sábado, 1 de dezembro de 2012

O livro de digital se afirma no Brasil

Por que o atraso na chegada leitores digitais e e-books ao Brasil pode ser positivo para o leitor

 

Demorou, mas agora vai. O Brasil entra na era do livro digital com três anos de atraso.  A chegada ao país dos e-readers como os americanos Kindle, da Amazon, e Nexus 7, do Google, iPad, da Apple, e do canadense Kobo, trazido pela livraria Cultura, vai transformar rapidamente o mercado do livro. Não é preciso ser profeta para adivinhar o que está por vir, pois tudo já aconteceu nos mercados adiantados da América do Norte, Ásia e Europa. No entanto, o atraso no processo também tem suas vantagens. Vamos entrar na nova era em pleno período de compras de Natal com um acúmulo de conhecimentos. Podemos aprender com os erros e os acertos cometidos pelos outros.

Muitos brasileiros têm experimentado os efeitos da mudança. Os estudantes leem desde meados da década de 1990 livros pela internet pelos computadores convencionais, via sites como Gutenberg Project e Domínio Público. Agora poderão fazê-lo nos e-books e tablets com mais rapidez e conforto. Há cerca de 300 mil clientes moradores no Brasil cadastrados na Amazon e muitos deles compram e-books e possuem kindles, para não mencionar os milhares que carregam livros das lojas iBook e Amazon para seus tablets.

Contaram no atraso o “custo Brasil” para a implantação de empresas estrangeiras em território nacional e o corporativismo local: as editoras refrearam o processo porque temiam um colapso do mercado por causa da redução excessiva do preço médio do livro digital. Agora, as editora organizaram-se e fundaram a DLD (Distribuidora de Livros Digitais) e chegaram a uma percentagem razoável de 30% a menos que o preço de capa do volume em papel. Resultado: o livro digital no Brasil vai sair mais caro que no estrangeiro, algo que já acontece no papel. Nos Estados Unidos, a Amazon passou a vender os leitores digitais a menos de US$ 100 – e achatou o preço dos livros a uma base de US$ 9,90. Os autores e editores reclamaram no início, mas agora estão ganhando dinheiro nas vendas por atacado. E muitas vezes a Amazon, Kobo e Barnes & Noble (com seu e-reader Nook, que deve também aportar no Brasil) promovem liquidações de títulos. Todo mundo ganha, até o consumidor. Não sei se isso vai se repetir no Brasil, mas seria bom aprender com a experiência.

Por enquanto, o preço médio do e-book no Brasil ronda R$ 30. O leitor digital Kobo custa R$ 399 – um valor ainda alto, até porque a Amazon pode entrar no mercado vendendo o Kindle Paperwhite a cerca de R$ 220. Tomara que esses preços caiam. E isso já pode acontecer depois das festas de fim de ano.

Entre as consequências imediatas da consolidação dos e-books no Brasil, as principais são quatro: a queda do preço dos títulos, o fechamento de grandes cadeias de livraria (a Livraria Cultura se vacinou contra isso, associando-se à Kobo), a obsolescência das bibliotecas públicas e particulares e o uso intenso de leitores digitais em salas de aula e instituições de pesquisa. As bibliotecas públicas passarão por um processo de digitalização. As que não fizerem isso serão sucateadas pelos governantes, sob o pretexto de que deixaram de ser úteis. O livro em papel não irá desaparecer, mas tenderá a se transformar em um objeto de colecionador, em um fetiche interessante, ainda que dispensável. Há também, a longo prazo, a possibilidade de os sebos populares de rua fecharem. Restarão os antiquários, que deverão praticar preços altos. Como disse meu velho amigo Germano, dono da Livraria São José do Rio de Janeiro, “livros digitais não envelhecem”. E, por isso, não são produtos apropriados para sebos. Ou será que algum geek vai dar um jeito de inventar o sebo de e-books? É bem provável. 

Assim, os e-books já abalaram os hábitos de leitura e o modo como o leitor se relaciona com os textos. Ele vai se beneficiar imediatamente com a oferta de milhões de títulos, milhares em português. Vai ler mais do que nunca, o que irá obrigar os autores a produzirem seus livros em maior velocidade. Também os leitores tenderão a se esquecer mais rapidamente do que leram, pelo volume e oferta de material.

Diante dos aspectos positivos e negativos que a nova tecnologia acarreta, a lição a aprender desde já é aprender a selecionar o que ler. Quando tudo está disponível, nada mais fundamental que escolher aquilo que é importante para a formação e o aperfeiçoamento do indivíduo em determinado contexto. E manter a atenção nas páginas virtuais, algo que está se tornando cada vez mais difícil com os apelos que vêm, por exemplo, dos tablets.  A diferença entre ler no papel ou na tela é que o texto em papel prende o leitor à página, ao passo que o hipertexto da tela o deixa mais livre, solta-o e o faz saltar de um link a outro, e facilmente saltar do texto para o som e o vídeo. O texto estimula a memória, o hipertexto dispersa. Enfim, para enfrentar as mudanças que já chegaram, o leitor terá de reaprender a ler.

 

 


Luís Antônio Giron

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O ser e a bola


Como o futebol pode se apoderar da alma do torcedor – e constituir sua personalidade

 

                Um amigo tenta me consolar do rebaixamento do Palmeiras à segunda divisão: “Ainda bem que você tem outros times para compensar!” É verdade. Como muitos meninos criados no interior do Brasil, adotei um time para cada Estado da federação. Assim, já que minha cidade não contava com possíveis campeões (havia um revezamento de troféus entre os dois times de Porto Alegre), eu mantinha meu interesse à distância pelo futebol. 

                Em São Paulo, calhou de meu time ser somente o Palmeiras, um dos símbolos da imigração italiana no Brasil. Mas tenho times espalhados pelo Brasil e pelo mundo, não vou citar todos aqui. Fico apenas com o Rio de Janeiro. Houve um tempo em que adotei quase todas as equipes cariocas, já que eu promovia campeonatos de botão com os amigos na condição de “treinador” dos times cariocas disponíveis. Em relação ao campeonato do Rio, portanto, tornei-me ecumênico, pois gosto de todos. Consigo ser Vasco, Fluminense e Flamengo ao mesmo tempo, bem como Botafogo, Bangu e América.

                O que eu quero dizer é que possuo uma espécie de defeito de personalidade porque não me prendo visceralmente a nenhum clube, embora torça por alguns. Em futebol, meu coração é leviano. Eu colecionava figurinhas de todos os times. Sou de um tempo em que amigos e suas famílias iam aos estádios com camisas de times diferentes, torcendo no mesmo espaço por times rivais. E ninguém se matava ou matava os outros por isso. Com o tempo, os torcedores foram forçados a se transformar em fanáticos. Enquanto isso, cresci e me interessei por outros assuntos além do futebol. Mas ele permaneceu, como o menino permanece no homem.

                Hoje, torcer consiste em uma ação bem diferente daquela de minha infância. Torcer é “ser”. Assim, “ser” palmeirense em São Paulo, sobretudo nos últimos meses, significa apreciar as grandes tragédias, purgar os pecados nas chamas da derrota, rastejar em tempos difíceis e sair purificado ao final. No domingo passado, a assistir pela televisão a mais uma derrocada palmeirense, preferi ouvir uma ópera completa, O crepúsculo dos Deuses, de Richard Wagner, na versão “mozartiana” de Karl Böhm. Ao mesmo tempo que terminavam os últimos acordes - que marcam o fim dos deuses e o nascimento da humanidade – ouvi ao longe os fogos da torcida adversária, locupletando-se com a derrota alheia. Não atendi ao telefonema de meu cunhado santista, para não ouvir zombarias. Depois, no Twitter, algum gaiato postou: “Palmeirenses, tranquem as portas e fiquem em casa porque vamos festejar e arrebentar quem usar camisa verde”. Quase fui obrigado a me sentir humilhado, ofendido e acuado. 

                A razão, no entanto, veio me socorrer. Em vez de sair para berrar ofensa ou me mortificar, passei a refletir sobre como o futebol no Brasil não apenas faz parte da vida das pessoas, como sobretudo  constitui o sujeito, para roubar um termo de psicanálise. Assim como Jean-Paul Sartre diria que o ser precede a essência, eu me arrisco a dizer que no Brasil e em outros países a bola precede o homem. O futebol, em especial o time, fornece as características do que constrói o sujeito. E, numa tosca paráfrase a Thomas Hobbes, o homem é o time do homem.

                A tradição de glórias e derrotas de uma equipe e futebol deve necessariamente pesar sobre os ombros do torcedor. Ser palmeirense é assumir a pungência da tragédia. O palmeirense é o novo sofredor diante da força do destino (é um título de ópera aliás). Ocupa o lugar deixado há muito tempo pelos coritintianos. Da mesma forma, ser corintiano hoje impõe ao ser do torcedor uma certa dose de grandiosa insanidade. Quando a Fiel grita que é um bando de loucos, não é só força de expressão. Trata-se da manifestação de uma crença arraigada na essência de cada um dos integrantes do grupo. Pertencer a uma torcida implica compartilhar cores, valores, origens, amizades, amores e idiossincrasias. É odiar os mesmos inimigos. É matar e morrer por esses “ideais”. Daí o surgimento das agressivas torcidas organizadas, que também podem reencarnar no Carnaval, com suas facções fantasiadas de escolas de samba.

                Os reflexos da ontologia da bola acontecem até na vida amorosa. A comédia O casamento de Romeu e Julieta, de 2004, transforma a rivalidade entre as famílias Capuleto e Montecchio, de Verona, para as torcidas corintiana e palmeirense. Um corintiano pede uma palmeirense em casamento, mas precisa se disfarçar de verde para agradar ao sogro, dirigente do Palestra Itália. Conheço uma situação parecida: um casal de namorados, ela palmeirense, ele corintiano, que muitas vezes têm problemas de relacionamento por causa do fanatismo de um e outra. Uma coisa será impossível, infelizmente: vê-los em um setor de qualquer estádio, juntos, namorando, cada um com sua camisa, como teria sido comum em meados do século passado. Torcidas e amor, torcidas e diversidade são termos incompatíveis. As torcidas organizadas – e mesmo as não - se transformam em falanges de uma guerra perpétua e inexplicável. Pertencer a um time significa satanizar aqueles que não pertencem à falange.

                A que se deve tal situação? Talvez à degeneração dos valores humanos e culturais, fenômeno que se repete e se torna mais dramático nos estádios de futebol.  Assim, o fanatismo clubístico é tanto um fator de união como de cizânia social. Sigmud Freud e Elias Canetti ensinaram que a psicologia das massas é irracional e causadora de tremendos conflitos. O fanatismo não tem outro sentido que estimular o ódio e o ressentimento ao “outro”. Esse tipo de mobilização em torno de uma ideia, ainda que clubística, já mostrou ser deletério. É algo próximo ao fascismo, e as torcidas organizadas são as atacantes do processo.  Como ensinou o Filósofo das Quatro Linhas: “Futebol é futebol – e vice-versa”. Ou, pelo menos, deveria ser assim. O problema é que ele pode deixar de ser só futebol para transbordar para outras áreas. Feito um regime totalitário, por exemplo, o futebol se apodera do sujeito. O esporte atua como um invasor de almas. Sob a capa de cultura, ele vampiriza a vontade e anula a iniciativa do torcedor.

