domingo, 30 de outubro de 2011

How to listen to Zezé di Camargo & Luciano

I  have no particular musical prejudice. For me there are only two genres of music: good music and bad music. Not conside r mediocrity, because it pertnce the second kind, and do not pay much attention to it. Throughout life, I made some observations: the most of good music is located in classical music and jazz. The worst, in rap, especially gangsta rap. And the rest is to hunt for gems among impurities. A friend of mine used to say that in country music need not be afraid to go out on the prairie in search of uncomplicated flowers of the field. So there are some flowers in the work of uncomplicated Zézé di Camargo and Luciano. No reason to not listen to them.

Como ouvir sertanejos sem preconceio

Não tenho preconceito musical. Para mim só existem dois gêneros de música: música boa e música ruim. Nem con sidero a mediocridad e, porque ela pertnce ao segundo gênero, e não presto muito atenção nela. Ao longo da vida, fi z algu mas c  onstatações: a maior concenração de musica  boa está na música erudita e no jazz. A pior, no rap, em  especial o gangsta. E o resto do tabalho é caçar preciosidades no mal de impurezas. Um amigo meu costumava dizer que na música sertaneja é preciso não ter medo de sair pela campina à busca de flores singelas do campo. Então há algumas flores singelas na obra de Zézé di Camargo e  Luciano. Não há por que não ouvi-las.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Eco de volta ao suspense de ideias

O mestre do suspense erudito

Umberto Eco criou um gênero. O Cemitério de Praga mostra que ainda não foi superado na controvérsia e na intriga

                O escritor italiano Umberto Eco já se destacava como teórico literário, medievalista e investigador de signos quando, em 1980, lançou o seu primeiro romance, O nome da Rosa. O livro causou surpresa porque não se tratava de mais um ensaio sobre a narrativa ou os fenômenos da cultura pop – matérias nas quais Eco se mostrava mais que versado – e sim um thriller ambientado na Idade Média. O enredo, intrincado, envolve monges obcecados pela descoberta do mistério de um texto perdido: a segunda parte da Poética, de Aristóteles, que abordava a comédia. O livro foi traduzido para 44 idiomas e vendeu 5 milhões de exemplares no mundo inteiro. Trinta anos depois, Eco, de 79 anos, repete a façanha. No final de outubro de 2010, ele lançou O cemitério de Praga (editora Record, 480 páginas, R$ 49,90-, tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo), seu sexto romance, agora traduzido no Brasil. A história gira em torno das aventuras do notário Simoni Simonini, um falsário atuante na Itália e na França no século XIX, assombrado por conspirações políticas. Em uma semana, o livro vendeu meio milhão de exemplares na Itália, e se tornou o maior sucesso do escritor desde O nome da rosa.

                O segredo das vendas de Eco é conhecido. Com O nome da rosa, ele inaugurou e tornou moda um gênero de narrativa: o suspense erudito, ou, como chamam os críticos americanos, “smart thriller”. Essa modalidade ficcional pode ser decomposta em cinco partes: contém ação, com cenas de perseguição, morte e violência; apresenta um mistério que, ao ser decifrado, revela um aspecto surpreendente sobre o funcionamento do mundo; envolve, por isso, uma grande causa ou missão, a ser levada adiante pelo herói ou anti-herói; resulta de pesquisas de documentos raros ou jamais divulgados; e, finalmente, gera uma polêmica no mundo real, de preferência ao causar indignação em instituições consolidadas. Eco, ateu agnóstico, aprendeu a divertir os leitores mexendo nos nervos de entidades como a Igreja Católica e a Maçonaria. Em O nome da rosa, ele questionava a infalibilidade do papa. No romance seguinte, O pêndulo de Foucautl (1988)  lançava dúvidas sobre o esoterismo das sociedades secretas. Rejeitando a própria receita, buscou assuntos menos controversos nos anos 1990 e 2000. Seus três romances posteriores – A ilha do dia anterior (1994), sobre um náufrago desmemoriado no século XVII, Baudolino (2000), peripécia medievalesca, e as memórias de infância A misteriosa Chama da rainha Loana (2004) – nada continham do estilo com que fez a fama, e quase deixou de ser visto no mercado como best-seller.

                Eco evitou, assim, cair na armadilha da fórmula que descobriu. Mas criou um vazio, que logo foi preenchido por diversos seguidores (leia quadro abaixo). Pelo menos um deles, o americano Dan Brown, superou o mestre em vendas com o romance O código Da Vinci (2003), aventura estrelada, aliás, por um semioticista como Eco, Robert Langdon.  O romance vendeu 80 milhões de exemplares. E causou fúria entre os católicos, já que defendia a tese de que o catolicismo se fundamentaria no culto à deusa Vênus. Os smart thrillers atuais não são e nem pretendem virar obras de arte. Fazem parte da área do entretenimento. Talvez mordido pelo êxito de seus epígonos, Umberto Eco volta à carga em O cemitério de Praga. Com o livro, deseja provar que o suspense erudito deve avançar em ousadia e controvérsia, e chegar perto do que a crítica denomina alta ficção – sem, no entanto, abdicar das grandes vendagens.

