, numa nação que ansiava por transpor aos trópicos a civilização européia, de preferência francesa e italiana, e cujos escritores e músicos mergulhavam na construção de um Romantismo com cor local. No pano de fundo, epidemias letais de febre amarela e cólera, incêndios do teatro e atitudes truculentas da polícia e dos empresários.

Havia um liame forte entre Paris, Milão e Rio de Janeiro: os artistas circulavam pelas três cidades e o público se informava sobre os espetáculos por meio de cobertura jornalística intensa. Em Milão, como informa Corivisieri, sabia-se dos tropeços de certa soprano no Rio, de onde sabia-se da aclamação de uma prima-ballerina em Paris. Os responsáveis por espalhar as notícias eram os folhetinistas, geralmente escritores iniciantes empregados dos jornais. Os dois autores jogam por terra a "teoria da dependência cultural", decantada pelos intelectuais brasileiros nacionalistas. Estes consideravam desprezível para a formação brasileira os anos que interessam a Corvisieri e Tamvaco. Nesse período, porém, formou-se o gosto do público, sob a égide internacionalista do Romantismo.
O intercâmbio se perdeu com a decadência do balé e da ópera no fim do século XIX, franqueando espaço ao vaudeville e suas danças apelativas, como o cancã. Fatos corriqueiros, relatados pelos críticos e memorialistas, se transformaram aos poucos em enigmas e nomes que encantavam o público de 1840 caíram no olvido. É o caso da bailarina italiana Maria Baderna, cuja memória se dissipou até mesmo junto a seus conterrâneos. O que dizer, então, do "diário de uma camareira" da Ópera de Paris? Nem Tamvaco, nascido em 1931 e especialista em ópera romântica, tinha idéia sobre o autor dos 328 artigos de todo gênero, reunidos em quatro volumes, depositados no arquivo da Ópera de Paris. Tamvaco não entendia por que o manuscrito havia permanecido inédito. "O texto atentava contra a honra de pessoas famosas e poderia ofender seus descendentes", comenta. "O medo de processos afastou o comprador dos documentos da idéia de publicá-los." Depois de longa investigação, o pesquisador decifrou que o "diário" havia sido escrito pelo inspetor de material do teatro, um certo Louis Gentil (1782-1852), figura emperucada ao estilo da Restauração, habitué das récitas e, apesar do compassivo sobrenome, célebre por sua língua corrosiva, que fazia questão de exibir no foyer do teatro às personalidades da época, como a bailarina vienense Fanny Elssler (1810-1884) e seu amante, o escritor Théophile Gauthier. Gentil havia sido jornalista na juventude. Em 1829, fundou e dirigiu o jornal "Le Mercure", o único periódico literário da época. Foi secretário do teatro Odeon de 1829 a 1830 e trabalhou para a Ópera entre 1836 e 1848. Nesses 12 anos, encarregou-se de coletar uma volumosa avalanche de fofocas de bastidores. Claro que às escondidas, sob o avental de "habilleuse". O texto é uma peça rara de infâmia. Não poupa ninguém que tenha passado pela caixa da Ópera, então sediada num prédio da rua Le Peletier, incendiado em 1873 após cinco décadas como sede da principal casa de espetáculos parisiense. Compareciam ali o demi e o grand monde europeus: bailarinas, cantores líricos, nobres, capitalistas, poetas, conquistadores, camareiras, faxineiros, maquinistas e as "filles de l'Opéra" - que vendiam o corpo em troca de noitadas elegantes em companhia de algum "leão" do momento, como eram conhecidos os tigrões do Romantismo. Mas, "hélas!", lamenta a falsa camareira: os tempos já eram outros e os escândalos minguavam. "Não há mais na Ópera paixões desenfreadas e loucuras originais. Que homem se arruinou por causa dela nesse último quarto de século? É mortificante pensar que a Bolsa tirou o privilégio de nossas damas!"

Nem por isso Gentil deixou de coletar episódios picantes. Exemplo: a brincadeira inventada pelos figurinistas e costureiras do teatro. Em 1836, eles criaram um "sudorímetro", escala pela qual começaram a medir "o grau das emanações odoríferas" das cantoras e bailarinas em ação. A suposta "habilleuse" informa que poucas damas ultrapassam o décimo grau e a diferença entre elas é de um grau ou mesmo uma fração. Havia casos excepcionais, como Mlle. Noblet, que atingia 16 graus e até além no instante em que se despia depois de sua aparição em cena. O placar do sudorímetro era maldosamente divulgado entre os "amateurs" da platéia. Um deles se chamava Malençon, "homem polido e generoso", casado com uma rica dona de butique no Brasil. Ele, que gastava rios de francos com as cocottes, voltava periodicamente ao Rio para "recompletar seu capital". Outro caso diz respeito às dançarinas da Academia Real de Música, Anna Saulnier e Eulalie Gaucher, ambas amigas de 13 anos. Na temporada de 1837, distribuíram um folheto entre os cavalheiros no foyer. Nele, descreviam a si próprias como bem-humoradas e "de agradável figura" e anunciavam a abertura de sua mansarda, na rua Pinon, à visitação dos interessados, "em todos os momentos do dia e da noite, exceto nas horas de classes de ensaios e representações".

Gentil escancarou a caixa da Ópera aos "voyeurs" da posteridade: num verdadeiro "reality show", mostrou pontos desesperados, cantoras colocadas à prova dos insultos em cena aberta, o mecanismo das claques, capazes de transformar reputações em farinha, as paixões, o arrebatamento do público diante de Fanny Elssler na cachucha, número do balé "Le Diable Boîteux" no qual ela se acompanhava com castanholas. "É um charme! É um delírio. É sobre-humano!", exclama Gentil. Vigorava a moda das danças espanholas. Gentil se animava com o sucesso de Sofia Fuoco e os destemperos da mezzo Rosina Stoltz, rodeada de "todas as lésbicas em exercício em Paris". As "inclinações sáficas" de Stoltz, segundo Corvisieri, não cessaram quando a diva partiu para o Brasil, em 1852. Lá, chegou a assediar Maria Baderna. A bailarina a repeliu. Resultado: sofreu retaliações da cantora.

Baderna foi uma azarada, apesar da boa formação e do talento. Foi colega de Sofia Fuoco e rival de Fanny Elssler. Mas seu infortúnio se devia a um só nome: Brasil. Corvisieri como que fornece a continuação do diário de Gentil, relatando as peripécias e o "brusco crepúsculo" de Baderna no período posterior ao abordado pelo fofoqueiro parisiense. Em 1848, Baderna vivia um clima semelhante ao da rua Le Peletier. E só não foi objeto da pena maldosa da "habilleuse" porque nunca esteve em Paris. Trocou a Milão sublevada pelo conservador Rio de dom Pedro II. No Brasil, magnetizou a mocidade romântica da corte com requebrados da cachucha (moda lançada por Fanny) e se tornou musa do Ultra-romantismo local, de linhagem byroniana. Só que sumiu, sem deixar pegada das sapatilhas de seda, tão celebradas em verso e prosa pelos admiradores, que formaram uma seita para defendê-la, o Partido Badernista.