                Você, palmeirense, já pensou em não ser palmeirense por um dia, por uma semana? (neste momento, seria aconselhável). E você, são—paulino, santista, gremista e outros, que tal passar umas horas sem encarnar o time, sem pensar nele? Eu, que me cultivei na admiração ecumênica por vários times, acho isso natural e saudável. Não consigo entender a mentalidade de “onda” com que alguns indivíduos cultivam a própria personalidade. Afinal, futebol não é tão importante assim para compor a maneira de viver, pensar e se comportar de qualquer indivíduo. O ser precede a bola - e é maior que ela.

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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Quem é Mick Jagger mesmo?

Uma biografia mostra que o roqueiro transgressor não passou de uma criação de palco – e que ele é um modelo de ambição, disciplina – e gosto por sexo

Quem vê hoje os shows de Mick Jagger pode não perceber que a figura  salvagem do mito do rock dos anos 60 não passa de uma construção de palco. Por trás do desempenho frenético do vocalista da banda inglesa The Rolling Stones, com seu ar de adolescente malcriado, oculta-se um senhor de quase 70 anos, dado a atitudes esnobes e hábitos aristocráticos, amante do luxo e de sexo, pai severo de sete filhos e avô de duas crianças, acostumado a manter um código de etiqueta escrito na era vitoriana para ser aplicado por sua criadagem nas suas diversas mansões e palácios espalhados pelo mundo.

Para decifrar o enigma das duas imagens conflitantes de Jagger e m revelar a sua face humana e íntima das máscaras que ele criou para si próprio, o escritor inglês Philip Norman levou três anos escrevendo a biografia Mick Jagger (Companhia das Letras, 624 páginas, R$ 49,50 ). “Na verdade, passei minha vida inteira escrevendo sobre duas bandas dos anos 60 que formam uma única saga: Beatles e Rolling Stones”, afirma Norman à Época. Aos 69 anos, ele foi jornalista de música e conheceu esses artistas no início de suas carreiras. Escreveu um livro sobre a história dos Beatles, em 1981, e a consagrada biografia John Lennon: a vida, em 2009. “Mick merecia uma biografia por ser a figura central da contracultura que explodiu em Londres em meados dos anos 60”, diz. “A ‘swinging London’ que rompeu a crosta vitoriana da cidade não teria sido a mesma sem o talento de Mick de fazer de si próprio o símbolo maior daquele tempo, uma espécie de Tirano do Cool, de lançador de modas e de padrões de gosto.”

Norman esperou por uma efeméride, os 50 anos da estreia da banda, para publicar a biografia, feita a partir de pesquisas e entrevistas. O paradoxo saltitante Mick Jagger e banda estarão de volta às turnês em novembro, quando os Stones iniciam a turnê 50 and counting, para comemorar o cinquentenário da banda. Eles lançam a coletânea Grrr!, com sucessos da carreira.  A comemoração está atrasada em relação à estreia dos Stones, em 16 de julho de 1962. Houve muita discussão entre os quatro membros da banda até chegar a um projeto viável. Eles formam a empresa de rock mais lucrativa do mundo e encaram a banda como tal.  De 1999 até 2011, os Stones ganharam 2 bilhões de dólares. Jagger deu a última palavra. Alguém esperaria menos do “Tirano do Cool”?

“Os Stones são um fenômeno de longevidade graças Mick,”, diz Norman. “No início, era um conjunto instável, que contou com mortes e a saída de dois integrantes, além do envolvimento com drogas e fugas do fisco. Não tinha nada para se manter. Foi o gênio de organizador de Mick que segurou os Rolling Stones ao longo dos anos. Além de seu talento artístico.” Segundo Norman, o problema de lidar com uma personagem pública como Mick é que ninguém sabe quem ele é, apesar de pensar que sabe: “Ele não ostenta duas faces, mas um número quase infinito delas. São tantas as camadas que ele justapôs ao próprio rosto que nos perdemos na tentativa de desmascará-lo. Ele conseguiu manter seu verdadeiro eu, bem mais complexo e interessante que suas máscaras”.

A personalidade de Mick resultou de sua formação tradicional. Ele contraria todos os estereótipos das celebridades da cultura pop, que construíram seus mitos a partir da pobreza, da rejeição e da privação. Michael Philip Jagger nasceu em uma família convencional de classe média, de pais devotados. A mãe, Eva,  uma esteticista australiana, despertou nele o gosto pela aparência. O pai, Joe, professor de educação física, orientou seus dois filhos, Mick e o caçula Chris, a cultivar o corpo. Mick contou com o apoio deles para seguir sua carreira quando passou na prestigiosa London School of Economics. E não tiveram como reclamar quando o garoto trancou a matrícula, já que ele era capaz de demonstrar que se tornaria milionário, no improvável papel de cantor de uma banda de blues.

Quando o estrelato chegou como a consequência de um silogismo lógico, Mick sobreviveu às tentações de seu tempo: as drogas pesadas e a militância política. Enquanto sua namorada, Marianne Faithfull, entregava-se à heroína e seus companheiros de banda Keith Richards e Brian Jones ao LSD, ele provava sem se jogar nelas. “Mick não gostava de fato de drogas”, diz Norman. “E não se viciou.” Quando todos os artistas daquele tempo participavam de passeatas pacifstas, Mick assistia a tudo de óculos escuros... e de longe.

Seu fraco sempre foi sexo. Hoje ele seria chamado de doente, mas os seus dois casamentos e centenas de casos com homens e mulheres parecem ter lhe servido como elixir da juventude.  “A carreira sexual dele é tão espantosa quanto a musical”, afirma Norman. “Ele se habituou a viver como um adolescente que não precisa tomar providências chatas da vida. E se acostumou a tratar as suas mulheres como lixo, até porque temia que muitas delas lhe roubassem o dinheiro. Mesmo assim, mostrou ser um pai a um só tempo disciplinador  e divertido. Seus filhos o adoram.”

Entre as descobertas de Norman, destacam-se três. A primeira é que Mick e Keith foram injustiçado pela polícia britânica. Além de serem acusados em 1966 de porte de drogas por meio de uma droga plantada por um tabloide, a estada deles em duas prisões diferente, ambas reconhecidas pelas condições terríveis, foi traumatizante. “Eles sofreram violência lá dentro”, diz Norman. A segunda diz respeito á onda de violência durante o show do autódromo de Altamont, em 1969. Mick foi culpado de proteger o bando  Hell’s Angels em seus atos de violência, que culminaram no assassinato de um jovem negro  por um integrante do bando enquanto Mick cantava. “Mas ele se portou com coragem, enfrentou os Hell’s Angels e tentou conter a violência naquela noite”, afirma Norman. Por fim, o papel do produtor Andrew Oldham na definição da identidade dos Stones também ganha nova luz. Foi ele que ele criou o clima de rivalidade e oposição entre os Stones e os Beatles. E foi fundamental para ajudar Mick a forjar a sua persona indomável.

Lançada em outubro no Reino Unido, a biografia obteve boas resenhas, embora alguns críticos tenham dizo que Norman fez um retrato positivo demais de Jagger. “Ele não se manifestou”, diz Norman. “Mick se comporta como um membro da família real britânica. Nunca responde a pedidos de entrevistas, não se manifesta e finge não se lembrar de nada do passado. Como disse o baterista dos Stones Charlie Watts, Mick não pensa no presente e no passado. Só no futuro. Ele continua o mesmo.

LAGiron

sábado, 20 de outubro de 2012

Hilary Mantel faz história

Em 1975, a jovem Hilary Mantel, de 23 anos, trabalhava como balconista em Manchester, no norte da Inglaterra, quando começou a escrever livros dentro de um gênero tido por ultrapassado: o romance histórico. Na semana passada, aos 60 anos, ela alcançou a consagração definitiva como inovadora desse tipo de ficção. Mantel recebeu, pela segunda vez, o Man Booker Prize, o prêmio literário de maior prestígio do Reino Unido, pelo romance histórico Bring up the bodies (o título pode ser traduzido como “Apresentai os corpos”). Havia ganhado o mesmo prêmio em 2009 pela primeira parte dessa história, intitulada Wolf Hall (publicado no Brasil pela editora Record). Pela primeira vez nos 43 anos do Man Booker, foi premiada uma continuação, e de uma trilogia ainda não concluída. Antes de Hilary Mantel, só outros dois autores haviam sido agraciados duas vezes com o prêmio: o australiano Peter Carey e o sul-africano J.M. Coetzee.

"Você espera 20 anos por um Booker e então dois vêm de uma vez só", disse ela durante a premiação. Esse prêmio costuma causar frisson e rompimentos entre os autores da confraria literária londrina. A surpresa do segundo prêmio a Hilary Mantel aconteceu também porque ela não faz parte desse grupo. Na verdade, despreza a chamada “turma de Bloombsury”, o bairro literário de Londres onde os autores e editores circulam. Ela mora no interior da Inglaterra com o geólogo Gerald McEwen, com quem é casada há 40 anos. Na juventude, ela adoeceu gravemente. Além de problemas psíquicos, ela foi diagnosticada com endometriose e teve de extirpar o útero. Além de não poder ter filhos, engordou de uma forma incontrolável, o que desfigurou sua beleza. Escrever e pesquisar os fantasmas do passado tornou-se uma forma de superar os problemas.

            

Na cerimônia de  entrega do prêmio, o presidente do júri Peter Stothard afirmou que Mantel é “a maior prosadora inglesa moderna em atividade” e “reescritora da ficção histórica”. E, de fato, é uma reescritora. Seus livros contam de novo histórias surradas e fantasiadas, só que de um modo peculiar. Seu primeiro romance, A sombra da guilhotina, concluído em 1979, tratava do Terror na Revolução Francesa, que já havia sido abordado por autores como Victor Hugo e Charles Dickens. Mas, em vez de inventar enredos, a balconista aspirante a literata baseou-se em minuciosas pesquisas que realizou em arquivos históricos e bibliotecas. A partir de então, ela causou uma pequena revolução dentro desse tipo de narrativa. Em vez de tomar liberdades com o passado e idealizar personagens e ações, como o fizeram seus antecessores Walter Scott, Alexandre Dumas no século XIX, e Marguerite Yourcenar, no XX, mostrou que era possível fazer com que episódios históricos muitas vezes repetidos ainda pudessem causar espanto ao leitor contemporâneo sem ser infiel às fontes e nem apelar às fórmulas fáceis.

            “Não invento. Apenas preencho as lacunas deixadas pelos documentos, para tentar explicar um episódio”, disse Hilary Mantel a Época em 2010, sobre Wolf Hall. “Eu acho detestável séries de televisão como The Tudors, que deturpam todos os fatos para torná-los mais atraentes.” A história, afirma, é suficientemente cheia de crimes e traições para dispensar artifícios.  