                Eco também mostra que é possível voltar a fazer sucesso de escândalo. Jornais católicos e entidades judaicas denunciaram o antissemitismo do livro, parte dele narrado em primeira pessoa, contada pelo antissemita Simone Simonini, um notário com dupla personalidade: ele também responde pelo nome de padre Dalla Piccola. Eco defendeu-se em entrevista a Claudio Magris, no Corriere delal Sera, valendo-se do argumento do narrador não-confiável. : “O que coloco em cena é o discurso do antissemitismo, e é ele que persegue meu Simonini, que ‘vende”os judeus como fantasma, como um Outro que é necessário imaginar para reforçar a sua identidade nacional ou provinciana.”  Lucetta respondeu: “Não se denuncia o antissemitismo assumindo a parte dos antissemitas”.

                Talvez seja exagero levar tão a sério uma obra de ficção. Simonini conta uma história que parece ser, a um só tempo, antissemita, anticlerical, anticomunista e anticapitalista. O cemitério de Praga é uma fantasia cômica sobre a paranoia e os complôs que envolveram as revoluções de 1830 e 1848, o Risorgimento italiano, o Caso Dreyfus na França e o antissemitismo do fim do século XIX. O móvel da trama é a elaboração de O protocolo dos sábios de Sião, texto que “documenta” a reunião dos rabinos mais poderosos da Europa no cemitério judaico de Praga em meados do século XIX, com o fim de destruir a fé cristã e as instituições morais e econômicas do Ocidente.  O documento, publicado em Moscou em 1897, tornou-se popular, até ser desmascarado por uma série de reportagens do jornal The Times de Londres em 1925. O jornal descobriu que o texto havia sido criado pela Okhrana,  a polícia secreta do czar Nicolau II, para justificar a perseguição dos judeus na Rússia. Os redatores do Protocolo se basearam em uma série de panfletos antissemitas que remontavam aos tempos de Napoleão. A base oi  “O diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu” (1865), de Maurice Joly, de 1865 – personagem do romance, junto a uma galeria de vultos históricos. 

                Eco afirma no posfácio que todos os fatos são reais, exceto Simonini, talvez o personagem menos absurdo do romance. Ele jura sua missão é salvadora, que foi roubado por Joly e vem a ser o verdadeiro autor do Protocolo. A diferença está no seu alvo: em vez dos judeus, ele retratou o encontro dos jesuítas no cemitério, para dominar o mundo. Depois,  refalsificou a própria falsificação, a mando da Okhrana. Em 1860, mora na cidade natal de Turim, quando é chamado pelo papa para conspirar contra Garibaldi e a unificação da Itália. Em 1897, exilado em Paris, tem delírios xenófobos, ao mesmo tempo que, à noite,  transforma-se no jesuíta Dalla Picola para frequentar os lupanares, as casas de jogos e missas negras patrocinadas pela maçonaria e os judeus. O discurso de Simonini é tão virulento contra tudo, todos e ele próprio, que provoca risos. Ele entremeia suas diatribes com intermináveis listas de receitas de iguarias. Tudo ilustrado com gravuras extraídos dos jornais sensacionalistas do tempo.

                No enredo que oscila entre fatos e fantasias, o escritor atingiu um nível inédito de cenas de ação e invencionices misteriosas. “Inventar histórias acontece em toda parte”, disse. “Por isso, ainda hoje os dossiês secretos são compostos unicamente de recortes de jornal, e quase sempre de jornais sensacionalistas – os folhetins dos nossos dias.” Assim, revolvendo o desejo de sensações novas do leitor, Umberto Eco mostra que ainda é o papa do suspense erudito.

O historiador (2005)  – Elisabeth Kostova . A autora americana imagina que Drácula, aos 500 anos, tornou-se historiador do Leste Europeu. Enquanto discorre sobre suas fontes, distribui dentadas nos ouvintes

O Códex 632 (2005) – O português  José Rodrigues dos Santos vendeu 200 mil exemplares de um trhiller sobre um documento que revela um segredo que altera a visão de mundo da humanidade: o descobridor Cristóvão Colombo não era genovês, e sim português.