Corvisieri, de 63 anos, freqüentador do Brasil, compreende português e ajudou na revisão da tradução do livro. Mesmo assim, o texto se revela macarrônico. Isso não chega a prejudicar o livro, de leitura irresistível, ainda que não possua um índice remissivo. O autor não é historiador da cultura e só se interessou por Baderna por causa de uma premissa falsa. Julgava que a dançarina fosse, como ele, militante revolucionária. Saiu em busca da alma gêmea e encontrou algo bem diferente da sonhada identidade. Baderna não passava de uma artista que se viu obrigada a emigrar para o Brasil devido a circunstâncias políticas. "Não vestia o figurino revolucionário", diz, em entrevista a este jornal. "Foi apenas uma artista engajada."

Corvisieri militou no Partido Comunista Italiano. Nascido em Ponzia, ilha do sul da Itália, onde mora, trabalhou como jornalista em periódicos esquerdistas, como "La Sinistra" e "Quotidiano dei Lavoratori". Por três mandatos, foi deputado pelo PCI. Entre seus livros, destacam-se "Trotskij e il Comunismo Italiano" (1968) e "Il mio Viaggio nella Sinistra" (1979). Seu novo título sai em setembro: "Il Mago dei Generali - Poteri Oculti nella Crisi del Fascismo e della Monarchia" (O Mago dos Generais - Poderes Ocultos na Crise do Fascismo e da Monarquia). Nele, persegue a sombra "de um singular personagem que fui uma espécie de "santarrão" de uma seita esotérica, agente de três serviços secretos e conspirador profissional." O homem participou da tentativa de golpe dos ricos italianos, que queriam expelir Mussolini sem que o regime mudasse. "Há no livro um capítulo brasileiro, pois o sujeito emigrou para São Paulo depois da Segunda Guerra Mundial".

Em meio a devaneios e pesquisas, Corvisieri visitava o Brasil em 1987. Então se deparou com um artigo, em "O Globo", de Otto Lara Resende. Lembra que o país vivia dias de cólera popular contra o aumento de preços; a cidade se abarrotava de barricadas, correrias e atos de vandalismo. O artigo de Resende versava sobre uma certa bailarina, Maria Baderna, que teria vindo ao Rio em 1851 e cujo sobrenome deu origem a um termo usado pela ditadura de 1964 e ainda na ordem do dia em 1987: "baderna". Otto perguntava-se por que o nome de uma bailarina graciosa teria gerado, exclusivamente no Brasil, sinônimos de pândega, pagode, súcia, cambada, pancadaria, orgia, conflito, bagunça, confusão. Os desvios semânticos proporcionados pelo nome da conterrânea excitaram Corvisier. Ainda lendo o artigo, constatou que o sentido original da palavra era o mesmo que se mantinha no italiano, inglês ou francês, "trança de fios de cânhamo" usada em navios. "Os dicionários de Portugal também repetiam o significado", explica. "Somente no francês havia um campo semântico pejorativo, na expressão 'vieille baderne', a indicar uma pessoa acabada, imprestável." Percebeu que, no Brasil, o termo era utilizado em dois filões: "O primeiro se refere a qualquer tipo de desordem pública, de confronto violento de rixa; o segundo tem a ver com qualquer tipo de transgressão grupal (orgia, pândega, pagode)." Mas o que incendiou a imaginação do italiano foi o artigo do também jornalista e militante Moacir Werneck de Castro, publicado em 11 de julho de 1987 no "Jornal do Brasil", pouco antes do de Otto Lara Resende. Nele, o autor prometia contar "a verdadeira história de Maria Baderna". Desfiou uma série de episódios, descrevendo a dançarina como seguidora do revolucionário Giuseppe Mazzini. Ela se exilou no Brasil e foi perseguida pelos austríacos como "agente da subversão internacional". Apresentou-se no Rio, conquistou multidões de fãs que provocavam batalhas campais. Estas passaram a ser chamadas de "badernas". Em 1852, associou-se então ao carbonário Fiametta, abandonou a dança e passou para a clandestinidade. Trocou, nos dizeres de Moacir, "a arte pelo amor e pela revolução, atingindo as culminâncias sofredoras de uma heroína de Manzoni, Byron, Schiller ou Stendhal". No Nordeste, organizou comunidades inspiradas em Palmares de Zumbi. Foi "agit-prop" em Santa Catarina. Morreu na década de 1870, de tuberculose, desiludida com a derrota da Comuna de Paris. "Seu fantasma - o tempestuoso fantasma da baderna - permaneceu suspenso nos céus do Rio de Janeiro e ainda hoje nos persegue, excitando uns e aterrorizando outros." 

Desacostumado à verve dos colunistas cariocas, Corvisieri acreditou na história "cheia de enxofre" de Moacir. Tudo se encaixava, e realmente o fracasso da luta pela independência na Itália precipitou um êxodo de artistas. Decidiu iniciar uma pesquisa sobre essa versão à esquerda de Anita Garibaldi. No "Dizionario Biografico", de Francesco Regli, encontrou um verbete sobre a bailarina. Informava que Baderna "havia içado velas com destino ao Rio" devido às "vicissitudes políticas de 1848". Tudo se encaixava, até que o pesquisador escreveu a Moacir para se informar sobre as fontes que o jornalista usara no artigo. Ele respondeu, em carta de janeiro de 1988, que a história de Baderna não passava de brincadeira. "Tudo fábula, tudo inventado", escreveu. "Errei por não ter deixado clara minha intenção, eu que não sou habituado ao gênero humorístico." Mas, concluiu, "o mistério de Maria Baderna permanece. Agora sou eu quem pergunta: o que foi feito dela?" O italiano se irritou. Mas assumiu o desafio de varrer o destino da Baderna.

Corvisieri pesquisou em arquivos na Itália, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e França. "No Itamaraty, encontrei o contrato entre o maestro Giannini e o capitão do navio Andrea Doria, que, em 1849, trouxe a companhia italiana ao Rio, inclusive Baderna". O contrato trazia detalhes como horários e cardápio.

O pesquisador constatou que Marietta era bem conhecida na Itália na primeira metade do século XIX. "Foi uma das 'prime ballerine assolute' da Europa, ao lado da rival, Fanny Essler, lenda viva na época, por ter enlouquecido Gauthier. A revista 'La Strenna Teatrale Europea', Em 1846, incluiu Baderna na 'Plêiade de Terpsicore', ao lado de Pasquale Borri, que fez escola, Flora Fabbri-Bretin, outra divinizada por Gauthier, e Sofia Fuoco, 'étoile' da Opéra de Paris, colega de Marietta e aluna do milanês Carlo Blasis, maior teórico italiano de dança no Romantismo."
Blasis ensinou a menina-prodígio: "Sacrifique qualquer outro prazer àquele proporcionado por Terpsícore, não misture nenhum outro exercício àquele da dança." O mestre queria impor dignidade ao ofício de dançarina, na época associado ao de prostituta. Blasis ensinava técnica erudita e a popular. Instruiu-a a dançar à espanhola, aperfeiçoando-a na cachucha e no fandango.
A formação de Marietta a afastou do comércio sexual. Nasceu em família pequeno-burguesa, em Castel San Giovanni, Parma, em 5 de julho de 1828. Seu pai, o cirurgião Antonio Baderna, levou-a a Milão para matriculá-la na escola de Blasis. A menina tinha 11 anos. Em 1843, Marietta estreou no Scala. Fez tanto furor que começou a circular, nos arredores do teatro, uma litogravura com o retrato da bailarina. Comparavam-na a Fanny Essler. Seu nome era ouvido na azáfama dos cafés milaneses. Uma récita no teatro Drury Lane de Londres, em 19 de março de 1847, deu-lhe o naco maior de glória: a rainha Vitória fez questão de permanecer até depois do espetáculo para ver o número da cachucha por Marietta. No dia seguinte, o "Morning Chronicle" louvava a "serpentina flexibilidade" genuinamente andaluz de Baderna. Contratada pelo Covent Garden, ali exibiu muitos balés de Blasis. Ao regressar à Itália, no fim do ano, ganhou a tarja de "jovem Sílfide". Em Trieste, em plena revolta contra os austríacos, foi eleita símbolo da resistência. Amealhou admiradores. Alguns deles, rechaçados, estampavam nos jornais versos aviltantes. Um desprezado tachou-a de "ébria bacante" no "Osservatore Triestino". Em novembro de 1848, o Scala anunciava Marietta como "prima ballerina assoluta". Mas os artistas emigravam e o Scala foi fechado. Marietta aceitou o até então absurdo convite do maestro Giannini de refazer a carreira no Brasil. 