            Wolf hall aborda uma fatia da era Tudor (1485-1613), marcada por lutas de sucessão, assassinatos e conspirações sexuais. O livro relata a ascensão de Thomas Cromwell (1485-1540), de menino de rua a ministro de Henrique VIII. Nesta posição, ele ajudou a consolidar o rompimento da Inglaterra com o papa Clemente VII e a fundar a Igreja Anglicana. O segundo volume, Bring up the bodies (a ser publicado no Braisl em abril), acompanha os fatos que levaram Henrique VIII, aconselhado por Cromwell, a decapitar sua mulher, Ana Bolena, em 1536, e assim evitar um golpe de Estado.  “É um livro mais interessante que Wolf Hall, porque sua trama transcorre em apenas nove meses”, disse Mantel em entrevista ao jornal The Guardian, logo depois de receber seu segundo Man Booker Prize. “O enredo prende a atenção dos leitores com sua lógica insofismável.”

            Ela está escrevendo a terceira parte da saga de Cromwell, a sair em 2013, intitulada The Mirror And The Light ( O espelho e aluz). O volume vai contar a queda de Cromwell, levado ao patíbulo por Henrique VIII como traidor corrupto. “Não será um romance tão interessante como Bring up the Bodies”, disse Mantel ao Guardian, mostrando que não se dobra aos efeitos fáceis da ficção. “Mas é o epílogo real da história fascinante de Cromwell.”

 

sábado, 1 de setembro de 2012

Candidatos pokémons

Jovens fazem campanha política usando heróis de desenhos japoneses. Eles resgatam ou estragam as utopias infantis?

LUÍS ANTÔNIO GIRON1


Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV (Foto: ÉPOCA) 

Aristóteles dizia em sua República: “O homem é um animal político”. Mas isso foi 24 séculos atrás. Hoje esse animal político se transformou em um ser fantástico: encarna o visual e adota as ideias de super-heróis, mascotes virtuais e personagens de desenhos animados, tanto dos animês japoneses como das histórias de Walt Disney. Sim, era inevitável: chegou a hora dos filhos do monstrinho Pikachu, seus amigos e concorrentes entrarem na política. A geração de candidatos de 18 a 25 anos dá início a suas campanhas em todos os cantos do Brasil. Muitos desses jovens nutridos na internet, no videogame e na cultura pop assumiram o ideário – se pode ser chamado assim - das histórias que amaram na infância e na adolescência. Eles pertencem a diferentes partidos e divulgam seus programas políticos em jingles que usam indevidamente material da cultura pop veiculados pela internet, e já começam a ficar famosos por seus autoproclamados superpoderes. Obviamente, o objetivo deles é arrebanhar o eleitor jovem. Um número enorme de internautas da mesma idade deles formou exércitos de seguidores. Outros, mais críticos, acham que esses aspirantes a políticos andam estragando os símbolos de suas infâncias. Quem votar verá no que essa geração vai dar.

 Há dezenas de exemplos, mas vou me limitar a três candidatos à vereança em seus respectivos municípios, cada um com seu super-herói padroeiro.

Thalison Mendes, de 20 anos, joga-se pelo PSL (Partido Social Liberal) na campanha à câmara dos vereadores de Rio Claro, estado de São Paulo, com uma plataforma tão ousada como bizarra: ele se apresenta como o “candidato Pokémon”. No YouTube, o “santinho” de Thalison é animado pelo “Hino do Pokémon”, o prefixo musical do desenho animado japonês Pokémon, uma franquia da Nintendo, que ficou famoso a partir de 1996, só que com letra trocada. Diz a letra do jingle (acompanhe mentalmente com o “Hino de Pokémon”):

“Para fazer Rio Claro crescer
Já sei em quem vou votar
É juventude no poder
Juventude e experiência
É hora de repensar
Essa escolha a nós pertence
Para a história arrepiar
Thalison, temos que votar
Eu sei, é nele que eu votarei (...)”

 

Assim, a invenção do designer de games japonês Satoshi Tajiri agora é usada para vender a imagem de Thalison, um moço impoluto, capaz, como o herói Ash, de transformar Rio Claro em um campo de batalha infinito do Bem contra o Mal e seus habitantes, em monstros de bolso (“pokémon” é a abreviação da expressão em inglês “pocket monsters”) fadados a incalculáveis metamorfoses, como Bulbassouro, Hypno, PsyDuck, Toguepi – e, naturalmente, Pikachu, inspiração maior para o candidato, cujo currículo – que cabe no seu twitter @mendesthalison –, inclui, além de horas na frente da televisão, a “gestão de pessoas” e a presidência do Grêmio Estudantil de seu ginásio. Ele promete “arrepiar” a história do município. Como será o dia seguinte de Rio Claro depois do choque da ideologia Pokémon? Logo saberemos.

Outro candidato de sucesso agita a cidade de Parnamirim, no Rio Grande do Norte é Tiago Dionísio, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). O professor de matemática, humorista e artista plástico de 18 anos já teve mais de 500 mil acessos no YouTube com seu jingle político, baseado no prefixo musical do animê japonêsDragon Ball Z. A adoção desse animê conhecido por seu alto grau de violência partiu de uma visão crítica de Tiago em relação à tendência atual da campanha em parodiar músicas de sertanejo pop de Michel Teló, Gusttavo Lima e da dupla João Lucas e Marcello. Lembrando que o candidato à prefeitura de São Paulo José Serra lançou, nesta semana, a versão de sua campanha para a música "Eu quero tchu, eu quero tcha". “Sou jovem e fui muito fã do Dragonball Z”, diz Tiago. “Eu estava cansado de ‘tchutchathá’ e usei uma música de minha infância.“ Ele canta em seu jingle que é a solução para o caos urbano do nordeste:

“Nós podemos ver que Parnamirim está um caos
Mas uma pessoa pode nos ajudar
Com seus projetos vamos para a frente
Sua disposição nós dá força para lutar
Em Tiago temos que votar
É um jovem justo e bem melhor que os que já têm
Todos juntos vamos triunfar!
Com Tiago juntos vamos prossegir
Vamos vencer”

 

Como no desenho e no mangá Dragon Ball Z, Tiago Dionísio se apresenta como pertencente à etnia extraterrestre dos Saiyajins, a mesma da qual faze parte o herói Goku, que combate o vilão Vegeta, androides perversos da força Red Ribbon e outros malvados interplanetários. Como Goku, o sayajajin Tiago Dionísio pretende se tornar o protetor não apenas de Parnamirim, como de todos os terráqueos. Para isso, promete implantar polos de ensino gratuitos em todo o planeta. Assim como Goku se vingou da matança de bilhões seres ao derrotar o bandido espacial Freeza na batalha do planeta Namek, Tiago quer eliminar a violência por meio da educação, sem fugir à luta. Sua popularidade na internet já lhe rendeu participação de programas de televisão e o status de celebridade geek nas redes sociais. Haverá um Vegeta ou um Freeza capaz de detê-lo? Pouco provável.

A nova cepa de candidatos não se limita a ferver em municípios progressistas como São Carlos e Parnamirim. Do sertão da Bahia surge Thonga, fã da série Cavaleiros do Zodíaco, a série de animês japoneses criada originalmente em mangá em 1986 pelo desenhista Masami Kurumada. Thonga (pronuncia-se “tchonga”) concorre à vereança pelo PMDB na cidade baiana de Conceição do Coité. Em vez de rezar pela cartilha de Ulysses Guimarães e outros ideólogos ancestrais do partido, o jovem Thonga prefere pensar na política como uma luta dos cavaleiros (“santos”, no original) zodiacais pela defesa do domínio da deusa Atena sobre os usurpadores do Olimpo. Atena, a deusa da justiça e da razão, inspirou Thonga a adaptar a canção “Pegasus fantasy” da banda de heavy metal Angra para o desenho Cavaleiros do Zodíaco. Acompanhado por um guitarrista de estilo heavy metal, Thonga surge no YouTube aos gritos, entremeando exclamações como “yeah!”:

“Para não errar no dia da eleição
Escolha quem vai fazer a cidade entender
Este cidadão quer nos proteger
E bolar as idéias e forças para mudar
Eu voto em Thonga
Eu voto para mudar
Coração sonhador 
Vou revolucionar
Vamos votar
Em quem sabe fazer
Oh, yeah!
Vamos votar, unir as nossas forças
Thonga, vamos vencer. Yeah!“

 

As palavras “yeah!”, “revolução” e “juventude” e a plataforma de luta do bem contra o mal se repetem nos jovens candidatos pokémons. E contagiam as campanhas dos mais velhos. O prefeito Toinho Barbosa (PTB), candidato a reeleição em Igaci, Alagoas, vale-se da canção do desenho He-Man, de 1983, e o slogan “Eu tenho a força”? “Ele é a força / da Igaci / vamos amigos / unidos venceremos a semente do mal”, diz o jingle, em ritmo de tecnobrega. Toinho sonha em ser Mestre do Universo (não esqueçamos que He Man pertence à série Masters of the Universe) em Alagoas e adjacências. No interior de São Paulo não parece ser diferente. A pedagoga Tia Nei, com 21 anos de experiência em pedagogia infantil, aspirante a vereadora dos Democratas (DEM) na cidade paulista de Guararapes, vale-se de um trecho inteiro do desenho animado Rei Leão, dos estúdios Disney, para preconizar sua infalibilidade. A canção “Hakuna Matata”, cantada por Timão, Pumba e Simba, é dublada como “Na urna é batata”: “Na urna é batata/ meu voto eu já sei/ É a tia Nei/ Você vai ver/ Os seus problemas/ ela vai resolver/ Na urna é batata/ Agora sim: 25555”.