  

Os crimes do mosaico (2004). O professor romano Giulio Leoni ambienta um ciclo de quatro romances de crime na Florença da Idade Média. O detetive que investiga os casos é o poeta Dante Alighieri 

O símbolo perdido (2009) – Dan Brown repetiu o sucesso de O Código Da Vinci, desta vez investigando os mistérios em torno das origens maçônicas dos fundadores dos Estados Unidos

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A cultura virou poeira

O avanço tecnológico tem um preço: o fim da possibilidade de escolher e testar livros e discos novos no mundo real
Imagine o que seria das mulheres se, de repente, suas lojas favoritas de roupas, acessórios e perfumes desaparecessem. Não de repente, mas de uma forma lenta, cruel e inevitável, até que toda e qualquer roupa e acessório só fosse acessível via internet. Tenho certeza de que elas fariam uma revolução para recolocar as vitrines nos seus antigos lugares. Seria um choque a ausência da possibilidade de se aventurar pelos produtos materiais, escolher ao acaso um item e se arriscar. É assim que estou me sentindo: como uma mulher sem loja. Não quero sexualizar o debate. De fato, muitas são as mulheres que consomem produtos culturais com a mesma fúria dos homens (não avistei nenhuma até hoje, mas creio que elas existem). Assim, uma grande parcela do público está sendo atingida com a eliminação do varejo de cultural.
Sempre fui um consumidor da área. Um dos meus prazeres em viagens era (estou enfatizando o pretérito mais que perfeito) encontrar lojas de discos e DVDs e livrarias, passear pelas estantes e, sem um objetivo definido, descobrir uma banda, um autor, um filme. Mesmo em casa, eu adorava ir a uma locadora de vídeos e pegar um filme no qual jamais pensei, e que nem conhecia. Era um gesto de acaso, um ato lúdico de apostar em uma manifestação artística desconhecida. Como visitar uma galeria desconhecida, era desse modo que as coisas funcionavam. Aos poucos, estou assistindo ao desmoronamento desse hábito. A evolução tecnológica é inevitável e cobra seu preço: o consumidor terá os produtos que deseja, mas não mais o prazer da interação concreta com eles – e, não raro, não mais a qualidade que eles apresentavam anteriormente.
As primeiras lojas a sumir do mapa foram as de CDs. Com a pirataria de arquivos digitais pela internet, tornou-se possível achar qualquer coisa sem pagar por isso. Depois os e-books derrubaram as livrarias. E, finalmente, as locadoras estão com os dias contados. As lojas de videogame, os últimos baluartes da compra cultural, são as próximas. Tudo está migrando para o buraco cintilante do atacado do mundo virtual.
Os exemplos são incontáveis. Assisti ao fechamento de muitas lojas que eu amava. Alguém lembra da Virgin na Times Square de Nova York? Ou da Tower Records em San Francisco? Acabaram de fechar a mais antiga loja da HMV de Londres, a primeira especializada em discos clássicos, que estava no local, na Oxford Street, desde 1897, desde a invenção do gramofone. No lugar dela, estão inaugurando neste momento uma loja de moda jovem, a Forever 21. Lamentável para mim e todos os consumidores de cultura, que bom para as lolitas. Em Toronto, fecharam a venerável Sam Goody’s – loja de vinil e CDs que serve como cenário para o filme Scott Pilgrim. Estão construindo uma torre de 40 andares no local. As lojas HMV de Toronto estão liquidando todos os seus discos clássicos, a preço de banana. Não tenho mala para tantos itens preciosos. Afinal, eles estão lá desde o ano 4 A.B. (antes de Bieber, sendo que o Annus Bieberi é 2009), quando vim à cidade pela primeira vez. Os discos demoravam a desaparecer das prateleiras. Eles esperavam por quem se interessasse por eles e os comprasse. Eu demorava anos até me decidir por este ou aquele disco.
Vamos às livrarias. Os livros eletrônicos vieram para sempre. Não nego sua funcionalidade e incrível rapidez. Mas muitas e inimagináveis são as transformações que eles impõe aos hábitos de leitura e de compra de títulos. Só nos Estados Unidos, o consumo de livros em papel caiu 14 por cento nos dois últimos anos, com um crescimento acelerado de downloads de livros eletrônicos, na ordem de 30 por cento ao ano. Isso pode ser verificado na vida real. Observo as grandes livrarias vendendo e-readers, como que assinando a rendição ao mundo digital. Isso quando já não estava falida mesmo. É o caso da cadeia Borders. Presenciei a liquidação de estoque das filiais londrinas há um ano. Agora vi a xepa da Borders do CNN Center, em Nova York. Antes a gente reclamava que as pequenas livrarias haviam sido devoradas pelas grandes cadeiras. Agora a gente chora pelas grandes cadeias... Também as redes de bancas de revistas e jornais de aeroportos do mundo inteiro estão restringindo o espaço aos livros de bolso, os populares best-sellers. É o que nos Estados Unidos chamam de “mass market books”, livros do mercado de massas. Curiosamente, a popularidade dessas brochuras baratas está em queda. Os livros de bolso barato deixaram de ser expostos – suprimindo, com isso, a eventual a possibilidade de comprar um livro ao acaso, um dos maiores deleites que um passageiro pode ter para matar o tédio das viagens. Hoje, as bancas de aeroporto, rodoviária e ferroviária americanas preferem os livros em capa dura de autores consagrados e as brochuras de prestígio, com autores vendáveis conhecidos. Não parece haver mais espaço para surgirem talentos nem mesmo na área dos best-sellers. Não existe mais a pausa para folhear um volume qualquer, ruim ou não.
Também não vale a pena chorar pelas lojas e locadoras de DVD, embora eu continue a lamentar seu extermínio. Provavelmente por culpa do meu sentimentalismo, ainda freqüento a locadora do meu bairro, para manter viva a chama da resistência. O que é cretino, já que eu sozinho não consigo segurar a integridade de minha locadora, que já terceirizou parte do espaço para um bar e uma loja de consertos de computadores. Eu raramente compro DVDs, mas agora é o caso, já que os espaços para o produto estão encolhendo nas poucas lojas que sobraram. No Brasil, já há vários serviços de aluguel de filmes pela televisão ou pelo computador. O Netflix – que inclui envio pelo correio de DVDs e downloads de filmes – acaba de chegar ao país.
Não pretendo condenar a evolução, mas apenas um aspecto do progresso que desconsidera o gosto e os hábitos dos consumidores. À medida que as compras no mundo online estão cada vez mais divertidas, o mundo offline – antigamente conhecido como mundo real – ficou mais triste. Pelo menos para quem gosta de livros, revistas, HQs, discos, DVDs e games. Não há o que fazer. Preciso me acostumar com cidades sem as lojas que eu adorava freqüentar, e me render à intangibilidade e à desvalorização dos produtos que gostava de tocar, escolher e arriscar. O comércio de massa aboliu o comprador distraído, expulsou o devaneio do mundo das compras em shopping centers e ruas. Tudo aquilo que fazia parte do mercado de massa tornou-se um nicho alternativo. Aos saudosistas, só resta mesmo freqüentar os sebos e lojas de artigos de segunda mão. O detalhe é que, nesses negócios, o material é exibido sem cuidado, amontoado e empoeirado. Quem consome artigos de cultura não terá mais acesso a produtos novos que possa testá-los antes de comprá-los. É a morte do experimento. É a morte da experiência física. Eu gostava de objetos, de coisas, não de algoritmos abstratos na internet. Por isso me considero vítima do assalto do suposto progresso. E o pior é que o criminoso não tem corpo.  
Comprar pela internet é como sexo virtual: muita imaginação para nenhuma presença...