Aportou no Rio em companhia do pai. Feliz, este reencontrou amigos mazzinianos exilados. No Teatro São Pedro de Alcântara, ela se tornou a rainha da dança. Estreou em 29 de setembro de 1849, no balé "Il Ballo delle Fate". Êxito total. Sucederam-se ovações. Era anunciada como gênio juvenil de 18 anos, embora contasse 21. No palco, dividia o prestígio com a prima-dona Ida Edelvira. Um ponto, de nome Montanha, fundou o Partido Badernista. O progressista "Correio Mercantil" exaltava-a: "É uma fada, uma huri, um portento." Cultuada como huri, vamp do paraíso muçulmano, recebia as manifestações as mais eletrizantes. Na época, os partidos teatrais, fomentados pelos empresários, incendiavam literalmente os teatros. No Rio, trocavam pateadas, flores, patacas de cobre e gritos em cena aberta. Baderna encontrou seu público e faria tudo para agradá-lo. Aprendeu a dançar o lundu e o batuque, assistindo a exibições de escravos no Largo da Carioca. E tratou de levar os movimentos de baixo ventre ao palco imperial, para horror dos retrógrados, reunidos em torno de Paranhos, o folhetinista do "Jornal do Commercio". Baderna se tornava "estrela popular da juventude romântica", síntese da libido de uma geração alimentada no culto ao nativismo e à transgressão. Os jornais conjugavam o verbo "badernar" como dançar com elegância; tratavam seus fãs como "badernistas". Com suas umbigadas, Baderna insuflava torneios violentos, no fim dos quais era carregada em triunfo pelas ruas. "Poetas malditos do romantismo tropical" fumavam charutos de Havana e se regalavam com a nudez entrevista sob a malha da sílfide.

Mas o Brasil, conforme Corvisieri, era um "país tartúfico" e, de uma hora para outra, o empresário do teatro deixava de pagar os artistas, sem explicações. Baderna e colegas fizeram greve, mas sem efeito, já que não podiam retornar à Europa sem dinheiro, numa viagem que durava dois meses. Isso para não falar da eminência de epidemias de febre amarela, que dizimavam o elenco, principalmente os cenógrafos - cinco deles pereceram em menos de dois anos. Mas Baderna sobrevivia. Quando seu pai morreu do vômito negro, ela chamou para sua casa o bailarino francês Jean Tupinet. O casal viveu em aberto concubinato, para pânico da elite moralista, que podia aceitar o conluio, caso permanecesse às ocultas.

No final de 1849, dissolveu-se a companhia do São Pedro. Magra e abatida, Baderna era caricaturizada no jornal "O Artista" com o nariz aquilino e as pernas raquíticas. "Está reduzida às dimensões de um átomo", definiu um crítico. Para fugir às pressões morais, foi mostrar seu lundu no teatro Santa Isabel do Recife. Outro escândalo. Se a elite local queria expulsá-la, os estudantes de Olinda coroaram-na como símbolo da nascente brasilidade.
Ao voltar ao Rio, em 1851, foi obrigada, por contrato, a figurar nos permissivos bailes de máscaras de Carnaval - cláusula comum na Europa, de acordo com a presumível camareira da Salle Le Peletier. Paranhos, no "Jornal do Commercio", denunciava a "febre dançante", rival à altura da amarela. Seu ápice ocorreu em setembro, num baile em homenagem à família imperial, numa saturnal de requebros e umbigadas. Em nome da dança irrefreada, os byronianos tropicais pregavam a anorexia, o absinto e os excessos sexuais com prostitutas. E Baderna servia como flâmula. Na imprensa, prorrompeu uma "cruzada moralizadora", na qual a "dissoluta" Baderna recebia a tarja de provocadora da epidemia da cachucha e congêneres. Não foi por outro motivo que, aos poucos, os conservadores se valeram do sobrenome e, despojando-lhe de acepções nobres, converteram-no em sinônimo de orgia e bagunça. A propósito, Gentil, em trajes de camareira, dedica um de seus relatos à crença que as bailarinas professavam na influência dos nomes sobre seus destinos galantes. "Maria", um dos favoritos, traria felicidade. Não menciona a superstição em relação a sobrenomes. Nem Baderna nem ninguém imaginaria que seu sobrenome a ultrapassaria, embora sob a forma de termo pejorativo.

Em agosto de 1851, o São Pedro se incendiou. Sem contrato, Baderna desapareceu. Seu biógrafo perde seus rastros para reencontrá-los em 1863. Na época, tentou retomar a carreira num teatro em Bordeaux. Atingida por intermináveis rajadas de apupos, foi convidada a se retirar da cidade, acusada de alcoolismo. Jornais milaneses, como o "Fama", noticiaram o fiasco, atribuindo-o à emigração para a América: "O Brasil foi o túmulo do seu talento."  

E provavelmente túmulo real. Ali, tentou uma derradeira "rentrée" na companhia da velha colega, Celestina Thierry, no Lírico Fluminense. Seu papel era secundário.

O ano de 1865, segundo o biógrafo, representou o canto do cisne de Baderna. Ela se resignou a fazer números em vaudevilles patéticos.

A partir de então, seus passos não deixaram pistas. O biógrafo supõe que ela optou pela autodestruição, como tantas outras. A atriz Eugênia Câmara, por exemplo, depois da morte de Castro Alves, embriagou-se de absinto e perfume até rastejar pelas ruas. "A hipótese de uma decadência física precoce, ocasionada pela vida bohémienne, ao uso excessivo do álcool (e talvez do absinto) encontram abrigo em uma miríada de indícios", jura Corvisieri.

Marietta, nos estertores, talvez fizesse jus aos badernistas byronianos, e tenha se entregado ao vício e à dissolução. O biógrafo aponta um fato essencial que concorreu para a eliminação de Baderna da cena: o surgimento das bailarinas francesas que introduziram, no Alcazar Lyrique, o cancã e outras danças eróticas. Justamente o cancã, surgido nos anos 1830 nos bas-fonds de Paris e Milão, que Maria aprendera a abominar. Aturdidos pelas pernadas explícitas, os dândis brasileiros não distinguiam mais entre Baderna e Aimée, o "demoniozinho louro", bailarina que seduziu Machado de Assis. As novas divas não tinham nada a ver com erudita rival. Não passavam de cortesãs bem pagas. Marietta degenerou em uma "vieille baderne", traste romântico que todos desejavam ver enterrado. Seu exílio foi o do inominável, cogita o biógrafo. A tal ponto que "hoje os brasileiros, à exceção de uma minoria que pode ter a curiosidade de consultar um dicionário, não sabem absolutamente nada sobre a origem de uma palavra que eles próprios usam em muitas ocasiões". A origem está na heroína romântica que teve o sobrenome "humilhantemente expropriado".

