segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Eco de volta ao suspense de ideias

O mestre do suspense erudito

Umberto Eco criou um gênero. O Cemitério de Praga mostra que ainda não foi superado na controvérsia e na intriga

                O escritor italiano Umberto Eco já se destacava como teórico literário, medievalista e investigador de signos quando, em 1980, lançou o seu primeiro romance, O nome da Rosa. O livro causou surpresa porque não se tratava de mais um ensaio sobre a narrativa ou os fenômenos da cultura pop – matérias nas quais Eco se mostrava mais que versado – e sim um thriller ambientado na Idade Média. O enredo, intrincado, envolve monges obcecados pela descoberta do mistério de um texto perdido: a segunda parte da Poética, de Aristóteles, que abordava a comédia. O livro foi traduzido para 44 idiomas e vendeu 5 milhões de exemplares no mundo inteiro. Trinta anos depois, Eco, de 79 anos, repete a façanha. No final de outubro de 2010, ele lançou O cemitério de Praga (editora Record, 480 páginas, R$ 49,90-, tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo), seu sexto romance, agora traduzido no Brasil. A história gira em torno das aventuras do notário Simoni Simonini, um falsário atuante na Itália e na França no século XIX, assombrado por conspirações políticas. Em uma semana, o livro vendeu meio milhão de exemplares na Itália, e se tornou o maior sucesso do escritor desde O nome da rosa.

                O segredo das vendas de Eco é conhecido. Com O nome da rosa, ele inaugurou e tornou moda um gênero de narrativa: o suspense erudito, ou, como chamam os críticos americanos, “smart thriller”. Essa modalidade ficcional pode ser decomposta em cinco partes: contém ação, com cenas de perseguição, morte e violência; apresenta um mistério que, ao ser decifrado, revela um aspecto surpreendente sobre o funcionamento do mundo; envolve, por isso, uma grande causa ou missão, a ser levada adiante pelo herói ou anti-herói; resulta de pesquisas de documentos raros ou jamais divulgados; e, finalmente, gera uma polêmica no mundo real, de preferência ao causar indignação em instituições consolidadas. Eco, ateu agnóstico, aprendeu a divertir os leitores mexendo nos nervos de entidades como a Igreja Católica e a Maçonaria. Em O nome da rosa, ele questionava a infalibilidade do papa. No romance seguinte, O pêndulo de Foucautl (1988)  lançava dúvidas sobre o esoterismo das sociedades secretas. Rejeitando a própria receita, buscou assuntos menos controversos nos anos 1990 e 2000. Seus três romances posteriores – A ilha do dia anterior (1994), sobre um náufrago desmemoriado no século XVII, Baudolino (2000), peripécia medievalesca, e as memórias de infância A misteriosa Chama da rainha Loana (2004) – nada continham do estilo com que fez a fama, e quase deixou de ser visto no mercado como best-seller.

                Eco evitou, assim, cair na armadilha da fórmula que descobriu. Mas criou um vazio, que logo foi preenchido por diversos seguidores (leia quadro abaixo). Pelo menos um deles, o americano Dan Brown, superou o mestre em vendas com o romance O código Da Vinci (2003), aventura estrelada, aliás, por um semioticista como Eco, Robert Langdon.  O romance vendeu 80 milhões de exemplares. E causou fúria entre os católicos, já que defendia a tese de que o catolicismo se fundamentaria no culto à deusa Vênus. Os smart thrillers atuais não são e nem pretendem virar obras de arte. Fazem parte da área do entretenimento. Talvez mordido pelo êxito de seus epígonos, Umberto Eco volta à carga em O cemitério de Praga. Com o livro, deseja provar que o suspense erudito deve avançar em ousadia e controvérsia, e chegar perto do que a crítica denomina alta ficção – sem, no entanto, abdicar das grandes vendagens.