Dessa forma, em clima de fim de mundo, os jovens candidatos ensinam aos mais velhos o caminho do triunfo sobre o lado obscuro da força. Eles demonstram que o vazio do idealismo e das utopias deixados pelas gerações passadas pode ser preenchido por uma concepção heroica e bélica da existência. No mundo de Ash, o menino guerreiro dono de Pikachu, não há lugar para cinismo ou a busca de lucro fácil. Também os Guerreiros do Zodíaco e Goku, de Dragon Ball Z, não baixaram o planeta Brasil para apenas divertir. Eles prometem combater as quadrilhas que vierem a assaltar o Estado e entronizar a juventude no governo. No dia 4 de outubro, vão mostrar a eficácia de seus superpoderes. Se existem meninos e meninas que acham que eles lhes roubaram a infância, não é por culpa dos candidatos. Mangás, videogames e animês impregnaram as novas gerações não apenas da vontade de comprar produtos. Eles carregam lições de filosofia de vida e ação social. Por isso, dias de arrepiar estão por vir. E não vou me espantar se nas próximas eleições aparecer Optimus Prime, o protagonista da sérieTransformers, como forte candidato à Presidência da República. Então teremos de reformular mais uma vez Aristóteles para dublá-lo e fazê-lo dizer: “O robô é um super-herói político”.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Um clássico renasce com o erotismo

Um músico religioso do século XVI faz sucesso ao ser citado na saga pornô Cinquenta tons de cinza

LUÍS ANTÔNIO GIRON

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Pouca gente conhece o compositor inglês Thomas Tallis. Ele viveu no século XVI e escreveu predominantemente música religiosa, em especial motetos polifônicos, peças corais compostas para várias vozes. Anastasia Steele, a jovem protagonista do romance erótico Cinquenta tons de cinza, da escritora britânica E.L. James, também nunca ouvira falar de Tallis. É apresentada a ele pelo bilionário Christian Grey, seu namorado e iniciador nas artes do sadomasoquismo, bem no início do romance. Eles estão andando de carro, e Anastasia pergunta a Grey sobre seus gostos musicais. “Sou eclético, Anastasia, gosto de tudo, de Thomas Tallis a Kings of Leon. Depende do meu estado de espírito.” Ela confessa que não sabe quem é Tallis. “Vou pôr para você ouvir uma hora dessas. É música coral sacra da época Tudor”, diz ele. “Parece incomum, mas também é mágico.’’

cinquenta tons de cinza (Foto: divulgação)ANTES TARDE
Montagem com a capa do álbum do grupo inglês The Tallis Scholars. O disco faz sucesso no iTunes depois de 27 anos do lançamento (Foto: divulgação)

A segunda vez que Tallis aparece é numa fase avançada da educação de alcova de Anastasia. Ela atinge o orgasmo mais intenso e agonizante de sua vida, ao ouvir uma peça coral polifônica – vendada, com fone de ouvido, em meio ao sexo com Grey. “Vozes seráficas...‘Que música era aquela?’, murmuro quase inarticuladamente. ‘Chama-se Spem in alium, um moteto de Thomas Tallis’. Eu fiquei... deslumbrada.”

Bastaram essas duas menções para a peça coral de Tallis chegar às paradas de sucesso. Como o livro de E.L. James tornou-se o maior best-seller mundial da temporada, com 31 milhões de exemplares vendidos em língua inglesa – e 200 mil na tradução em português, lançada há três semanas –, uma fração de seus leitores curiosa em ouvir aquela música tão angelical como estimulante foi suficiente para transformar Tallis, com quatro séculos de atraso, em astro das paradas de sucesso.

No romance, a obra religiosa do austero Tallis é usada para animar perversões sexuais 

Spem in alium ocupa a lista de faixas clássicas mais vendidas do site iTunes e conquistou as paradas britânicas. A gravação que mais faz sucesso foi realizada em 1985 pelo grupo londrino The Tallis Scholars. A música ultrapassou as árias de ópera do tenor Luciano Pavarotti. O site Classics On Line, da Naxos, a maior gravadora e distribuidora erudita do mundo, publicou na semana passada uma lista de 50 CDs com obras de Tallis. Segundo o presidente da Naxos, o produtor e crítico alemão Klaus Heymann, os discos de Tallis estão vendendo como nunca.

Abaixo a dublagem

Ela está matando as legendas e a possibilidade de leitura

LUÍS ANTÔNIO GIRON

Basta agora mesmo ligar a televisão ou tentar assistir a um filme em um multiplex qualquer para verificar o óbvio: a maior parte dos filmes em cartaz é dublada. Não se trata de desenhos para crianças. É filme adulto mesmo. Foi o que aconteceu com um casal de amigos no último fim de semana em Osasco. Ao procurar a versão legendada do filme Homens de preto 3, percebeu que só tinha uma opção de horário, e ele já havia passado. Eis aí um novo inédito. Quem quiser hoje ver um filme na versão original terá de achá-lo no circuito de arte ou apertar a tecla SAP da TV. E se resignar em ser considerado parte de uma minoria metida a besta. O novo fenômeno de consumo cultural demonstra que a regressão da leitura se dissemina trágica e velozmente no Brasil. O fim das legendas colabora com a perda da capacidade de entender um texto por parte do grande público.

As razões são de mercado; portanto, insofismáveis. Os estúdios e distribuidoras chegaram à constatação de que as audiências brasileiras estão ficando mais parecidas com as dos Estados Unidos e Europa, preferindo as versões dubladas às legendadas. Em reportagem publicada em ÉPOCA, intitulada A dublagem venceu as legendas, os especialistas concluíram que a plateia tem horror a ler uma média de 30 páginas de texto enquanto vê um filme de ação como Vingadores. Inimaginável encarar um filme francês como Um verão escaldante, de Philippe Garrel, que, só de legenda, corresponde a quase 100 páginas de livro – fora o que não é dito, o que fica nas entrelinhas. Ler é chato, especialmente o que não está escrito (por isso tanta gente odeia Machado de Assis e Samuel Beckett). Ver um filme não pode ser chato, nada pode ser oculto do espectador, salvo um mistério de cada vez, uma virada final para acompanhar o gole de refrigerante. Logo, a solução encontrada foi eliminar o desconforto da vida dos consumidores, e dublar tudo o que for possível, em escala industrial. Cada vez mais seremos forçados a seguir a maioria preguiçosa e emergente do novo Brasil, onde o analfabetismo funcional tornou-se um escândalo tamanho que o governo deveria lançar uma campanha de vacinação contra a ignorância. Mas aqui tudo regride, até mesmo características que pareciam mais evoluídas do que em países de primeiro mundo, como a antiga preferência nacional de ver filmes legendados.

Sinto asco de ir a um shopping center de luxo e observar que ali o público seleto só cobiça pipoca, soda e besteiras dubladas. Mais nojo me dá perceber que não há outra opção. Quem quer legenda que leve um DVD para casa, ou – no caso de São Paulo – vá à Reserva Cultural, um dos raros espaços de exibição de filmes que projeta filmes de arte com som original.

É curioso como está acontecendo uma quebra de hábito centenária no Brasil. Desde os primeiros filmes mudos apresentados em território nacional, nos anos 1900, o público se acostumou a acompanhar a trama com legendas. Com o cinema falado, a prática continuou, mesmo que em outros países isso tenha se alterado. Ouvi muitas histórias de pessoas que aprenderam idiomas estrangeiros apenas assistindo a filmes legendados, ouvindo e lendo ao mesmo tempo. E escutar a voz original dos atores e os sons do ambiente em que o filme foi rodado é uma experiência sensorial única. A combinação de som e legenda é pedagógica. Ensina que assistir a um filme implica um ato de leitura e, em seguida, interpretação.  

Vou cometer um truísmo: ver é ler, e conhecer. Daí as versões dubladas não servirem senão às plateias limítrofes – e aos deficientes visuais, naturalmente. Por isso, não acho que os dubladores devam ser banidos. Ao contrário, o serviço deles é útil e, não raro, artístico. Muitos desenhos animados da Disney ficaram melhores na versão brasileira, mas talvez isso seja menos uma afirmação racional que nostalgia. Atualmente, os dubladores gozam de status parecido com o dos astros que dublam. O público de multiplex consegue reconhecer nas ruas o Brad Pitt, a Angelina Jolie e o Justin Bieber brasileiros. É inútil dizer que os dubladores são coadjuvantes, papagaios da manutenção de um idioma nacional, como o foram os radioatores do século passado. Eles deveriam permanecer à sombra das imagens em movimento, mas hoje se sobrepõem a elas e adquirem uma glória a que não fazem jus. Eles andam cada vez mais criativos e estridentes em suas “interpretações” das falas originais. São em sua maioria cariocas, o que provoca um gostoso estranhamento junto ao público que está além do Leblon. Por que os dubladores cariocas têm o direito de ditar o padrão do idioma nacional falado se o Brasil compreende tantos e tão variados idioletos, pronúncias e cantos? Não deve ter lógica em nada disso. Seria preciso simplesmente refrear o ímpeto dos dubladores dos dois cantos do país em que eles atuam, Rio e São Paulo. Mas o sindicato intervém em benefício da formatação do imaginário.

A moda da dublagem deve ser seguida pela dos audiolivros. Acontece também na Alemanha e nos Estados Unidos o público gostar mais de ouvir história do que lê-las. Daqui a pouco, as grandes cadeias de livrarias – ou o que restar delas, com a concorrência da internet - estarão lotadas de versões sonoras acariocadas e paulistanas de livros os mais cretinos possíveis. Claro que há utilidade nelas. Mas dublagem de livros, como filmes, não substitui a experiência original da leitura. Daqui a pouco será obrigatória a dublagem de óperas (e isso acontece em Londres e Budapeste, por exemplo) e até de concertos. Onde iremos parar? Em lugar algum. Trata-se da convicção dos povos, e contra ela não há nada a fazer. Só resta lutar pelo mínimo de qualidade nos produtos de artes e espetáculos.

Não me confundam com um elitista. Também não quero ganhar popularidade fazendo o gênero bom samaritano e citar os deficientes auditivos, como mencionei os visuais, que precisam das legendas, e que agora estão sendo excluídos de forma injusta e estúpida. Estou falando do público tradicional, comum, que gosta de cultura e de ouvir o som original dos filmes e das séries. Essa parcela antes significativa se reduziu a uma fração irrelevante do consumidor de cinema e televisão. Se agora nós, surdos e cultos, formamos uma patética minoria, precisamos nos juntar sem mágoa para conter a marcha ré das multidões nos teatros que ruidosamente mastigam pipoca, arrotam e manifestam ódio a tudo o que é belo. E correr o risco de linchamento ao dizer: gente, que tal ler de vez em quando uma legendinha que seja?

Sou mais Twitter do que Face

Com a polarização das redes sociais, é preciso optar entre um e outro... ou não

LUÍS ANTÔNIO GIRON


A batalha final entre as redes sociais se aproxima feito epílogo de uma franquia de cinema. As redes mais fracas foram eliminados em escaramuças ocorridas nos últimos dois anos. Orkut, MySpace e outras perderam seus membros e, por conseguinte, a guerra. Na Internet, briga-se não por territórios, mas por exércitos, porque eles constituem a maior riqueza. Exércitos que lutam entre si por mais e mais tropas: talvez os conflitos do passado não tenham sido nada além que isto, a sanha de dominar pessoas. Só que agora tudo acontece no campo aparentemente etéreo da guerra mundial virtual. Nesta altura da saga das redes, os vencedores são o Facebook (ou Face, como dizem os brasileiros em bom português) e o Twitter. O serviço de rede social de Mark Zuckerberg disputa com o microblog de Jack Dorsey a hegemonia de nossas mentes e almas. Tornou-se quase uma guerra de trincheiras. De que lado você está?

A pergunta pode parecer ociosa se consideramos que muitos usuários de uma rede fazem parte da outra. No entanto, observo que uma parcela significativa da turma que usa tanto Twitter como Facebook prefere um serviço ao outro. Existe uma divisão mental e de tipo de usuário. Na verdade, são duas tribos bem distintas, que possuem características e visões de mundo que vou tentar descrever e analisar mais adiante. Antes, vou abordar a história e o estatuto dos dois serviços e identificar seus detratores.