] Uma história em miniaturas

            Objetos antigos são carregados de história. Quando valiosos, costumam sobreviver às pessoas que os compraram, trocaram e presentearam. São passados adiante. Ao mesmo tempo em que resistem à memória de quem um dia os possuiu, os objetos parecem reter algo dos antigos proprietários, uma espécie de carga magnética, espiritual ou qualquer miasma do tipo. Foi assombrado pela relação entre a beleza da matéria e a corrupção imposta pela passagem do tempo que Edmund de Waal escreveu o livro A lebre com olhos de âmbar (Intrínseca, 320 páginas, R$ 29,90). A lebre em questão pertence a uma coleção de 264 miniaturas japonesas, entalhadas em marfim e madeira, chamadas de netsuquês (leia quadro à página ---), que de Waal herdou de um tio-avô, e mantêm em uma vitrine espelhada e aveludada em sua casa em Londres. São representações da vida, assinadas por artistas dos séculos XVII ao XIX: animais em ação, trabalhadores entretidos em suas tarefas, moças nuas tomando banho, casais fazendo sexo, atores no ápice de um drama de teatro Nô. Figuras minúsculas, como diz Waal, divertidas e obscenas - explosões de exatidão, impassíveis às conturbações mundiais dos últimos 200 anos.

            Mas não se trata apenas de um conjunto de obras de arte antigas, “uma coleção imensa de objetos muito pequenos”. Esses netsuquês são os únicos bens que restaram da família materna de de Waal, os Ephrussi, banqueiros e exportadores originários de Odessa, na Rússia, que se estabeleceram um império econômico em Paris e Viena no final do século XIX. De Waal sabia da existência deles desde pequeno. Mas só dois anos atrás sentiu o impulso de contar a história deles – e de como eles testemunharam a decadência de uma família judia que se considerava assimilada pelo alta sociedade europeia, mas terminou dispersa e espoliada de todos os seus bens com a anexação da Áustria pelos nazistas, em 1938.