                Eco também mostra que é possível voltar a fazer sucesso de escândalo. Jornais católicos e entidades judaicas denunciaram o antissemitismo do livro, parte dele narrado em primeira pessoa, contada pelo antissemita Simone Simonini, um notário com dupla personalidade: ele também responde pelo nome de padre Dalla Piccola. Eco defendeu-se em entrevista a Claudio Magris, no Corriere delal Sera, valendo-se do argumento do narrador não-confiável. : “O que coloco em cena é o discurso do antissemitismo, e é ele que persegue meu Simonini, que ‘vende”os judeus como fantasma, como um Outro que é necessário imaginar para reforçar a sua identidade nacional ou provinciana.”  Lucetta respondeu: “Não se denuncia o antissemitismo assumindo a parte dos antissemitas”.

                Talvez seja exagero levar tão a sério uma obra de ficção. Simonini conta uma história que parece ser, a um só tempo, antissemita, anticlerical, anticomunista e anticapitalista. O cemitério de Praga é uma fantasia cômica sobre a paranoia e os complôs que envolveram as revoluções de 1830 e 1848, o Risorgimento italiano, o Caso Dreyfus na França e o antissemitismo do fim do século XIX. O móvel da trama é a elaboração de O protocolo dos sábios de Sião, texto que “documenta” a reunião dos rabinos mais poderosos da Europa no cemitério judaico de Praga em meados do século XIX, com o fim de destruir a fé cristã e as instituições morais e econômicas do Ocidente.  O documento, publicado em Moscou em 1897, tornou-se popular, até ser desmascarado por uma série de reportagens do jornal The Times de Londres em 1925. O jornal descobriu que o texto havia sido criado pela Okhrana,  a polícia secreta do czar Nicolau II, para justificar a perseguição dos judeus na Rússia. Os redatores do Protocolo se basearam em uma série de panfletos antissemitas que remontavam aos tempos de Napoleão. A base oi  “O diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu” (1865), de Maurice Joly, de 1865 – personagem do romance, junto a uma galeria de vultos históricos. 

                Eco afirma no posfácio que todos os fatos são reais, exceto Simonini, talvez o personagem menos absurdo do romance. Ele jura sua missão é salvadora, que foi roubado por Joly e vem a ser o verdadeiro autor do Protocolo. A diferença está no seu alvo: em vez dos judeus, ele retratou o encontro dos jesuítas no cemitério, para dominar o mundo. Depois,  refalsificou a própria falsificação, a mando da Okhrana. Em 1860, mora na cidade natal de Turim, quando é chamado pelo papa para conspirar contra Garibaldi e a unificação da Itália. Em 1897, exilado em Paris, tem delírios xenófobos, ao mesmo tempo que, à noite,  transforma-se no jesuíta Dalla Picola para frequentar os lupanares, as casas de jogos e missas negras patrocinadas pela maçonaria e os judeus. O discurso de Simonini é tão virulento contra tudo, todos e ele próprio, que provoca risos. Ele entremeia suas diatribes com intermináveis listas de receitas de iguarias. Tudo ilustrado com gravuras extraídos dos jornais sensacionalistas do tempo.

                No enredo que oscila entre fatos e fantasias, o escritor atingiu um nível inédito de cenas de ação e invencionices misteriosas. “Inventar histórias acontece em toda parte”, disse. “Por isso, ainda hoje os dossiês secretos são compostos unicamente de recortes de jornal, e quase sempre de jornais sensacionalistas – os folhetins dos nossos dias.” Assim, revolvendo o desejo de sensações novas do leitor, Umberto Eco mostra que ainda é o papa do suspense erudito.

O historiador (2005)  – Elisabeth Kostova . A autora americana imagina que Drácula, aos 500 anos, tornou-se historiador do Leste Europeu. Enquanto discorre sobre suas fontes, distribui dentadas nos ouvintes

O Códex 632 (2005) – O português  José Rodrigues dos Santos vendeu 200 mil exemplares de um trhiller sobre um documento que revela um segredo que altera a visão de mundo da humanidade: o descobridor Cristóvão Colombo não era genovês, e sim português.

  

Os crimes do mosaico (2004). O professor romano Giulio Leoni ambienta um ciclo de quatro romances de crime na Florença da Idade Média. O detetive que investiga os casos é o poeta Dante Alighieri 

O símbolo perdido (2009) – Dan Brown repetiu o sucesso de O Código Da Vinci, desta vez investigando os mistérios em torno das origens maçônicas dos fundadores dos Estados Unidos

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