Já disseram que nunca se sabe aonde vai dar uma invenção, porque ela depende do uso que as pessoas fazem dela. Ninguém imaginaria, oito anos atrás, que um site criado para juntar estudantes da universidade Harvard, como o Facebook, chegaria aos atuais 900 milhões de usuários e revelaria às pessoas a dimensão e a qualidade de seus relacionamentos. Ou que um microblog de San Francisco que não se levava a sério em 2006, a começar pelo nome – na definição do cofundador Jack Dorsey, Twitter significa a um só tempo gorjeio de pássaro e “uma manifestação breve de informação inconsequente” – atingiria 500 milhões de membros, entre eles muitos cidadãos inteligentes capazes de expressar visões de mundo e sistemas filosóficos inteiros nos limites dos 140 caracteres impostos por seus donos. Cada um a sua maneira, Facebook e Twitter colaboraram para alterar a história e a forma como lidamos com outras pessoas e com a própria realidade. Por meio deles, surgiram movimentos sociais, rebeliões e focos de resistência democrática, bem como atentados terroristas.

Mas há quem reduza a função política dos dois. O escritor americano Jonathan Franzen me disse em entrevista que duvida que o Twitter foi um fator determinante nos protestos do Irã e do Egito. “O papel das redes sociais em atuar efetivamente no mundo concreto está sendo superestimado”, disse Franzen. “A solução dos problemas das pessoas não está no mundo digital, mas no mundo concreto.” Franzen me disse que jamais irá entrar no Facebook e no Twitter.

Entendo o virgem de internet. É aquele sujeito que acredita que pode manter a reputação simplesmente por se recusar a participar do lindo mundo novo das redes sociais. Eu próprio escrevi tempos atrás uma refutação ao Facebook, e anunciei que ia sair do serviço de Zuck, mas acabei desistindo por pressão social. Família e amigos me forçaram a me emaranhar de novo na teia e, pior que isso, a interagir virtualmente com eles. E acabei imitando o virgem de 40 anos daquela comédia com o Steve Carell: quando, virgem de 50 anos, caí em tentação, e me lambuzei como nunca. Fui incapaz de manter meu voto de castidade digital, e admiro quem consiga. Quando intelectuais como Jonathan Franzen - e Eugenio Bucci, em artigo recente para ÉPOCA - juram que são felizes na condição de dinossauros tecnológicos, sinto-me um rematado pecador. Mas acho que eles mantêm o celibato digital mais como estratégia de militância filosófica do que por uma fé inabalável em que o ser humano possa se purificar longe dos tentáculos da aranha digital. De minha parte, não tenho vocação sacerdotal. Sou curioso demais para manter a reputação ilibada. Como disse o polemista austríaco Karl Kraus: “Conhecer o Diabo sem assar no inferno é algo que conviria a muita gente”. Prefiro queimar no inferno a posar de falso moralista.

E já que me encontro no inferno, vou tentar resistir por estes círculos mesmo, sem perder a argúcia. Uso os dois serviços, mas prefiro o Twitter, por inclinação. Vou raramente ao Facebook, até porque não gosto de fuçar detalhes das vidas alheias e muito menos ainda que investiguem a minha. Eu acho que aí reside a diferença essencial entre quem usa mais o Twitter do que o Facebook: o Twitter é fundamentalmente aberto e público, ao passo que o Facebook oferece ao participante um ambiente supostamente privado. Supostamente porque sabemos que Zuck libera os dados dos usuários a empresas que queiram pagar para utilizá-los para vender seus produtos e serviços. Segundo o militante digital Eli Pariser (no livro O filtro invisível – o que a internet está escondendo de você, Zahar, 252 páginas, R$ 41,75), o Facebook filtra a informação e usa um algoritmo que esconde a maior parte dos seus amigos, destacando aqueles com quem você mais interage. Com isso, o Facebook tribaliza os usuários, tornando sua comunidade um grupo ordenado de pessoas que pensam, se comunicam e têm gostos idênticos entre si. Mesmo assim, ainda acredito que é possível manter a mesmo tempo a privacidade e o perfil no Facebook – bastando para isso ser seletivo e alterar as configurações de privacidade do site. Segundo Pariser, o Twitter é um veículo mais livre e transparente, porque sua regulamentação é tênue e seu algoritmo, totalmente inclusivo.

De alguma forma, o Twitter se parece com os meios tradicionais de comunicação, pois permite que se propaguem informações sem restrições de comunidade. Daí, talvez, os profissionais de comunicação gostarem mais dele do que do Facebook. O usuário pode seguir uma celebridade – e ser seguido por ela – sem filtros. Você pode dar um furo de notícia e se tornar importante da noite para o dia. E também tem a opção de configurar o Twitter para que ele sirva como uma rede superexclusiva, ou então se valer de um pseudônimo para se expressar livremente, sem as amarras de sua condição social e profissional. Eu, por exemplo, tenho duas contas de Twitter, uma aberta e pública, e outra fechada, só para a família. Como interagir com parentes não se parece nem de longe com diversão, minha conta superprivada é quase inoperante. Por curiosidade, a conta fechada é, entre as duas, a que mais recebe solicitações de ingresso. O Twitter se afigura (e se configura) mais ágil que o Facebook e, ainda que não traga aplicativos e páginas atraentes como os do Facebook, permite comunicação com interlocutores específicos e divulgação de fotos instantâneas.

Por tudo isso, o Twitter aparentemente combina mais com pessoas mais despreocupadas e capazes de agir em público com desenvoltura. Quem usa o Twitter corre risco. Parece andar em uma praça, sujeita às intempéries, ao acaso e ao contato das multidões. Faz e recebe críticas, ataca e é atacado. Quando alguém namora pelo Twitter, o faz à vista da massa incógnita – mas não está nem aí para isso. A presumível livre expressão do pensamento faz parte do mecanismo do gorjeio quase infinito, que se dissemina através da retuitagem. Ele fornece a ilusão de que o usuário é popular, pelo número de pessoas que o seguem. Mas até que ponto quem segue leva o que ele diz de fato? Até que ponto os donos do serviço não escondem algo do usuário? É um meio de comunicação imprevisível, caótico e violento. Por isso, sujeito à suspeição.

O usuário de Facebook parece ser mais passivo e inclinado ao convencionalismo. Ele tem um só nome, um só endereços e um só rosto. Seu prestígio não se mede pelo número de seguidores como o Twitter. Ele precisa se sentir protegido e não ser contestado. Ali só existe o verbo “curtir”. Não existe o “discordar”. Isso apazigua os ânimos e torna todos falsamente concordes. O Facebook apresenta um processo de afinidades menos eletivas que forçadas. Lembra um ambiente amplo, porém fechado e controlado. Quem está sob seu teto é obrigado a fazer amigos e se relacionar intensamente com os outros, só que mantendo a discórdia fora da conversa. Bloquear pessoas é o mesmo que ofendê-las para sempre. Até os jogos são consensuais, como montar uma fazenda e atirar em pássaros feitos de bits. O usuário do Facebook adora que Zuck e os outros organizem sua linha do tempo, poste fotos e hierarquize sua rede de relacionamentos.

Para resumir, o Facebook é entediante e fechado tal qual colegas em uma escola, ao passo que o Twitter se apresenta difuso e divertido como um espetáculo a céu aberto. Mesmo assim, há em ambas as redes sociais sempre alguém monitorando o que você diz, faz e pensa, em graus diferentes de vigilância. Isso para mim soa como uma terrível restrição à liberdade. Neste momento, estamos sendo conduzidos a optar por um e outro, e escolher entre a cruz e a caldeirinha. Obviamente, você ainda pode fazer parte dos dois ambientes ao mesmo tempo. Mas, na hora em que um conquistar o outro, para onde irá? Sim, é possível sobreviver sem um deles – e, melhor ainda, viver sem nenhum dos dois. Porque daqui a pouco deverá surgir uma invenção muito mais ardilosa que os tornará obsoletos. A outra alternativa, não de todo desprezível, é voltar a ser virgem de internet. Fica a pergunta: existe virgindidade reversível?   

A vez da Maria Caneta

A Flip não reúne apenas autores, como também personagens em busca de autores. É o caso das tietes literárias

LUÍS ANTÔNIO GIRON

 

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Não tente procurá-las nas redes sociais nem nos blogs. Não conseguiriam sobreviver sem manter a discrição absoluta do mundo offline. Elas como que põem em prática a Oração de São Francisco de Assis: leem mais do que escrevem, ouvem mais do que falam, admiram mais do que são admiradas, dão mais que recebem. Desprovidas de qualquer ambição material, elas só desejam avançar sobre seus ídolos. Como diria Tim Maia, não querem dinheiro, só querem amar. Exemplos de “groupies” literárias abundam em todo canto, de Oxford a Passo Fundo. Não foi uma delas que conseguiu pegar o Machado de Assis? É o que dão a entender as cartas do escritor. Louise Collet venceu as resistências do ermitão Gustave Flaubert, louvando-lhe o estilo. Eu não ficaria surpreso se Beatrice Portinari fosse a real perseguidora de Dante Alighieri ao contrário do que o “altissimo poeta” cantou – e talvez por isso tenha inventado os círculos do Inferno para escapar ao assédio dela. Fãs de escritores que não se contentam em somente admirar o ídolo sempre existiram. Mas só com a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, elas encontraram seu hábitat e adquiriram uma denominação de origem controlada: Maria Caneta.  

Vou discorrer adiante sobre quem são, em que nuances se dividem, como operam e adquiriram uma personalidade definida. Mas antes um pouco de etimologia pop. Quem disseminou o termo foi meu amigo e colega Rafael de Pino, repórter de Época que vem cobrindo a Flip por longos anos e acabou por se tornar um conhecedor crescencentemente preciosista dessas figuras típicas da paisagem do Sul do estado do Rio de Janeiro - como, de resto, típicas da geografia humana. A expressão provém de antigos apelidos derrisórios e machistas, como “Maria Gasolina”, que designa a jovem interessada em namorar proprietários de carros novos, e “Maria Chuteira”, a mulher que namora jogadores de futebol. A vantagem da expressão “Maria Caneta” é que ela não é pejorativa. Daí a inovação, pois se trata quase de um título nobiliárquico. Marias Canetas se orgulham de ser chamadas assim. Até porque agora elas já têm uma história para narrar, ainda que oralmente.  

O fato de elas namorarem escritores demonstra serem mais evoluídas que suas contrapartes populares. Ao contrário das Chuteiras e Gasolinas, as Marias Canetas colam em homens de gostos refinados que praticam a literatura, contam piadas inteligentes e se mostram liberais em seus hábitos amorosos. Desde que o escritor angolano José Eduardo Agualusa surgiu em Paraty, em 2003, distribuindo charme e interesse pelo sexo oposto, a Maria Caneta aumentou sua autoestima, descobriu seu potencial e se consolidou na paisagem lítero-turística da região. Hoje Agualusa atraca seu barco-casa no cais do porto, provocando um alvoroço que só fez crescer nos últimos anos. Ele inspirou a aparição de rivais. Foram aportando mais autores quase tão bons na pena quanto na exibição de suas graças físicas: o carioca João Paulo Cuenca, o português José Luiz Peixoto, o portenho Alan Pauls, o mexicano Guillermo Arriaga – e, claro, Chico Buarque de Holanda, que, sempre que vai à festa, desencadeia notáveis arranca-rabos entre suas seguidoras.  