            “Eu quis evitar o sentimentalismo e contar mais uma saga em sépia sobre a perda tão típica da Europa Central”, diz de Waal a Época. “No livro, pretendi chamar atenção à qualidade de testemunha que anima os objetos, para mim muito forte. Em certo sentido, os netsuquês encarnam a história de minha família como se não houvesse outra ligação entre o passado e agora: eles se mantêm unidos enquanto a família sofreu uma diáspora violenta. Em outro sentido – mais próximo da minha vida – as coisas que são passadas de mão em mão no decorrer do tempo se sentem muito diferentes dos objetos que permaneceram intocados. Não há uma literatura do toque: meu livro tenta explorar esse aspecto.”

            O toque é importante para De Waal. Aos 46 anos, casado e pai de três filhos, ele é um dos mais renomados ceramistas ingleses. Suas peças estão expostas em instituições londrinas, como o Victoria and Albert Museum e a Tate Gallery. A família, de origem judaica pela parte materna e holandesa protestante pela paterna, se estabeleceu na Inglaterra nos anos 1940. Seus pais imigrantes enfrentaram dificuldades para dar a De Waal e seus outros dois irmãos condições de estudar. Desde criança, Edmund mostrou seu talento para moldar peças de cerâmica. Em 1991, ganhou de uma fundação japonesa uma bolsa de estudos para estudar cerâmica em Tóquio. Aproveitava as horas de folga para visitar seu tio-avô materno, Ignace Ephrussi, Iggie, austríaco naturalizado americano, que trabalhava como exportador no Japão desde os anos 1940, depois de servir como soldado na Segunda Guerra Mundial. Na sala de Iggie, de Waal viu pela primeira vez os netsuquês.

            Iggie morreu em 1994 e legou a coleção ao sobrinho-neto. A herança, em vez de satisfazê-lo, deixou-o intrigado: o que as aventuras dos bibelôs do Japão tinham a ver com ele? “Eu me deixei levar pela pesquisa de uma forma que chamo digressiva, pois ‘flanei’ pelos diversos lugares pelos quais a coleção passou e neles pesquisei em arquivos e bibliotecas”, afirma de Waal. A pesquisa se tornou obsessiva.

            Os netsuquês o conduziram para uma viagem no tempo e no espaço pelo mundo.  Os japoneses tradicionais usavam esses bibelôs para tocá-los, como talismãs, carregando-os consigo. No século XIX, em Paris, tornaram-se objetos cobiçados com a moda do “japonismo” – a mania de colecionar peças japonesas. Um dos fanáticos pelo “japonisme” foi o tio-avô de de Waal, Charles Ephrussi (1840-1905). Dândi riquíssimo, patrono das artes e protetor de pintores como Gustave Moreau e escritores como Marcel Proust (que, segundo de Waal se baseou em Charles para criar o personagem Swann, do ciclo de romances Em busca do tempo perdido), Charles comprou o lote de 263 netsuquês do antiquário Philippe Sichel, quando mantinha um caso amoroso com a mulher de um banqueiro judeu, Louise. Ele exibia os netsuquês nos salões de seu palácio. Com o fim da moda japonesa, Charles enviou a coleção a Viena, como presente de casamento de seu primo, Viktor, e a bela socialite Emmy, bisavôs de de Waal. Corria o ano de 1899, e Viena fervilhava de cosmopolitismo – e o antissemitismo parecia impossível em uma cidade dominada por artistas e pensadores judeus, como o músico Gustav Mahler e o psicanalista Sigmund Freud. Emmy guardou os netsuquês em seu quarto de vestir. Seus filhos – entre eles Iggy e Elisabeth, avó de de Waal – gostavam de brincar com os seres minúsculos, com permissão de Emmy. Com a tomada de Viena pelos nazistas, as mansões judias foram invadidas, suas obras de arte catalogadas (“nunca os críticos de arte foram tão úteis”, escreve de Waal) e incoporadas ao patrimônio do Terceiro Reich. Os Ephrussi foram obrigados a emigrar. Depois da Segunda Guerra, Elisabeth voltou a Viena para tentar reaver seus bens – e o único que encontrou lhe foi dado pela velha babá, Anna, que havia escondido sob o colchão os netsuquês. Iggy carregou-os de volta às origens, para Tóquio.