Alcóolatra e desajustada, Baderna se escondeu da história. Há quem afirme que ela morreu no fausto, como cafetina de um lupanar fluminense. Mas a hipótese não é confirmada. Há os que a vêem no espectro que paira sobre o Brasil e se materializa em periódica da desordem ou como símbolo de um país que costuma ser crematório dos sonhos da arte. Quem sabe ela não tivesse sorte melhor se houvesse voltado à Europa, onde muitas colegas suas padeceram em circunstâncias tenebrosas. Teria servido à maledicência da pseudo-camareira em seu detestável "journal". De qualquer forma, porém, a "habilleuse" a teria seguido até a morte. E a história saberia que fatalidade carregou Baderna.

O balanço do Bando da Lua

Encontrei-me com Oswaldo de Moraes Éboli no apartamento dele, na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, no fim do ano de 1999, quando trabalhava como repórter especial do "Caderno Fim-de-Semana" do jornal Gazeta Mercantil. Vadeco foi o último remanescente do Bando da Lua, o primeiro grupo vocal brasileiro a cantar em várias vozes – e famoso no mundo inteiro por ter acompanhado a cantora Carmen Miranda nos Estados Unidos. Vadeco foi muito gentil comigo, ofereceu-me um chá com biscoitos e se deu tempo para relembrar o percurso do sexteto vocal-instrumental mais famoso do Brasil. Foi um momento inesquecível bater papo com o alquebrado e sempre elegante senhor de 87 anos, que sofria problemas de coluna e mal conseguia andar. Nascido no Rio em 5 de janeiro de 1912, ele morreria em sua cidade natal três anos depois de nossa entrevista, em 23 de dezembro de 2002. A reportagem, publicada em 19 de novembro de 1999, é hoje um documento para entender como e por que os astros do Bando da Lua se resignaram a virar satélites de uma enorme estrela, Carmen Miranda.

Ser vizinho de alguém pode mudar a vida. Principalmente se o vizinho for o presidente da República. Assim o Bando da Lua conseguiu seu passaporte para a Broadway e para a História. As aventuras do mais famoso grupo vocal-instrumental do Brasil serão contadas por um de seus fundadores: Oswaldo de Moraes Eboli, 87 anos, o Vadeco, pandeirista, bailarino e relações públicas do grupo. Hoje aposentado como jornalista, viúvo, ele está concluindo um livro de memórias escrito em colaboração com o colega de profissão e amigo Francisco Silva Nobre. Intitula-se Oswaldo Eboli (Vadeco) – Um amigo de todos e ainda não tem editora. Terá 70 páginas de fotografias inéditas e 200 de texto.

“É a história da minha vida, imbricada à trajetória do Bando da Lua”, diz Vadeco, animado. Lembranças se apresentam para ele como algo muito próximo à comemoração de um gol. Isso porque, conforme ele afirma, “tudo deu certo” na sua atividade artística, pessoal e profissional. São memórias de vitórias de quem arrebatou a Broadway, Hollywood e todo o Brasil, sem saber uma nota musical, apenas com um pandeiro na mão. E não há triunfo mais retumbante que a de sobreviver a todos os protagonistas da epopéia mais glamourosa do show business brasileiro e dar a palavra, se não definitiva, pelo menos final sobre mistérios e dúvidas que cercam a estada de Carmen e acompanhantes nos Estados Unidos. Vadeco é o último remanescente do Bando da Lua.

Previdente, tirou proveito dos mínimos recursos artísticos que possuía. Se não cantava, era um bom pé-de-valsa, além do que tocar pandeiro às costas de Carmen Miranda se revelou melhor que muita carreira solo. Não parou por aí. Inaugurou a carreira de relações públicas de cantores no Brasil, promoveu turnês internacionais de muitos deles e virou o ponto crucial de contato entre a classe artística e a política dos anos 30 aos 50. De 50 a 80, dirigiu emissoras de rádio e TV. “Cite qualquer nome. Fui amigo de todos os presidentes”, gaba-se. E não é lorota. No livro, promete contar como travou relações de camaradagem e até amizade íntima com JK, Figueiredo, Getúlio Vargas, entre outros. A chamada “política de boa vizinhança” entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos – levada adiante nos anos 30 e 40 com o objetivo de fortalecer a influência americana nos países latinos – começou com uma vizinhança de fato: a do Palácio do Catete com a vila Martins da Mota. O presidente Getúlio Vargas morava e governava a um quarteirão das farras noturnas do Bando da Lua. E este se tornou, com a cantora Carmen Miranda, ponta-de-lança da nova imagem do Brasil a ser vendida para Tio Sam. O bando foi formado em 1931, à sombra do Catete. A porta da casa de Vadeco, na vila Martins da Mota, 26, servia como ponto de encontro de um cordão carnavalesco, o Bloco do Bimbo, formado por trinta rapazes, a maioria deles moradores do local. Enquanto o pessoal batucava sambas e marchas, Getúlio e colaboradores já preparavam o terreno para o Estado Novo, regime ditatorial implantado em 1937. Uma série de encontros casuais reuniu o Palácio e os despreocupados foliões.

“Todo mundo morava perto. Éramos todos rapazes instruídos e de boa família, coisa rara na época”, conta Vadeco. “Eu me tornei íntimo de Getúlio e a filha dele, Alzirinha. Eles adoravam música e éramos sempre convidados para tocar no palácio. Eu tinha carta branca para entrar na hora que eu quisesse.” Lá, tinha permissão de apresentar números musicais e danças. “Também participávamos de batalhas de confete e banhos de mar à fantasia. Uma farra louca que começava no sábado para terminar domingo.”

Mas muitos se cansaram. O número de participantes das reuniões do bloco ia diminuindo – como a Sinfonia do Adeus, de Haydn: 20, 18, 10... – até virar um septeto, cuja formação definitiva foi Vadeco (pandeiro), Aloysio de Oliveira (violão e voz), Ivo Astolfi (violão tenor e banjo), Hélio Jordão Pereira (violão) e os irmãos Afonso, Armando e Stênio Osório, respectivamente ritmista, violonista e cavaquinhista. Vadeco conta que, por ser bem relacionado com a “alta sociedade”, conseguia que o grupo fosse convidado para reuniões informais. “Aí a gente encontrava personalidades famosas. Mas íamos de farra”, lembra.

Sucederam-se encontros casuais que se converteram em etapas decisivas. O maestro J. Thomaz, cujo diferencial consistia em reger sua jazz band com luvas brancas, ouviu o grupo numa daquelas festas e levou-o para gravar um disco na Brunswick. Naquela época, início de 1931, a empresa havia decidido fechar o estúdio de gravação para se dedicar exclusivamente à fabricação de tacos de sinuca. “Não ia custar nada gastar um pouco de cera com a gente”, diz Vadeco. “O estúdio era modesto. Era uma sala grande com microfone e os equipamentos de gravação; o técnico ficava separado dos músicos por um biombo.”