O aspirante a galã da presente edição é o jovem chileno Alejandro Zambra, cuja novela, Bonsai (CosacNaify), conta as travessuras de um amor que se desdobra entre livros e perversões bel-letrísticas – tudo rapidinho e sem complicações. Dessa forma, Bonsai passou a ser o guia de bolso das pegadoras cultas e Zambra, o autor-alvo. Mas não é preciso ser belo nem moço para conquistar o coração de uma admiradora: basta ser famoso e ter feito “o” romance de sua geração, mesmo que de uma geração remota. Se você é um desses, então vá a Paraty. Espere alguns minutos e você verá chover caneta.     

Ora, e por que não há o Mário Caneta? Talvez por causa da escassez de oferta de autoras. Geralmente as intelectuais publicadas que dão as caras nos eventos literários são casadas e vêm acompanhadas dos parceiros, costumam ter filhos e ostentar uma faixa etária elevada demais para despertar paixões nos marmanjos. Literatura parece ter se tornado uma brincadeira dos rapazes. Com a rica plumagem de seus textos, eles se exibem para as leitoras de 10 a 100 anos.

É difícill generalizar e atribuir uma identidade única entre as Marias Canetas. Elas são diferentes entre si e fazem questão de manter a diferença – e talvez aí resida seu ponto em comum. Querem ser originais, únicas e indecifráveis. As Marias Canetas são personagens em busca de um autor que as explique ao mundo e a elas próprias. Anseiam, no fundo, virar personagens de um grande romance geracional. Muitas se contentariam em aparecer em um conto ou mesmo um poema qualquer. Logo que elas se sentam na tenda dos autores para ouvir a primeira leitura de um autor que adoram, tentam se controlar. Aos poucos, porém, vão revelando seu desejo. Elas agem como musas que ainda não encontraram um inspirador.

 

À medida que sua frustração cresce, tornam-se mais raivosas e inescrupulosas. Por isso, ao longo dos anos, elas desenvolveram técnicas de abordagem e sobrevivência na selva das letras. A primeira providência que tomam é ficar de tocaia diante do computador, à espera do momento em que os ingressos para as mesas são vendidos. Para economizar, não vão em todos os painéis. Privilegiam os de seus prováveis príncipes-encantados. Com o ingresso na mão, tratam de reservar pousadas, enquanto decoram a programação oficial e não oficial. Durante o evento, fazem fila para o autógrafo antes mesmo de o autor terminar sua fala. Para que ouvi-lo, se elas já conhecem tudo dele de cor? Acontece o primeiro contato com o escritor, palavras trocadas e o autógrafo com dedicatória no livro. Na fila mesmo, elas se informam sobre os encontros privados, almoços, turnês pelos alambiques e principalmente sobre as festas que as editoras e a organização estão promovendo, e dão um jeito de se introduzir nelas, com uma roupa e uma maquiagem deslumbrantes. Passam a abordar os assistentes dos assistentes do editor do autor, para ir vencendo etapas até chegar ao objeto de sua busca. Nessas festas, comportam-se de modo mais saliente e disponível, entre goles, risadas e passos de dança, atraindo para si a atenção de escritores e aspirantes, bem como aspirantes a aspirantes. Não raro, estes últimos é que acabam levando-as para a cama. Mas as Marias Canetas não são facilmente impressionáveis. Exigentes, quando despertam da bebedeira, elas não disfarçam a repulsa de estar ao lado de um sub do sub do sub da literatura, e logo enxotam o sujeito para sempre. A única vantagem foi ter se informado do passeio de barco do autor dos sonhos. Zarpam, então, rumo ao mar, às praias e às abordagens mais atrevidas nas caminhadas trôpegas pela rua do Comércio.  

Marias Canetas são predadoras. Mas será que elas conseguem cumprir seu intento? Devido à concorrência, são poucas as que arrebatam um autor de primeiro nível. A maioria se contenta com o apresentador da mesa, os secretários dos autores, ou então assessores de imprensa ou de internet. Ambicionam um dia chegar ao objetivo. Obviamente, quase todas veem seus sonhos destroçados ao final de todas as mesas e noitadas. Derrotadas ou vitoriosas, todas disfarçam bem. As que conseguem não contam vantagem às rivais. Nos eventos literários, a solidariedade feminina é abolida. 

A Maria Caneta arfa por eternizar na escrita de um nome festejado – de preferência, na condição de heroína turbulenta, uma Bovary 4.0. E é curioso que, apesar dos avanços, ainda não tenha aparecido nenhuma obra literária sobre ela, nem sequer como vilã ou coadjuvante. Os autores parecem se interessar por outro tipo de personagem, mais complexo, articulado e brilhante: eles próprios. Ser Maria Caneta requer sacrifícios. Talvez lhe esteja faltando a sensibilidade para perceber que o sujeito que espera o autógrafo na fila à sua frente seja finalmente o autor de sua vida. Na ânsia de atingir a alma de um escritor de fama, ela não se dá conta de que esse cara irá se tornar um celebridade instantânea em breve. Foi o que aconteceu em 2005 com um pacato e desconhecido participante de uma mesa tediosa sobre literatura fantástica oriental. Falando baixo e sempre sério, ele passou incólume pelas Marias Canetas. Era o turco Orhan Pamuk, que, no ano seguinte, ganharia o prêmio Nobel de Literatura. Maria Caneta só terá vez quando instalar antenas mais aguçadas Por enquanto, apesar de suas segundas intenções, ela dá com as páginas em branco n’água.
   

Galãs bundões

Por que as novelas de TV reduzem os homens à condição de vermes

LUÍS ANTÔNIO GIRON

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Em 1980, o escritor e militante da então chamada “esquerda festiva” Fernando Gabeira lançou em livro o ensaio autobiográfico O crepúsculo do macho. Gabeira pregava a dulcificação do homem, fato que se materializaria com o desfile de sua famosa sunga de crochê na praia. Era o tempo em que os homens ainda faziam sucesso como machões nas novelas de TV. O homem frágil e com uma acentuada porção feminina funcionava como uma rasura, um escândalo, 30 anos atrás.

Se Gabeira não estivesse hoje impotente para a literatura, lançaria o livro O Apocalipse do macho. Ele descreveria um Juízo Final pouco animador. O homem chega ao fim da História com a dignidade zerada. Dizem que os responsáveis pela campanha de desmoralização são os autores de novela, que rebaixaram os personagens masculinos. Eles têm vilipendiado e convertido o homem em saco de pancada. No entanto, é preciso fazer a ressalva: a ficção popular na TV reflete apenas o que se passa no mundo propriamente dito. O homem másculo não só se encontra em extinção. O que sobrou dele degenerou em caricatura, tudo para agradar ao público feminino.

Há uma superlotação de galãs parvos, delicados ou chifrudos nas novelas das 19h, 21h e 23h. Alguns são fortões, mas usam colares e fazem a sobrancelha. De Nacib de Gabriela a Fabian de Cheias de charme, não sobrou homem sobre homem com direito de usar este nome. Todas as figuras masculinas foram emasculadas. Nacib (Humberto Martins) é o metrossexual da zona cacaueira em 1925, como se teria sido possível. Ele mostra um vasto repertório de trejeitos, e sempre se sujeita aos desejos de Gabriela. Dá saudades do Nacib de Armando Bógus, da versão de 1975 de Grabriela. Fabian (Ricardo Tozzi) só pensa em se olhar no espelho e arrancar elogios e suspiros das empreguetes. Protótipo do galã bundão, é apaixonado por si próprio, e nisso só é ultrapassado por seu sósia Inácio, que faz o gênero bonzinho. Nas novelas, os bonzinhos estão cada vez piores e mais suspeitos. 

Mas vamos assistir melhor a uma novela que vale por todas: Avenida Brasil, o maior sucesso hoje no Brasil. Jorginho (Cauã Reymond), uma espécie de mocinho da novela, ultrabozinho, é manipulado por todas as garotas com quem se envolve, e se comporta como mero objeto sexual delas. Seu pai adotivo, Tufão (Murilo Benício), é traído pela mulher, Carminha (Adriana Esteves), e não consegue se livrar da virago. Ela tem um amante Max (Marcello Novaes), vilão de opereta, dependente do dinheiro dela e casado com a irmã de Tufão. Mas o pior personagem de Avenida Brasil é Cadinho (Alexandre Borges), o polígamo compulsivo que pensa ser um Don Juan, mas, na realidade, não passa de um vibrador sempre à mãos das mulheres. Não restou um galã de verdade, um Tarcísio Meira que apareça para mostrar que ainda existem machos neste mundo. E talvez não restou porque não há mais.

Custo a acreditar que a maior parte das mulheres que vê televisão deseje que seus companheiros sejam como esses personagens. Já está provado que a maioria delas prefere os tipos com características másculas mais acentuadas aos tipos frágeis para se acasalar. Então por que elas gostam tanto de ver os homens ridicularizados?    

Há quem diga que é porque muitas delas - e aqui entra a grande maioria das mulheres que assistem à TV aberta, pertencentes às classes C e D - sofram violência doméstica ou odeiem em silêncio os seus parceiros sexuais. Dessa forma, as novelas funcionam como válvulas de escape para as frustrações de seu público preferencial. Em resumo, elas apanham em casa e se vingam pela televisão, vendo espécimes do sexo oposto sendo torturados até o arrependimento ou a morte. Sonham com um corretivo que regenere seus maridos, amantes e namorados. E é uma pena que Walcyr Carrasco, João Emanuel Carneiro e Sylvio de Abreu – respectivamente autores das novelas Gabriela, Avenida Brasil e Cheias de charme – não estejam à frente da coordenação da Delegacia da Mulher. Eles certamente conseguiriam corrigir as distorções da nova família brasileira. 

Alguns respeitáveis teóricos europeus denominam a tendência expressada nas obras de arte e entretenimento de difamar o homem de “machismo às avessas” ou “sexismo reverso”, uma espécie de revanche tardia das feministas, agora travestidas em “feministas geeks” que exacerbam seus ideário ao transformar sua agenda libertária em pura opressão fundamentalista. São as mulheres que não amavam os homens. Por isso, elas tratam de impor a derrota ao macho pelo uso da força, do deboche e do ultraje. Será que não percebem que põem tudo a perder quando reduzem seus parceiros a vermes? 

A refutação simbólica do homem rende falas e cenas hilárias na novela brasileira, e em outras manifestações artísticas. Ele alimenta a audiência feminina e reformata o imaginário popular. Mas, no fundo, o sexismo reverso usado pragmática e inconscientemente pelos autores e ecoado pelas espectadoras só faz reforçar o preconceito e alimentar o ciclo das revanches. Logo irá aparecer o “machismo reverso” ou mesmo o “ultramachismo”.

