terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Diabos do asfalto

Não há quem não se irrite com os motoboys. A começar por eles próprios, que parecem revoltados com a vida que levam – e descontam nos outros motoristas.. Em São Paulo, formam um exército de 200 mil integrantes. Uma estatística informa que morrem em média dois motoqueiros por dia na cidade. A cena é banal e terrível: o sujeito de capacete estatelado no chão, agonizando sob a indiferença rancorosa dos carros. É a guerra no asfalto.
Nem os pedestres escapam à sanha deles pela alta velocidade. Não raro, abatem um pedestre que tenta atravessar a rua. Semanas atrás quase fui colhido por um motoboy na avenida Europa, não longe do local onde o músico Marcelo Frommer foi fatalmente atropelado por um motoqueiro, no início do século.
Mas teimo, continuo a evitar o pânico social e sigo o caminho. Nos meus passeios pelas bordas das calçadas, observo o comportamento dos motoboys. Eles lembram seres sobre-humanos, anjos diabólicos do asfalto, enlouquecidos na “costura” que fazem entre os outros veículos, num zigue-zague dos infernos. Atravessam as avenidas congestionadas como se não possuíssem corpos, nem pilotassem máquinas. São o símbolo desta época em que o espaço està sendo abolido em nome do tempo. A aceleração das motos torna difuso o mundo em torno delas, borra os limites e converte o motoboy em uma espécie de mensageiro fantasma tão útil quanto perigoso.
Outro dia assisti em DVD ao documentário Motoboys – Vida Loca, de Caíto Ortiz. O filme confirmou minha convicção de que os motoboys vivem em conflito com os demais motoristas. Por força do trabalho insano e mal-remunerado, exibem um terrível mal-estar existencial. Daí para socar latarias e insultar cidadãos, é um simples cavalo-de-pau. Afinal, estão habituados a reinar nas ruas. O filme me revelou outro aspecto: o prazer com que eles trabalham e o poder que detêm. São necessários à economia. Se fizessem greve, paralisariam a cidade. Eles também antecipam o futuro: as motos deverão ganhar espaço no caos do tráfego e, um dia, poderão substituir os carros de passeio. Como diz o arquiteto Paulo Mendes da Rocha no filme, é irracional veículos que pesam toneladas transportarem motoristas que pesam de 60 a 80 quilos.
Pena os motoboys não terem consciência de seu potencial. Eles teriam tudo para se tornar heróis urbanos. Poderiam se engajar em trabalhos de socorro e projetos sociais. Como agentes de transformação, formariam o mais influente grupo profissional da cidade. Mas nada disso parece excitá-los. Eles só se unem quando se trata de formar gangues para defender o motoqueiro numa briga com outro motorista. Será que o cérebro deles esturricou sob os capacetes? Não notam que possuem superpoderes?!


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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

HIstória e mancha

Desde 1970, já vi surgir e morrer cinco ou seis idéias de cidades na área que conheci como São Paulo. Ao passear pela cidade sinto como se caminhasse em múltiplos níveis. Essas camadas não são visíveis a olho nu, e sim pela memória. Estou agora no Centro. Faz algum tempo que não ando por aqui, então tudo sabe a novidade. O Centro dos anos 70 e 80 parece não existir mais.
Isso é só aparência, pois posso distinguir vestígios de projetos de cidade ainda mais remotos. Passo a andar no sentido anti-horário. No Bexiga a gente ainda pode ouvir o bate-estaca do punk e do pós-punk, em locais que sediaram casas noturnas “radicais”, como Madame Satã e Carbono 14, lembra? Consigo captar o nascimento do pólo pós-industrial dos serviços durante a década de 60 nas velhas galerias das ruas 24 de Março e Augusta. A metrópole da indústria dos anos 30 aos 50, quando São Paulo virou a “locomotiva do Brasil”, mora nos prédios Martinelli, Banespa e Copan. A Paulicéia Desvariada da Semana de Arte Moderna de 1922 encontra-se congelada na casa de Mário de Andrade, na rua Lopes Chaves, e no sobradinho kitsch de Oswald de Andrade na Consolação (que nos anos 80 sediou o Spazio Pirandello e agora está em ruínas). Eis a capital do café vibrando pelos viadutos do Chá e Santa Ifigênia e no famoso “triângulo” das ruas XV de Novembro, São Bento e Direita. As repúblicas de estudante do Largo de São Francisco e as mulheres de mantilha já não existem mais, mas a região da Igreja de São Francisco mantém o mapa dos antigos sobrados. e as vidas que os habitaram. Por fim, a origem: a São Paulo dos jesuítas e dos bandeirantes ainda pode ser espiada no Pátio do Colégio e no Mosteiro de São Bento.
Em alta velociade, viajei pelo ontem neste futuro.
Tudo aqui pode soar lugar-comum. Mesmo asssim, tudo possui um significado entranhado em cada rua e parede feito mancha profunda. História é a mancha que assombra os trajetos que a gente percorre. É desconcertante como os vetores da Geografia e da História se embaralham no vaivém pelo tempo. O espaço segue o mesmo, ou quase, em sua estrutura. As coisas e pessoas se modificam na superfície, mas os fundamentos da cidade continuam como nos séculos passados. Para usar uma distinção escolástica, a multidão de agora é a aparência a vagar pelos rasos da essência. E esta senhora silenciosa observa nossa agitação com um sorriso de quem adverte: “Caminhante, cuidado para não cair na ilusão do presente e assim perder a visibilidade dos desvãos do tempo!”