Por sugestão do irmão de Hélio, Nelson, batizaram o grupo de Bando da Lua. No lado A, cantaram o samba “Que tal a vida?”, com a indicação: “Bando da Lua com Aloysio de Oliveira”. O lado B trazia outro samba, “Tá de mona”, com vocais do também estreante Castro Barbosa, pouco antes de formar a famosa dupla com Jonjoca. “Estar de mona”, na gíria da época, era “estar bêbado”, situação bastante comum para aquela turma de amadores boêmios. “A gente não pensava em dinheiro. Quem nos deu as primeiras músicas foram dois amigos de bairro, o Maércio e o Mazinho.” O disco não fez sucesso porque foi lançamento isolado. O grupo só voltaria a gravar dois anos depois. Então apareceu Josué de Barros, violonista baiano e “olheiro” de jovens talentos, que mal havia descoberto uma chapeleira maluca e de linda voz, chamada Carmen Miranda. Convidou o Bando para cantar no rádio e virou conselheiro da turma. “De repente, levados pelo Josué, estávamos no estúdio da Rádio Sociedade para participar do programa do Casé”, recorda. Os sete ficaram tão excitados com o primeiro cachê (60 mil réis) que gastaram parte dele numa leiteria na Galeria Cruzeiro; o restante ficou para a compra de instrumentos.

Aos poucos, o grupo foi galgando popularidade. “Dava tudo certo”. Contratado pela Victor, a companhia de discos com os recursos mais avançados da época, começou a fazer sucesso em disco. Logo depois, apresentavam-se no Cassino da Urca. “Alugamos até um quarto numa pensão da praça José de Alencar, para guardar os instrumentos e ensaiar.” Contemporâneos juram que o local funcionava também como garcionière numa época em que não existiam motéis. Vadeco nega: “Éramos bons moços, alguns de nós não tinham nem namorada.” Segundo ele, não havia um líder, apesar de Aloysio ter-se apresentado como tal em sua autobiografia, de 1987. “Eu era o que menos dava palpite”, diz Vadeco. “Garanto uma coisa: no tempo em que estivemos juntos, nunca houve brigas.” Tipo popular, Vadeco foi chamado pelo Partido Trabalhista Brasileiro, de Getúlio, para concorrer como vereador. “Fizeram folhetos, mas acabei não aceitando.” Participou de diversos concursos de dança e venceu alguns. “Eu circulava em muitos meios. A gente podia estar com o Getúlio ou com o Assis Valente num botequim, cantando as composições dele que íamos lançar”, diz. Conheceu Carmen Miranda quando ela trabalhava na pensão da mãe, na Travessa do Comércio: “Nunca vi ninguém igual a ela: brejeira, graciosa, formosa, mantinha-se na linha e não tinha todos os namorados que diziam.” Carmen, a irmã Aurora e o Bando se apresentaram juntos pela primeira vez em Buenos Aires, em 1934. “Mas o nosso cartaz era tão louco quanto o dela. A gente fazia programas separados (o Café Globo era nosso patrocinador), mas o pessoal da Rádio Belgrano queria que Carmen fosse acompanhada por músicos brasileiros e aí entramos. Viramos a coqueluche da sociedade local.” Ao final dos espetáculos, Vadeco jogava o pandeiro para o alto e saía a dançar o maxixe com Aurora ou Carmen.

Assim se deu o início de uma parceria que ganharia as telas do cinema. De volta, pararam em Porto Alegre, onde Armando se fixou para casar com uma gaúcha, abandonando o grupo. Carmen e o Bando, agora um sexteto, participaram das produções dos filmes Alô, alô, Brasil e Estudantes (em que Carmen, no papel de Mimi, fazia par romântico com o cantor Mário Reis), de 1935, e Alô, alô, Carnaval (1936), dirigidos por Wallace Downey para a Cinédia.

“A gente fazia alguns números e contava algumas piadas. Carmen e Mário atuaram mesmo, formavam um bonito par, embora não tenham namorado, como disseram.” Em 1938, atuavam em um show com Carmen no Cassino da Urca quando aconteceu outro acaso definitivo: estavam no recinto Tyrone Power e noiva. O casal foi aos camarins para animar Carmen e grupo a mostrar o espetáculo em Hollywood, já que a Meca do Cinema estava mais receptiva para os ritmos sul-americanos depois do sucesso de Voando para o Rio (1933), musical estrelado pelo galã e cantor brasileiro Raul Roulien. Carmen gostava de fazer paródias do jeito meio canastrão de Roulien, mas não pensava em ir para a América. “Mas ficou com aquilo na cabeça”, conta. Foi quando apareceu no show o empresário Lee Schubert e ofereceu um contrato para Carmen estrelar um musical na Broadway. “Ela não queria ir sozinha e propôs viajar acompanhada, por exemplo, pelo Bando da Lua”, relembra. “Pediu, chorou, mas Schubert não queria quebrar o acordo com o sindicato dos músicos americanos, que não permitia estrangeiros. Chegou uma hora que fui chamado para intervir.” Vadeco convenceu Schubert a levar o Bando para os Estados Unidos. “Ele pagaria dois cachês: um para nós e outro para a União dos Músicos. Mas as passagens de navio ele não queria pagar. Aí resolvi a parada.” Amigo de Alzirinha Vargas, Vadeco conseguiu que o DIP pagasse as seis passagens, com a condição que o Bando se apresentasse todas as noites no pavilhão brasileiro durante a Feira Mundial de Nova York de 1939. No navio Normandie, Carmen e o Bando se apresentaram durante a viagem. Na última, repetiram a apoteose portenha: Vadeco jogou o pandeiro aos céus e maxixou com Carmen.

“A gente chamava maxixe, mas maxixe era o samba de fato”, diz. Hospedaram-se nos mesmos hotéis e, em seguida, no mesmo apartamento. O musical Streets of Paris estreou em Washington e fez furor na Broadway. No final de alguns espetáculos em casas noturnas, Vadeco dançava maxixe com Carmen. O Bando, sem ela, fazia números de cortina em revistas da Broadway, como Sons of Fun. Vadeco, que tinha um bom inglês, chegava a atuar em diálogos longos. Por essa época, Ivo deixou o grupo, substituído por Garoto. Contratados pela 20th Century Fox, a cantora e o grupo participaram do filme Serenata Tropical e gravaram o disco de Carmen para a Decca. Gravaram pelo selo quatro discos sob o nome de Bando Carioca. Vadeco chamava atenção pela habilidade de dançar. “Toda hora eu era chamado no estúdio para ensinar o maxixe para as girls.” Jura que ensinou o poderoso coreógrafo dos musicais da Fox, Hermes Pan, os primeiros passos de samba. “Ele aprendeu, só não sei com que finalidade.”

Nesse meio tempo, Carmen e Aloysio iniciaram um romance secreto. “Ela estava sozinha e gostava muito dele. Mas acho que foi uma coisa de momento, pois não pareciam ter uma paixão muito grande.”

O caso era tão discreto que não atrapalhou o andamento dos espetáculos. O Bando participou dos oito primeiros filmes da cantora em Hollywood. Vadeco levava carreira paralela como jornalista em diversas emissoras de rádio americanas. Também aproveitava o tempo livre para escrever crítica de cinema e entrevistar artistas para publicações brasileiras, como Fon-Fon, Diário Carioca e O Globo.