Quando às vezes tento acompanhar as trapalhadas de personagens como Tufão e Jorginho, sinto uma compulsão quase incontrolável de adotar o modelo porco chauvinista. Felizmente sou um sujeito racional que ama as mulheres – sem, contudo, perder a dignidade e o senso de liberdade. O macho pode ser arrastado à danação no fim dos tempos. Mas não estarei por perto para ver a execução última da espécie pelas verdugas do sexismo reverso. Prefiro o fogo do inferno à crueldade das mulheres. 

Cemitérios divertidos

Por que a morte está se infantilizando – e nós com ela

LUÍS ANTÔNIO GIRON

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Os cemitérios estão ficando mais divertidos. Em países como Romênia e Inglaterra, eles se mostram mais decorados e próprios para uma experiência de entretenimento. Locais tradicionalmente dedicados ao luto e à oração convertem-se em parques temáticos. A moda ainda não chegou ao Brasil. Mas é questão de tempo para entrarmos na era da infantilização da morte, como já o fizemos na da vida. Fica aí a ideia para um coveiro empreendedor. 

Até bem pouco tempo atrás, os mortos pediam solenidade, e eram objeto de veneração. Mas até eles perderam a classe. Prova disso é que os túmulos estão sendo substituídos por discretas lápides em gramados que remetem a tudo menos cemitérios. Os vivos sentem horror crescente aos despojos humanos, e tratam de incinerá-los até convertê-los em cinzas, para espalhá-las em qualquer lugar que os mortos tenham amado. Não deixaram de ser lembrados, mas o são do modo mais asséptico possível. Até mesmo a alegria dos novos cemitérios se afigura excêntrica, pelo excesso de euforia, e de frivolidade. Que mundo, que tempo é este?

Um mundo e um tempo marcados pelo espetáculo total. O fato pode ser observado em dois exemplos. O primeiro é o cemitério do vilarejo romeno de Sapanta, na fronteira com a Ucrânia, conhecido como Cimitrul Vesel (“Cemitério Feliz” em romeno), virou atração turística por causa de seus túmulos multicoloridos, com lápides em formato de capelinhas que mostram os falecidos representados em suas atividades favoritas. Assim, um padeiro faz pão diante do forno, o moleiro mói grãos e a dona de casa prepara os pratos para o almoço – pela eternidade. Mais recentemente, apareceram os técnicos em informática e as mulheres atropeladas por carrões. Os epitáfios também são alegres. Em um deles, um ente querido escreveu sobre a cunhada: “Sob esta cruz pesada, jaz minha cunhada. Como tenho me comportado bem, espero que ela não volte do inferno.” E assim por diante. O curioso cemitério nasceu da mente de um artista, Stan Joan Patras (1908-1977). De 1935 até morrer, Patras pintou e esculpiu 800 tumbas. A dele está lá, mostrando o artista de chapéu e expressão ligeiramente irônica. Hoje ele é reconhecido como inovador. Seu discípulo, Dimitru Pop, mantém vivo o hábito. 

O segundo exemplo repousa (o verbo pode soar de mau gosto, mas vá lá) nos túmulos das crianças agora são enfeitados com personagens dos desenhos de Walt Disney. Algumas lápides exibem o formato da cabeça de Branca de Neve e do Ursinho Puff. Basta passear em cemitérios ingleses para topar com o fenômeno. É o caso do cemitério da cidade de Essex, no Oeste da Inglaterra, repleto de túmulos infantis decorados com figuras da cultura popular. Passeando por ali, o escritor inglês Theodore Darlympole cunhar o termo “disneyficação da morte” em um artigo para a revista londrina The Spectator (“The disneyfication of death”, 12/02/2011). O conselho municipal de Essex solicitou que os adereços fossem retirados, mas o pedido não surtiu efeito. Os pais e parentes quebram a tradição de austeridade vitoriana que dominou os cemitérios ingleses e fazem questão de lembrar das crianças mortas como se eles fossem figurantes de alguma aventura da Disney, e continuam a enfeitar as tumbas com brinquedos e acessórios vendidos nas lojas, como miniaturas de Mickey e ursos de pelúcia. Darlympole chama a atenção para o espírito de competição entre as tumbas, uma querendo aparecer mais que a outra. Assim, quanto mais ursinhos e princesas um túmulo exibir, maior o seu prestígio. 

Os cemitérios felizes ilustram como vivemos e deixamos de aceitar nossa finitude, transformando a morte em tabu. Em tempos idos, as pessoas conviviam com os mortos e se resignavam com o fim inevitável. Ainda que maquiassem os cadáveres para velá-los com menos repugnância, sepultavam-nos com respeito religioso. A função de visitar os túmulos era lembrar e sonhar com um reencontro, até porque acreditava-se na vida espiritual após a degradação do corpo. Os artistas românticos tentaram glamorizar e erotizar a morte. Mas em vão, pois a realidade derrubou qualquer exaltação idealista. Apesar do Romantismo, as pessoas continuaram a morrer em gerações sucessivas, inapelavelmente e sem uma ponta de glamour. Os projetos urbanísticos do século XX trataram de sanitizar o problema. Criaram parques fúnebres e até cemitérios verticais. Isso até que a visão de um cemitério se tornasse intolerável aos padrões do convívio civilizado. Não é surpresa que uma nova fase aconteça agora, neste instante em que o princípio de realidade dá lugar ao do prazer, e que a fantasia afoga a consciência.  

A morte não tem nada a ver com os novos tempos. Ela não combina com a alta tecnologia. Daí nosso espanto com o fato de Steve Jobs, o inovador da Apple, ter morrido. Como pode? Vez por outra, topamos com um e-mail de um falecido e pensamos em dar uma resposta. Mas para onde? E o Facebook exorta a cutucar um amigo que já morreu. E cutucamos. Ninguém mais pode morrer de fato, porque seus traços continuam a assombrar o universo digital. As redes sociais criaram cemitérios virtuais, mas eles são desprovidos da consistência de um território fixo. Eles de fato não existem. Os mortos também não. Os cemitérios de terra e pedra, por seu turno, devem se tornar centros de ilusionismo, como os de Sapanta e Essex. Ao visitá-los, somos convidados não a relembrar, mas a esquecer os mortos e a passar momentos agradáveis na ausência de quem deve ser ignorado. Nesses cemitérios cômicos e inovadores, os visitantes viram crianças de novo. Num processo de regressão instantânea, não cultuamos mais os antepassados. Brincamos despreocupados. Se antes viver era aprender a morrer, como dizia Montaigne, agora os novos cemitérios ensinam a viver no completo desprezo em relação ao destino que aguarda a todos. Neles, viver é aprender a ignorar a morte. Os que mais aproveitam a festa são os fantasmas. Às gargalhadas, eles aguardam para dar boas-vindas ao próximo sócio do clube.

Deseducação sexual

Deseducação sexual

A nova geração do pornô para moças reforça o culto ao macho

LUÍS ANTÔNIO GIRON

O que a nova literatura pornô para moças têm a ensinar sobre sexo? Rigorosamente nada. Ao contrário, o gênero é um vibrador de letras que veio para imbecilizar e criar mitos entre as fãs de Crepúsculo, agora mais crescidinhas e prontas para começar a vida sexual e consumir idiotices disfarçadas de informação. Ouço dizer que a trilogia Cinquenta tons de cinza, da britânica E.L. James, está salvando o casamento de muita coroa em Manhattan, Leblon e Jardins. Além do primeiro volume, que dá nome à trilogia, seguem-se (vale saborear os títulos) Cinquenta tons mais escuros e Cinquenta tons de liberdade – trazem um abecedário de cenas supostamente excitantes, embora conhecidas de qualquer adulto medianamente racional. Trata-se da pior história de iniciação sexual de todos os tempos. Por isso, espanta-me ver mulheres maduras tão ignorantes em sexo terem erigido a trilogia a totem, ajudando-a a transformá-la no maior best-seller mundial da atualidade. O que elas fizeram esses anos todos? Tudo, menos transar. 

Na verdade, são as pós-adolescentes o público-vítima de James e suas epígonas. Sim, como se não bastasse James, uma ex-executiva de televisão de 49 anos que redescobriu o filão da literatura erótica, agora surgem as seguidoras de seus gorjeios mentais (“tweets”, em inglês). A mais atrevida delas é a nipoamericana Sylvia Day, 39 anos, autora de ficções científicas, fantasias urbanas (as rurais ela deixa para J.R.R. Tolkien e George R.R. Martin), romances eróticos paranormais – e histórias pornôs “de bom gosto”. Sua trilogia erótica Crossfire (por que não levou o nome de Fogo cruzado em português mesmo?) está sendo lançada pelo selo popular Paralela – que pertence à Companhia das Letras. O primeiro livro se intitula Toda sua, o segundo Deeper in you (em inglês mesmo) e, como em Cinquenta tons de cinza, traça o percurso per aspera ad astra de uma relação heterossexual. A peculiaridade da obra repousa na tese farmacológica, ao gosto do público feminino pós-contemporâneo: vítimas de abuso sexual podem levar uma vida amorosa saudável? Minha pergunta é outra, à qual já respondi: vítimas de abuso literário podem sair ilesas da pornografia malfeita?  

O que esses livros trazem de fato é simultaneamente uma lavagem estomacal e cerebral. A leitora se esvazia após a experiência de deseducação sentimental, e chego a duvidar de que consiga enfrentar qualquer outro livro a partir do choque. Mais, estou certo de que ela, tão logo acabe esses romances, substitui o desejo de fato pela libido desviante do sadomasoquismo com ternura – como se este pudesse se sustentar por muito tempo. E.L.James e Sylvia Day contam uma mentira deslavada: a de que a tara pode ser domada e convertida em prática cotidiana.  

Pode ser interessante penetrar nas duas histórias. Em Cinquenta tons de cinza, a jovem bacharel de Letras Anastasia Steele descobre que ser amarada e suavemente torturada lhe provoca prazer, sobretudo se tiver como parceiro um bilionário gourmet, culto de 28 anos chamado Christian Grey. Crossfire exibe uma história mais ousada, embora não muito diferente de Cinquenta tons...: a publicitária Eva Tramell, de 24 anos, é seduzida pelo “bilionáro maravilhoso” e jovem Gideon Cross, CEO do grupo Crossfire e, na prática, de toda ilha de Manhattan. Ele sofreu abuso sexual na infância e costuma se acasalar com mulheres enquanto elas estão dormindo. Gideon também sente prazer quando Eva explora os músculos contraídos de seu traseiro. Eva suspeita que ele não seja normal e procura entendê-lo melhor. Conversando com o doutor Petersen, acredita ter descoberto que ele sofre de uma doença: a parassonia sexual atípica. Mas... e se o mal dele for outro? Apaixonada, Eva tentará a um tempo curá-lo e convertê-lo. Obviamente, a leitora saberá do segredo na última página da trilogia, que ainda não foi escrita. 