            De Waal percorreu todos esses lugares e, hoje, dizendo-se mais leve: “Me sinto bem mais leve porque me livrei da obrigação de minha herança através da jornada de pesquisas e do livro.” Curiosamente, ele adquiriu o hábito de levar consigo um netsuquê de sua coleção. Sem nostalgia, ele afirma que carrega a história no bolso.


sábado, 15 de outubro de 2011

Uma história em miniaturas

            Objetos antigos são carregados de história. Quando valiosos, costumam sobreviver às pessoas que os compraram, trocaram e presentearam. São passados adiante. Ao mesmo tempo em que resistem à memória de quem um dia os possuiu, os objetos parecem reter algo dos antigos proprietários, uma espécie de carga magnética, espiritual ou qualquer miasma do tipo. Foi assombrado pela relação entre a beleza da matéria e a corrupção imposta pela passagem do tempo que Edmund de Waal escreveu o livro A lebre com olhos de âmbar (Intrínseca, 320 páginas, R$ 29,90). A lebre em questão pertence a uma coleção de 264 miniaturas japonesas, entalhadas em marfim e madeira, chamadas de netsuquês (leia quadro à página ---), que de Waal herdou de um tio-avô, e mantêm em uma vitrine espelhada e aveludada em sua casa em Londres. São representações da vida, assinadas por artistas dos séculos XVII ao XIX: animais em ação, trabalhadores entretidos em suas tarefas, moças nuas tomando banho, casais fazendo sexo, atores no ápice de um drama de teatro Nô. Figuras minúsculas, como diz Waal, divertidas e obscenas - explosões de exatidão, impassíveis às conturbações mundiais dos últimos 200 anos.

            Mas não se trata apenas de um conjunto de obras de arte antigas, “uma coleção imensa de objetos muito pequenos”. Esses netsuquês são os únicos bens que restaram da família materna de de Waal, os Ephrussi, banqueiros e exportadores originários de Odessa, na Rússia, que se estabeleceram um império econômico em Paris e Viena no final do século XIX. De Waal sabia da existência deles desde pequeno. Mas só dois anos atrás sentiu o impulso de contar a história deles – e de como eles testemunharam a decadência de uma família judia que se considerava assimilada pelo alta sociedade europeia, mas terminou dispersa e espoliada de todos os seus bens com a anexação da Áustria pelos nazistas, em 1938.

            “Eu quis evitar o sentimentalismo e contar mais uma saga em sépia sobre a perda tão típica da Europa Central”, diz de Waal a Época. “No livro, pretendi chamar atenção à qualidade de testemunha que anima os objetos, para mim muito forte. Em certo sentido, os netsuquês encarnam a história de minha família como se não houvesse outra ligação entre o passado e agora: eles se mantêm unidos enquanto a família sofreu uma diáspora violenta. Em outro sentido – mais próximo da minha vida – as coisas que são passadas de mão em mão no decorrer do tempo se sentem muito diferentes dos objetos que permaneceram intocados. Não há uma literatura do toque: meu livro tenta explorar esse aspecto.”

            O toque é importante para De Waal. Aos 46 anos, casado e pai de três filhos, ele é um dos mais renomados ceramistas ingleses. Suas peças estão expostas em instituições londrinas, como o Victoria and Albert Museum e a Tate Gallery. A família, de origem judaica pela parte materna e holandesa protestante pela paterna, se estabeleceu na Inglaterra nos anos 1940. Seus pais imigrantes enfrentaram dificuldades para dar a De Waal e seus outros dois irmãos condições de estudar. Desde criança, Edmund mostrou seu talento para moldar peças de cerâmica. Em 1991, ganhou de uma fundação japonesa uma bolsa de estudos para estudar cerâmica em Tóquio. Aproveitava as horas de folga para visitar seu tio-avô materno, Ignace Ephrussi, Iggie, austríaco naturalizado americano, que trabalhava como exportador no Japão desde os anos 1940, depois de servir como soldado na Segunda Guerra Mundial. Na sala de Iggie, de Waal viu pela primeira vez os netsuquês.

            Iggie morreu em 1994 e legou a coleção ao sobrinho-neto. A herança, em vez de satisfazê-lo, deixou-o intrigado: o que as aventuras dos bibelôs do Japão tinham a ver com ele? “Eu me deixei levar pela pesquisa de uma forma que chamo digressiva, pois ‘flanei’ pelos diversos lugares pelos quais a coleção passou e neles pesquisei em arquivos e bibliotecas”, afirma de Waal. A pesquisa se tornou obsessiva.