Em 1942, Hélio regressou ao Brasil. Vadeco permaneceu mais algum tempo, quando um telefonema do irmão o preocupou: sua mãe estava doente. “Reuni o pessoal e avisei que voltaria ao Rio. E saí do grupo, sem nenhum rompimento ou problema.” A demissão de Vadeco, em 1944, marcou o fim do Bando da Lua. No Brasil, Vadeco enveredou pela carreira de executivo de rádio e TV e assessor governamental. Soube dos acontecimentos de longe: o casamento de Carmen com seu produtor, David Sebastian, em 1946 (“Aquilo foi coisa feita, ninguém entende até hoje”, comenta); a volta do Bando da Lua em 1948, sob a liderança de Aloysio, com formação e espírito diferentes, a morte de um a um dos velhos companheiros, até o bando virar um melancólico solo de pandeiro: “Sobrei eu para contar a história.”

Sobraram igualmente os filmes (exceto Alô, alô, Brasil e Estudantes, cujas cópias se perderam) e uma discografia de 38 discos de 78 rotações gravados no Brasil entre 1931 e 1948, além de dezenas de gravações americanas. Este material ainda não chegou à era digital e espera quem o recupere. A importância do Bando da Lua para a música brasileira está no humor que imprimiu a suas interpretações e no fato de ter sido o primeiro grupo a cantar em diversas vozes. Antes dele, os grupos só cantavam em uníssono. O Bando inaugurou o arranjo vocal. É fácil imaginar o que teria sido de Carmen Miranda caso ela tivesse ido aos Estados Unidos sem ele, pois foi o que ocorreu após 1944: teria abandonado ainda mais rapidamente suas fontes sonoras, trocando samba por rumba, português por espanhol ou inglês. Já o Bando da Lua, sem a aventura americana, talvez tivesse resistido por mais tempo e realizado novas obras-primas. De certa maneira, Carmen Miranda provocou a dissolução da turma.

No carnaval de máscaras da música brasileira, o Bando da Lua merece posição melhor do que a de mero pano-de-fundo da Brazilian Bombshell que a história lhe reservou. As memórias de Vadeco reivindicam um bloco à parte para seus amigos.

Mozart, o gênio da música

À medida que os anos passam, Wolfgang Amadeus Mozart continua a intrigar os estudiosos mais racionais com aquilo que se convencionou chamar de "gênio". Mesmo que essa noção tenha sido refugada, a genialidade do compositor austríaco segue intocável. Ninguém até hoje forneceu uma explicação final para as façanhas daquele que ainda é tido como o supremo mestre da mais secreta das artes. A civilização ingressou no terceiro século de devoção a Amadeus como as gerações passadas: pasma com a leveza e a qualidade abissal de suas peças de câmara, missas, óperas e sinfonias – gêneros em que esbanjou intuição e sabedoria. É preciso descobrir o que faz a obra mozartiana pulsar mais grandiosa do que nunca numa época de niilismo e de autoproclamada morte da arte.

Quem se debruça no assunto é tragado por uma vertigem de fantasias que encontram solo em meias-verdades que se encaixaram à vida do artista. Ela foi tão curta como bem documentada por testemunhos da família e contemporâneos e a correspondência do artista com parentes, amigos e mecenas. O conjunto de textos somado à produção do artista (mais de 650 obras) ergueu um vulto cultural. Isso sem contar a ficção que o explorou como tema literário do gênio injustiçado pela inveja e a fatalidade: novelas de E.T.A. Hoffmann, o drama Mozart e Salieri (1826), de Púchkin, e outros textos que inspirariam o escritor americano Peter Shaffer em Amadeus, peça estreada na Broadway em 1979 e, cinco anos depois, convertida em filme por Hollywood. Que parte da sonata de mistificação executada em torno da posteridade de Mozart em ritmo cada vez mais obstinado é real e aproveitável hoje em dia?

Há um fundo real no magma de fabulas e dados. Sua biografia é uma sucessão de feitos notáveis. A começar pelas do menino-prodígio. Ele nasceu em Salzburgo, às 8 horas da noite, em 27 de janeiro de 1756, filho do músico Leopold Mozart. Aos 4 anos, começou a estudar cravo. O pai anotou: "Entre 9 e 9h30 da noite de 24 de janeiro de 1761, Wolfgangerl tocou pela primeira vez uma peça ao piano, um Scherzo de Wagenseil". Nesse período, escreveu suas primeiras peças para violino e cravo. Leopold decidiu excursionar com o filho pelas cortes européias, para exibir a criança-prodígio. Em Londres, em fevereiro de 1765, suas primeiras sinfonias foram apresentadas. Com 17 anos, já havia se tornado sábio em todos os ramos de sua atividade, aclamado por óperas sérias em centros como Milão e Munique.

Adulto, superou a precocidade e atingiu os níveis mais altos da arte dos sons, sem ser recompensado. Um maestro famoso como Franz Joseph Haydn, jurou a Leopold em 1785 que seu filho era o maior compositor de que ele havia tido notícia. Em contraste com seu engenho, Mozart exibia uma personalidade desregrada e pueril, que colaborou na criação da imagem do "divino Amadeus", símbolo do gênio involuntário. Apaixonava-se com facilidade, iniciou-se sexualmente com uma prima (Bäsle) – do caso restaram cartas repletas de palavrões e escatologias típicas da índole salzburguense –, apaixonou-se pela cantora Aloysia Weber, e, quando esta o desprezou, resolveu se casar com sua irmã mais nova, Constanze, também cantora. Não sabia administrar bens nem cuidar de assuntos pessoais. Loiro, baixinho, irrequieto e sensível, orgulhava-se do talento e do papel que ambicionava exercer na história da arte. Aos 25 anos, brigou com o poderoso arcebispo Hyeronimus Colloredo, senhor de Salzburgo. Não lhe agradava fazer plantão pela manhã na antecâmara do quarto do nobre e servi-lo como um criado. No ano de 1781, a despeito da insistência do pai para que ficasse, mudou-se para Viena. Ali, trabalhou como autônomo. Casou-se em 1782 com Constanze e passou a morar com ela em apartamentos pequenos e escuros, onde não faltava a mesa de bilhar, o único passatempo que praticava. Apesar de ganhar bem, viu a carreira barrada pela inveja de um inimigo poderoso, o compositor Antonio Salieri. Além disso, sua música era considerada difícil pela platéia do tempo. O músico concatenava idéias com rapidez avassaladora, num ritmo que os ouvidos não acompanhavam. Suas composições se apoiavam na forma-sonata, linguagem nova que aplicava o raciocínio lógico ao material sonoro a fim de ampliá-lo – e levou tempo até ser assimilada pelas audiências. Desde a primeira resenha que Mozart obteve, na revista Magazin der Musik, de 1783, os críticos chamavam a atenção para a velocidade das melodias e do contraponto e o atrevimento em certas combinações harmônicas.

Como corolário do mito, ele amargou o fim prematuro em circunstâncias estranhas, que induzem à hipótese do assassinato. De acordo com a viúva, Mozart acreditou até morrer que havia sido envenenado e o envenenador (suspeitava de Salieri) sabia quando morreria. Teria administrado uma poção italiana, acqua toffana, capaz de corroer lentamente os órgãos até o ataque final, em data pré-estipulada. Por esse motivo, imaginava o músico, um fidalgo anônimo teria lhe encomendado uma missa de Réquiem, serviço para o qual pediu uma fortuna. "Estou compondo a missa que vai encomendar meu corpo", disse à mulher. Na verdade, tratava-se do conde Walsegg, que queria celebrar a memória da esposa, fazendo-se passar pelo autor da peça. Mozart caiu de cama quando a particella do Réquiem se encontrava quase concluída.