Acho que o parágrafo acima soa mais erótico do que aquilo que as trilogias propriamente ditas podem oferecer. Elas são puritanas e paralisantes. Não contém glúten ou sal. Retratando personagens como submissas, reforçam a inveja do pênis, o culto a príapo e a ilusão do sexo como aventura higienista. E.L. James e Sylvia Day brincam tanto com variações do ato sexual que acabam esvaziando o tema. Este fato aproxima suas histórias dos antigos romances seriados para moças, como M. Deli, Sabrina e Polyana – com suas histórias pulsantes de sexo, só que nas entrelinhas. As duas escritoras também fazem com que a gente que já viu, viveu e leu muitas coisas tenha saudade das cenas de sexo grupal das Mil e uma noites, das sacanagens impensáveis do Marquês de Sade e até do ardente casamento místico de Cristo com Santa Teresa d’Ávila - a genuína fundadora da ficção erótica paranormal. Às leitoras seduzidas pelo “mama porn”, sugiro que consultem os contos orientais, o romance A filosofia da alcova, de Sade, e os poemas místicos de Santa Teresa. Não sei se essas obras realmente eróticas conseguirão salvar as leitoras viciadas da banalidades. Não custa tentar.

Pior farão as seguidoras das seguidoras de E.L. James. Vêm aí mais romances de soft porn. Teremos que nos acostumar a isso. Eles ensinam as delícias da perversão domesticada – algo tão improvável quanto Jane Austen vampira, Abraham Lincoln caçador de zumbis e Xuxa contra o baixo astral. Se as senhoras que citei anteriormente resgataram seus casamentos por causa de tais obras, e as moças experimentaram alguma revelação em suas páginas, devem tê-lo feito por um tempo curtíssimo. Porque, leve ou pesada, pornografia cansa. 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Sou mais Twitter do que Face

A batalha final entre as redes sociais se aproxima feito epílogo de uma franquia de cinema. As redes mais fracas foram eliminados em escaramuças ocorridas nos últimos dois anos. Orkut, MySpace e outras perderam seus membros e, por conseguinte, a guerra. Na Internet, briga-se não por territórios, mas por exércitos, porque eles constituem a maior riqueza. Exércitos que lutam entre si por mais e mais tropas: talvez os conflitos do passado não tenham sido nada além que isto, a sanha de dominar pessoas. Só que agora tudo acontece no campo aparentemente etéreo da guerra mundial virtual. Nesta altura da saga das redes, os vencedores são o Facebook (ou Face, como dizem os brasileiros em bom português) e o Twitter. O serviço de rede social de Mark Zuckerberg disputa com o microblog de Jack Dorsey a hegemonia de nossas mentes e almas. Tornou-se quase uma guerra de trincheiras. De que lado você está?

A pergunta pode parecer ociosa se consideramos que muitos usuários de uma rede fazem parte da outra. No entanto, observo que uma parcela significativa da turma que usa tanto Twitter como Facebook prefere um serviço ao outro. Existe uma divisão mental e de tipo de usuário. Na verdade, são duas tribos bem distintas, que possuem características e visões de mundo que vou tentar descrever e analisar mais adiante. Antes, vou abordar a história e o estatuto dos dois serviços e identificar seus detratores.

Já disseram que nunca se sabe aonde vai dar uma invenção, porque ela depende do uso que as pessoas fazem dela. Ninguém imaginaria, oito anos atrás, que um site criado para juntar estudantes da universidade Harvard, como o Facebook, chegaria aos atuais 900 milhões de usuários e revelaria às pessoas a dimensão e a qualidade de seus relacionamentos. Ou que um microblog de San Francisco que não se levava a sério em 2006, a começar pelo nome – na definição do cofundador Jack Dorsey, Twitter significa a um só tempo gorjeio de pássaro e “uma manifestação breve de informação inconsequente” – atingiria 500 milhões de membros, entre eles muitos cidadãos inteligentes capazes de expressar visões de mundo e sistemas filosóficos inteiros nos limites dos 140 caracteres impostos por seus donos. Cada um a sua maneira, Facebook e Twitter colaboraram para alterar a história e a forma como lidamos com outras pessoas e com a própria realidade. Por meio deles, surgiram movimentos sociais, rebeliões e focos de resistência democrática, bem como atentados terroristas.

outras colunas de Luís Antônio Giron

Mas há quem reduza a função política dos dois. O escritor americano Jonathan Franzen me disse em entrevista que duvida que o Twitter foi um fator determinante nos protestos do Irã e do Egito. “O papel das redes sociais em atuar efetivamente no mundo concreto está sendo superestimado”, disse Franzen. “A solução dos problemas das pessoas não está no mundo digital, mas no mundo concreto.” Franzen me disse que jamais irá entrar no Facebook e no Twitter.

Entendo o virgem de internet. É aquele sujeito que acredita que pode manter a reputação simplesmente por se recusar a participar do lindo mundo novo das redes sociais. Eu próprio escrevi tempos atrás uma refutação ao Facebook, e anunciei que ia sair do serviço de Zuck, mas acabei desistindo por pressão social. Família e amigos me forçaram a me emaranhar de novo na teia e, pior que isso, a interagir virtualmente com eles. E acabei imitando o virgem de 40 anos daquela comédia com o Steve Carell: quando, virgem de 50 anos, caí em tentação, e me lambuzei como nunca. Fui incapaz de manter meu voto de castidade digital, e admiro quem consiga. Quando intelectuais como Jonathan Franzen - e Eugenio Bucci, em artigo recente para ÉPOCA - juram que são felizes na condição de dinossauros tecnológicos, sinto-me um rematado pecador. Mas acho que eles mantêm o celibato digital mais como estratégia de militância filosófica do que por uma fé inabalável em que o ser humano possa se purificar longe dos tentáculos da aranha digital. De minha parte, não tenho vocação sacerdotal. Sou curioso demais para manter a reputação ilibada. Como disse o polemista austríaco Karl Kraus: “Conhecer o Diabo sem assar no inferno é algo que conviria a muita gente”. Prefiro queimar no inferno a posar de falso moralista.

E já que me encontro no inferno, vou tentar resistir por estes círculos mesmo, sem perder a argúcia. Uso os dois serviços, mas prefiro o Twitter, por inclinação. Vou raramente ao Facebook, até porque não gosto de fuçar detalhes das vidas alheias e muito menos ainda que investiguem a minha. Eu acho que aí reside a diferença essencial entre quem usa mais o Twitter do que o Facebook: o Twitter é fundamentalmente aberto e público, ao passo que o Facebook oferece ao participante um ambiente supostamente privado. Supostamente porque sabemos que Zuck libera os dados dos usuários a empresas que queiram pagar para utilizá-los para vender seus produtos e serviços. Segundo o militante digital Eli Pariser (no livro O filtro invisível – o que a internet está escondendo de você, Zahar, 252 páginas, R$ 41,75), o Facebook filtra a informação e usa um algoritmo que esconde a maior parte dos seus amigos, destacando aqueles com quem você mais interage. Com isso, o Facebook tribaliza os usuários, tornando sua comunidade um grupo ordenado de pessoas que pensam, se comunicam e têm gostos idênticos entre si. Mesmo assim, ainda acredito que é possível manter a mesmo tempo a privacidade e o perfil no Facebook – bastando para isso ser seletivo e alterar as configurações de privacidade do site. Segundo Pariser, o Twitter é um veículo mais livre e transparente, porque sua regulamentação é tênue e seu algoritmo, totalmente inclusivo.

De alguma forma, o Twitter se parece com os meios tradicionais de comunicação, pois permite que se propaguem informações sem restrições de comunidade. Daí, talvez, os profissionais de comunicação gostarem mais dele do que do Facebook. O usuário pode seguir uma celebridade – e ser seguido por ela – sem filtros. Você pode dar um furo de notícia e se tornar importante da noite para o dia. E também tem a opção de configurar o Twitter para que ele sirva como uma rede superexclusiva, ou então se valer de um pseudônimo para se expressar livremente, sem as amarras de sua condição social e profissional. Eu, por exemplo, tenho duas contas de Twitter, uma aberta e pública, e outra fechada, só para a família. Como interagir com parentes não se parece nem de longe com diversão, minha conta superprivada é quase inoperante. Por curiosidade, a conta fechada é, entre as duas, a que mais recebe solicitações de ingresso. O Twitter se afigura (e se configura) mais ágil que o Facebook e, ainda que não traga aplicativos e páginas atraentes como os do Facebook, permite comunicação com interlocutores específicos e divulgação de fotos instantâneas.

Por tudo isso, o Twitter aparentemente combina mais com pessoas mais despreocupadas e capazes de agir em público com desenvoltura. Quem usa o Twitter corre risco. Parece andar em uma praça, sujeita às intempéries, ao acaso e ao contato das multidões. Faz e recebe críticas, ataca e é atacado. Quando alguém namora pelo Twitter, o faz à vista da massa incógnita – mas não está nem aí para isso. A presumível livre expressão do pensamento faz parte do mecanismo do gorjeio quase infinito, que se dissemina através da retuitagem. Ele fornece a ilusão de que o usuário é popular, pelo número de pessoas que o seguem. Mas até que ponto quem segue leva o que ele diz de fato? Até que ponto os donos do serviço não escondem algo do usuário? É um meio de comunicação imprevisível, caótico e violento. Por isso, sujeito à suspeição.

O usuário de Facebook parece ser mais passivo e inclinado ao convencionalismo. Ele tem um só nome, um só endereços e um só rosto. Seu prestígio não se mede pelo número de seguidores como o Twitter. Ele precisa se sentir protegido e não ser contestado. Ali só existe o verbo “curtir”. Não existe o “discordar”. Isso apazigua os ânimos e torna todos falsamente concordes. O Facebook apresenta um processo de afinidades menos eletivas que forçadas. Lembra um ambiente amplo, porém fechado e controlado. Quem está sob seu teto é obrigado a fazer amigos e se relacionar intensamente com os outros, só que mantendo a discórdia fora da conversa. Bloquear pessoas é o mesmo que ofendê-las para sempre. Até os jogos são consensuais, como montar uma fazenda e atirar em pássaros feitos de bits. O usuário do Facebook adora que Zuck e os outros organizem sua linha do tempo, poste fotos e hierarquize sua rede de relacionamentos.

Para resumir, o Facebook é entediante e fechado tal qual colegas em uma escola, ao passo que o Twitter se apresenta difuso e divertido como um espetáculo a céu aberto. Mesmo assim, há em ambas as redes sociais sempre alguém monitorando o que você diz, faz e pensa, em graus diferentes de vigilância. Isso para mim soa como uma terrível restrição à liberdade. Neste momento, estamos sendo conduzidos a optar por um e outro, e escolher entre a cruz e a caldeirinha. Obviamente, você ainda pode fazer parte dos dois ambientes ao mesmo tempo. Mas, na hora em que um conquistar o outro, para onde irá? Sim, é possível sobreviver sem um deles – e, melhor ainda, viver sem nenhum dos dois. Porque daqui a pouco deverá surgir uma invenção muito mais ardilosa que os tornará obsoletos. A outra alternativa, não de todo desprezível, é voltar a ser virgem de internet. Fica a pergunta: existe virgindidade reversível?