            Os netsuquês o conduziram para uma viagem no tempo e no espaço pelo mundo.  Os japoneses tradicionais usavam esses bibelôs para tocá-los, como talismãs, carregando-os consigo. No século XIX, em Paris, tornaram-se objetos cobiçados com a moda do “japonismo” – a mania de colecionar peças japonesas. Um dos fanáticos pelo “japonisme” foi o tio-avô de de Waal, Charles Ephrussi (1840-1905). Dândi riquíssimo, patrono das artes e protetor de pintores como Gustave Moreau e escritores como Marcel Proust (que, segundo de Waal se baseou em Charles para criar o personagem Swann, do ciclo de romances Em busca do tempo perdido), Charles comprou o lote de 263 netsuquês do antiquário Philippe Sichel, quando mantinha um caso amoroso com a mulher de um banqueiro judeu, Louise. Ele exibia os netsuquês nos salões de seu palácio. Com o fim da moda japonesa, Charles enviou a coleção a Viena, como presente de casamento de seu primo, Viktor, e a bela socialite Emmy, bisavôs de de Waal. Corria o ano de 1899, e Viena fervilhava de cosmopolitismo – e o antissemitismo parecia impossível em uma cidade dominada por artistas e pensadores judeus, como o músico Gustav Mahler e o psicanalista Sigmund Freud. Emmy guardou os netsuquês em seu quarto de vestir. Seus filhos – entre eles Iggy e Elisabeth, avó de de Waal – gostavam de brincar com os seres minúsculos, com permissão de Emmy. Com a tomada de Viena pelos nazistas, as mansões judias foram invadidas, suas obras de arte catalogadas (“nunca os críticos de arte foram tão úteis”, escreve de Waal) e incoporadas ao patrimônio do Terceiro Reich. Os Ephrussi foram obrigados a emigrar. Depois da Segunda Guerra, Elisabeth voltou a Viena para tentar reaver seus bens – e o único que encontrou lhe foi dado pela velha babá, Anna, que havia escondido sob o colchão os netsuquês. Iggy carregou-os de volta às origens, para Tóquio.

            De Waal percorreu todos esses lugares e, hoje, dizendo-se mais leve: “Me sinto bem mais leve porque me livrei da obrigação de minha herança através da jornada de pesquisas e do livro.” Curiosamente, ele adquiriu o hábito de levar consigo um netsuquê de sua coleção. Sem nostalgia, ele afirma que carrega a história no bolso.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

[Do Giron] Escrever para arriscar

LAGiron


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From: LAG <lagijor@gmail.com>
Date: 13 de outubro de 2011 12h12min01s BRT
To: giron@terra.com.br
Subject: [Do Giron] Escrever para arriscar