Os momentos finais são relatados na biografia de Georg Nikolaus Nissen, segundo marido de Constanze, editada em 1828. Ele informa que o músico ficou triste ao saber e que o imperador acabava de lhe conceder o posto de diretor musical da catedral de Santo Estêvão: "Logo agora – ele geralmente se lamentava durante a doença – devo morrer quando poderia viver em paz! Agora deixar minha Arte quando não mais preciso ser um escravo da moda, não mais atrelado aos especuladores, quando poderia seguir os vôos de minha fantasia, quando poderia compor livre e independentemente tudo aquilo que meu coração ditasse! Devo deixar minha família meus pobres filhos, justamente no momento em que estaria em melhor condição de cuidar deles..." Mozart trabalhou na partitura do Réquiem durante os estágios terminais de uma síndrome renal que inchava seu corpo e o por fim o deixou semiparalisado. Mas não parava. Na tarde de 4 de dezembro de 1791, promoveu um ensaio da obra. Amigos cantaram alguns movimentos e ele se incumbiu da parte de contralto. Havia instruído Constanze e um aluno, Franz Süssmayr, para finalizar a música. Morreu às cinco para a uma da madrugada de 5 de dezembro. A tragédia se potencializou quando o cadáver foi enterrado em vala comum no cemitério São Marx, nos arrabaldes, e, em pouco tempo, ninguém mais soube localizá-la. A tese do envenenamento se disseminou, e Salieri virou alvo da maledicência, mesmo que Constanze e amigos de Mozart tenham assegurado que tudo não passara de delírio do doente. Salieri morreria em 1825 num asilo vienense, atormentado pelo espectro de Mozart. Durante a sua agonia, negou ter envenenado o rival. Inútil, pois a distorção triunfou. Tantos elementos melodramáticos só fizeram inflamar a imaginação da geração romântica, da qual Mozart se tornou precursor. Para tanto, algumas de suas idéias precisaram ser varridas para debaixo do tapete, como a declaração nada idealista feita em carta ao pai em 1781: "É meu desejo e minha esperança obter honra, fama e dinheiro".

A canonização póstuma se avolumou pela lenda e sobretudo por causa de um catálogo de composições jamais superado pela variedade, envergadura e quantidade. Não foram igualadas nem por seu seguidor, Ludwig van Beethoven – aluno de Salieri, por sinal. O mito do gênio possuído pela música e vítima do destino resiste porque há razões para crer nele. O fabuloso e o real se misturam, e não há musicólogo que os separe.

O fato é que o fenômeno Mozart e o conceito de gênio são contemporâneos e, hoje, sinônimos. Seus dons serviram como inspiração para especulações sobre mistérios da arte. Embora com origem na Antigüidade, o termo ganhou fundamentação teórica precisamente no fim do século XVIII. Um dos artistas que elaborou uma metafísica do gênio foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Baseou-se em Mozart, que ouviu em Frankfurt quando o menino tinha 5 anos. Em conversas com Eckermann em 1828, Goethe atribuiu o gênio a uma "façanha produtiva" de efeito duradouro. "Todas as obras de Mozart são desse tipo", disse o poeta, e só seriam comparáveis às obras de Rafael na pintura e Fídias na escultura, artistas de outros tempos. Para Goethe, Mozart encarnava o gênio contemporâneo. Desde o início do século XIX, ele jamais saiu de moda.

"Ele é meu modelo mesmo quando toco música de vanguarda", afirma a violinista alemã Anne-Sophie Mutter, uma das maiores executantes das peças do compositor. "Nenhum músico atual escapa de sua influência. É impossível ignorar seu gênio. É um modelo estético e ético porque defendeu na música os valores humanos mais importantes".

Em termos objetivos, Mozart viveu como um cidadão comum, com ideais iluministas e dono de uma competência extraordinária para escrever partituras. Dizia ouvir óperas inteiras na cabeça, antes mesmo de lançar a primeira mancha na pauta. Tudo o que produziu foi resultado da facilidade incalculável, e pode ser submetido à análise estrutural. Mas há componentes em sua obra que teimam em escapar à formulação teórica. Ela chega aos ouvidos do público tanto pela consistência, beleza e equilíbrio internos, como contaminada pelas fábulas e referências místicas que carrega. Tornou-se objeto de um culto que sonha em abalar o ceticismo deste século pela intercessão da música. Mozart ecoa como fantasma-prodígio. E parece correr mais rápido que os ouvidos da História.

Os instantes finais das filmagens de Harry Potter

Os dias derradeiros de Daniel Radcliffe e elenco nos estúdios que abrigaram por 10 anos as filmagens da saga

 

A imagem do adolescente Harry Potter (Daniel Radcliffe) correndo com os amigos Hermione (Emma Thompson) e Rony (Rupert Grint) de uma ameaça bem conhecida está espalhada pelo mundo em todos os cartazes do filme Harry Potter e as relíquias da morte – parte 1. Outros pôsteres mostram o bruxinho com um olhar de medo e a expressão estafada. Harry parece farto de uma aventura que durou dez anos de filmagens – e o público também se prepara para se despedir dele. A imagem-símbolo de uma geração começa a sair de cena. Também já era hora: o simbolismo resultou em um empreendimento lucrativo. O que a varinha de Harry toca se transformou em ouro. Os filmes e o livro já movimentaram mais de 5 bilhões de dólares e deram origem a parques temáticos. Ainda em ação, os personagens de Harry Potter já estão congelados na própria lenda, figuras de cera antes de deixarem as telas.

Será que todos cansamos de Harry Potter? Mesmo em caso positivo, vamos sentir falta da companhia dos personagens. Nos arredores de Londres no final do ano passado, em uma set visita que fiz aos Leavesden Studios – onde a série foi rodada desde o primeiro filme, no ano 2000 -, pude conversar com Daniel Radcliffe, a personificação de Harry, sobre a sensação de despedida. Com os olhos marejados, o jovem ator disse: "Este lugar fez parte da minha vida, aliás eu pensava que aqui era a minha casa, porque comecei a vida aqui. Então será duro e triste para mim dar adeus a tudo isso."

A atmosfera melancólica pervade as tomadas dos dois últimos filmes, produzidos ao mesmo tempo entre 2008 e 20 de agosto de 2010, quando foram feitas as últimas tomadas. A divulgação do penúltimo filme da "saga" de Harry e amigos (não sei por que tudo hoje vira "saga", mesmo que seja um romance ou, como no caso da história de J.K. Rowling, uma aventura de fantasia e horror em sete partes) antecipa o que vemos no cinema: uma fuga desesperada com música insistente e imagens que se sucedem ao modo de um videoclipe, como se o filme inteiro fosse um trailer cheio de efeitos visuais e versões da sensação de pavor. O filme que começou infantil evoluiu para uma aventura adolescente e, por fim, em um thriller de ação que envolve jovens adultos com os hormônios prontos para explodir. O próprio público do filme acompanhou a passagem e as metamorfose dos tempos. As crianças de dez anos atrás hoje entram no mercado de trabalho, como mostramos na reportagem em ÉPOCA: as transformações dos personagens e do público correspondem à dos gêneros da superprodução: de fábula infantil a suspense de terror, passando por policial, a fantasia, o romance adolescente...