O que um autor de ficção científica ensina sobre a vida

O escritor americano Ray Bradbury tem 91 anos. Ele devotou sua longa carreira à ficção científica. É um gênero considerado menor pelos críticos universitários - os “scholars”, um termo que soa pejorativo, mas que define bem a atividade daqueles que aplicam teorias a textos literários. Estamos tão contaminados pelas teorizações que a própria expressão “texto literário” provém de algum “scholar”. Enfim, a ficção científica constitui um ramo da literatura fantástica. E, apesar do nariz torcido da crítica, a fantasia tem tomado o lugar de outros tipos de ficção entre os leitores. É um fenômeno peculiar, pois passamos os dois últimos séculos mergulhados em romances, contos e novelas realistas. Os críticos incutiram nos leitores a ideia de que só os textos baseados na realidade formam a grande arte. A fantasia ficava para as crianças. Até que apareceram o britânico C.S. Lewis, o argentino Jorge Luis Borges, o brasileiro José J. Veiga (hoje esquecido) e Ray Bradbury, entre outros autores que demonstraram que a realidade é bem maior do que aquela que os acadêmicos nos enfiaram goela abaixo. Basta consultar as listas de mais vendidos, os rankings de vendas ou as bilheterias para constatar que a fantasia está em moda no cinema, nos livros, nos videogames, na internet. Por causa dessas viradas da história da cultura, o escapismo talvez tenha se tornado a verdadeira realidade.
Por isso, está na hora de prestar atenção ao que os autores fantásticos têm a dizer. Bradbury foi esnobado pelos críticos desde seu primeiro livro, a coletânea de contos Crônicas marcianas, de 1950. Um ano depois, escreveria outro livro desprezado, Fahrenheit 451, que em 1966 foi adaptado ao cinema pelo diretor francês François Truffaut e trouxe a fama ao autor. Em 60 anos de carreira, Bradbury já escreveu mais de 500 histórias. Ele tem muitos leitores no Brasil, mas aposto que poucos sabiam da faceta ensaística e poética de Bradbury. A editora LeYa lança agora no Brasil O Zen e a arte da escrita (168 páginas, tradução de Adriana de Oliveira, R$ 19,90), um pequeno volume publicado originalmente em 1990 que reúne as reflexões e poemas de Bradbury sobre viver e escrever, viver da escrita e escrever sobre a vida. Este é o resumo grosseiro do que o livrinho contém. Na realidade, os onze textos reunidos compõem um manual de orientação a quem queira começar a vida de escritor, mas também a todo aquele que pretenda viver com plenitude. Um manual de autoajuda? Bem mais do que isso, a coletânea revela o que se passa no cérebro de um dos maiores fantasistas do século XX. Um fantasista que elaborou aquela que para mim é a maior declaração de amor aos livros nestes tempos tecnológicos: em Fahrenheit 451, ele retrata o futuro do planeta, em que a sociedade de controle atingiu um tal ponto de excelência, que os livros são proibidos por conter mensagens subversivas e sediciosas à ordem. Nos anos 60, e nos países dominados por regimes totalitários como este aqui, Bradbury enviava uma mensagem de resistência. Tenho carinho por esse livro que confirmou que o amor à “vida inútil” contida nos livros nunca decepciona. Na biblioteca da casa de meus pais, no Rio Grande do Sul dos anos 70, eu me sentia fazendo parte dos “selvagens” que decoravam os livros e, com isso, afrontavam o poder – no caso, a abominável ditadura brasileira. Tive a sorte de ter nascido com uma grande biblioteca em casa. Tomei gosto por escrever e me tornar escritor (afinal de contas, jornalista é escritor ou não é?) com livros provocadores como os de Bradbury.
Para mim, portanto, é emocionante ler O Zen e a arte da escrita. É um guia que talvez tivesse servido para mim quando mais jovem. Mas, como dizia Charlie Chaplin, a vida é muito curta para que alguém se considera um profissional. Eu parafraseio: a vida é curta demais para alguém se considerar realmente maduro. Os livros são essenciais em qualquer idade, pois obviamente prolongam a vida e o que pensamos dela. O volume recém-publicado de Bradbury parece um monólogo que dá continuidade à declaração de amor de Fahrenheit 451. Nele, Bradbury pretende ensinar “como escalar a árvore da vida, apedrejar a si mesmo e descer sem quebrar nenhum osso nem o espírito”, como ele intitula o prefácio. Bradubry conta que colecionou histórias em quadrinhos, apaixonou-se por carnavais e feiras e então começou a escrever. A pergunta que se faz e que gerou o livro é a seguinte: o que escrever nos ensina?
Bradbury arrola duas razões. Primeiro, que escrever nos faz lembrar que estamos vivos e que viver e trabalhar é uma dádiva: “Então, embora nossa arte não possa, por mais que desejemos, livrar-nos da guerra, da privação, inveja, cobiça, velhice ou morte, pode nos revitalizar no meio disso tudo”. Segundo, que escrever é sobreviver, como qualquer outro trabalho. Ele aconselha que o escritor faça como o pianista, e pratique todos os dias. “Se você não escrever diariamente, os venenos se acumularão e você começará a morrer, ou enlouquecer, ou ambos”. Ele diz que fica ansioso no primeiro dia em que nada escreveu. Depois vem a tremedeira e a quase-demência. “Uma hora de escrita é como um tônico”, afirma. “Fico em pé, correndo em círculos e gritando por um par de sapatos limpos.” A escrita é o bote salva-vidas quando a morte ameaça. “Isso significa que escrever cura. Não por completo, naturalmente. Você nunca vai tirar seus pais do hospital ou seu melhor amor do túmulo”.
Evidentemente esse tipo de afirmação cala mais fundo em escritores do que em outras pessoas. Mas o que Bradbury ensina pode ser estendido a qualquer atividade. Escrever, como atuar em qualquer outra área, é se arriscar. Quem fizer, isso, diz, vai descobrir uma nova definição, uma nova palavra para trabalho: “E a palavra é ‘amor’”. Danem-se os escolásticos. O Zen do título é uma brincadeira que ele fez com o método oriental, que se baseia em “koans”, em pequenas lições. Ele explica, num artigo de 1973 (que dá título ao volume), que para escrever é preciso considerar três itens: “trabalho”, “relaxamento” e “não pense!” Trabalhar é um prazer, relaxar uma necessidade e não pensar, uma forma de fazer com que o texto venha até você, e não você correr atrás dele. Ele convida a gente a pensar sobre o mundo. “Você, o prisma, medida da luz do mundo: ela brilha através da sua mente para lançar uma leitura espectrosópica no papel branco, uma leitura diferente da que qualquer outro poderia lançar. Deixe o mundo brilhar através de você. Lance a luz do prisma, calor branco sobre o papel. Faça a sua própria leitura espectroscópica individual”. A única história que existe no mundo é a sua, porque o ser humano é único. Não importa o gênero. O importante é compreender que toda história é legítima, porque escrita por um indivíduo, com sua verdade particular.
Ao longo de sua reflexão sobre o próprio trabalho, Bradbury formulou um lema que serve para mim que sou admirador dele, e para você que talvez leia esse gênio ou não que fez ficção-cientifica e foi desprezado pela crítica por seu suposto escapismo, chamado Ray Bradbury: “Toda manhã, pulo da cama e piso num campo minado. O campo minado sou eu. Depois da explosão, passo o resto do dia juntando os pedaços. Agora é a sua vez. Pule!”