De acordo com a trama imaginada pela autora inglesa, a primeira parte do sétimo e último romance da série de J.K. Rowling trata da fuga de Harry de a sanha assassina Lorde Voldemort. O bruxinho do bem, "o Eleito" que irá salvar o mundo da maldade e restaurar a moralidade no mundo dos mágicos, acaba de escapar da escola de magia de Hogwarts. Ele precisa se esconder dos Comensais da Morte, liderados por Voldemort, o bruxo rival de Alvo Dumbledore, mestre de Harry recém assassinado na escola. A primeira parte de HP e as relíquias da morte narra a história de um fugitivo que, ao completar 17 anos, perde a proteção das forças mágicas. Harry é um criatura que remete aos tipos patéticos dos romances vitorianos de Charles Dickens. À maneira do protagonista de David Copperfield (1850) e de Pip, de Grandes Esperanças (1861), criações de Dickens, Harry perdeu os pais muito cedo, foi criado pelos tios e, no entanto, possui uma marca que o levará à glória.

O achado de J.K. Rowling foi acoplar uma aventura dickseniana de superação do órfão a uma história de fantasia e horror ao gosto da belle-époque. Na trajetória da formação e da transformação de Harry, as entidades sobrenaturais se intrometem na vida cotidiana. E assim, feito um Oliver Twist-Parsifal do fim do século XX, o feiticeiro enfrenta a um só tempo as misérias sentimentais da orfandade e os perigos do Mal. Quem for ver o filme pela primeira vez talvez não entenda nada disso e pense tratar-se de uma aventura de ação, porque é preciso estar familiarizado com o destino de Harry para ter a experiência completa do filme. Nesse sentido, a adaptação para as telas se escravizou em parte aos ditames do romance (para mim, o romance é superior ao filme). O diretor David Yates aplicou um combustível extra na poção, encenando sequências quase eróticas entre Harry e Hermione. Os dois chegam a aparecer nuns em uma visão monstruosa, aos olhos do ciumento Rony. O filme tem um quê de outra saga, Crepúsculo. Mas, no geral, é fiel à narrativa original.

Em As relíquias da morte – parte 2, será travada a batalha entre o exército de Dumbledore, capitaneado por Harry, e os Comensais da Morte, de Voldemort. Um epílogo com cara de épico, mas que encobre a verdadeira intenção da escritora: contar a história de formação de um menino que, enfrentando as dificuldades e sundo o narcisismo infantil, conquista a cidadania. Nada mais politicamente correto. Mesmo assim, J.K. Rowling chegou a ser perseguida pela Santa inquisição...

Em julho de 2011, entra em cartaz a derradeira sequência. Mas o filme já está todo feito. Comprados pela Warner Brothers, os Leavesden Studios fecharam as portas depois de 15 anos de produções e vão dar origem ao Museu Harry Potter, um parque temático com turnês pelo verdadeiro mundo em que Harry Potter foi gerado. Quando estive lá, no final de setembro de 2009, a metamorfose já estava se processando. Localizada na vila de Hertfordshire, a 29 quilômetros do centro de Londres, local onde anteriormente a Rolls-Royce instalou sua fábrica de automóveis, a sede dos estúdios conta com prédios e equipamentos distribuídos por uma área de 320 mil metros quadrados. O enorme barracão em que a maior parte do filme foi realizada conta com os cenários originais da superprodução, quase todos desativados quando os vi, cobertos de penumbra: o refeitório de Hogwarts, a sala de conferência, a biblioteca de Dumbledore, o laboratório do professor Snape, repleto de tubos de ensaios e retortas. Emma Watson (Hermione) filmava sobre uma enorme tela verde (green screen), montada na vassoura de bruxa, mantida por uma grua. Emma sorria e se divertia com a repetição da cena, e acenou para os jornalistas, muito animada. É como se estivesse pilotando uma vassoura pelos céus. Logo adiante, a rua de casinhas modestas em que viveu Harry Potter ainda se encontra erguida. O departamento de criação de objetos de cena se localiza ao lado do barracão principal. Ali foram moldados as esculturas em papel mâché dos monstros, da Fênix, da aranha gigantesca, além dos objetos de cena, como as varinhas de condão, as perucas, as roupas e máscaras.


Considero as visitas a locações de filmagens, a convite dos estúdios, a experiência mais interessante para um jornalista que cobre cinema. Minha excursão às filmagens das duas partes de Harry Potter e as relíquias da morte, com um grupo de jornalistas internacionais, não poderia ser mais significativa. Quando entramos no estúdio principal, Emma Watson nos cumprimentou de sua bicicleta. Desde pequena ela se acostumou a se locomover pelo local em uma bicicleta, bem como seus amigos. Apesar do sorriso espontâneo de Emma, a melancolia pairava no ar. Em um determinado estúdio, os restos de uma festa de casamento rodada na noite anterior pareciam o dia seguinte de uma festa real, com toalhas e copos amarfanhados. Fomos convidados a almoçar na cantina. O sujeito que estava à minha frente na fila do bandejão era o ator Alan Rickman, o insidioso professor Severo Snape. Foi engraçado vê-lo se servindo de frango e purê, em meio a risadas e papo descontraído. Depois, tive o privilégio de assistir a uma sequência mil vezes repetida em que Daniel Radcliffe (Harry) beija Bonnie Wright (a Gina, sua grande paixão). Bonnie foi a primeira a vir conversar com os jornalistas. "Tenho planos de continuar a atuar", disse. "Mas ainda não me acostumei com a ideia de que este aqui não é meu mundo!"

Despojado de uma possível máscara de celebridade, Daniel Radcliffe respondeu nossas perguntas com a inteligência que ele mostra desde menino, apesar de muito cansado. Sentou-se em meio à roda de jornalistas, suspirou e não conteve as lágrimas. Ele havia sido informado que a nossa era a última das centenas de visitas que os repórteres fizeram aos estúdios nos últimos dez anos. "Esta é a visita final, não é?", perguntou. "Pois é. Estou sentindo o clima de despedida mais do que ninguém. Muitos dos meus velhos colegas de elenco já não estão por aqui, e estamos nos aproximando das últimas sequências. Não posso deixar de me comover. Estes estúdios fazem parte da minha vida. Eu nem sabia que era ator e que estava trabalhando quando entrei aqui para filmar Harry Potter. Um pouco de todos nós será deixado aqui. Somos todos amigos e tenho certeza de que vamos todos sentir falta desses tempos que já estão indo embora." Daniel cumprimentou todo mundo e, mais controlado, voltou a suas cenas de beijo.

Quando embarcamos no ônibus, contemplei os prédios e a paisagem plana que iam se afastando. Então me veio a seguinte sensação: as ações reais que se desenrolaram por uma década naquele espaço podiam se encerrar, mas o cinema se encarregava de eternizá-las nas telas e nos monitores. Qual é, então, a realidade mais real, a que vemos pelas películas dos filmes ou o trabalho em grupo entre artistas, cineastas, técnicos e operários que abarca uma vida? O que vale mais, o produto ou o processo de sua construção? No caso da turma de Harry Potter, a vida e a arte parecem ter se plasmado para sempre. Só não sei se teria gostado tanto de acompanhar a "saga" se não tivesse conhecido ao elenco e a equipe tão de perto esses anos todos.