sexta-feira, 25 de maio de 2012

Só para mulheres


A trilogia erótica de E.L. James quebra o tabu e faz sucesso entre as leitoras

 

Os homens sempre foram o público dominante da literatura erótica. Até pouco tempo atrás, reinava o tabu segundo o qual as mulheres não podiam ler histórias picantes, muito menos escrevê-las. Durante o século XX, autoras como Anais Nin, Marguerite Duras e até a brasileira Cassandra Rios expandiram as fronteiras da narrativa carregada de travessuras sexuais, e arrebataram milhões de leitoras. Mas o consumo desse gênero de entretenimento sempre se deu às escondidas, em especial entre as mulheres. Nos últimos meses, as leitoras têm ampliado o campo de ação do erotismo feminino, pelos blogs de fan fiction, um tipo de exercício criativo que parte de uma determinada obra de que a leitora gosta para apimentá-la de cenas eróticas. As redes sociais completaram o serviço. Por causa das mulheres, o mercado vive o renascimento dos livros eróticos consumidos de forma quase tão rápida quanto são escritos.

Se faltavam uma autora e uma obra que coroassem a moda, elas acabam de chegar. A trilogia Fifty shades of Grey, livro de estreia da britânica E.L. James explodiu em vendas na internet, e, no início do mês, o primeiro volume atingiu a primeira colocação da lista de e-books do jornal The New York Times. Os outros dois – Fifty shades darker e Fifty shades freed – seguiram a tendência. Na última semana, os dois títulos ocupavam segundo e terceiro lugares da lista combinada de e-books e impressos do jornal. Os três volumes venderam 250 mil cópias nos Estados Unidos.

A trilogia foi lançada no final de 2011 por uma obscura editora australiana chamada Coffee Shop. Os direitos de publicação da obra nos Estados Unidos acabam de ser arrematados após um concorrido leilão pelo poderoso selo Vintage Books, da editora Knopf Doubleday. A tiragem inicial, prevista para 17 de abril, será de 750 mil exemplares. Os principais estúdios de Hollywood disputam os direitos de filmagem da história. Repesentantes da Sony, Warner e Paramount  sonham em reviver o sucesso do filme 9 ½ semanas de amor, de 1986 - e se reuniram na semana passada com a autora e sua agente Valerie Hoskins.

O sucesso arrancou do anonimato E.L. James, uma discreta ex-produtora de televisão, mãe de dois filhos, casada, moradora de Londres. Ela começou com fan fiction da saga Crepúsculo, de Stephenie Meyer, intitulado Master of the Universe. Como é hábito nesse tipo de ficção, ela imaginou uma versão sexualmente explícita do romance da humana Bella e do vampiro Edward. A influência de Stephenie Meyer em Fifty shades of Grey é tão evidente que a trilogia tem sido chamada de Crepúsculo para adultas e “mommy porn” (pornô da mamãe). Na realidade, porém, a história  não passa de um “bad porn”, pornografia canhestra com direito a todos os lugares-comuns típicos do gênero, espalhados em mais de  ml páginas. 

A narradora é a virgem Anastasia Steele, estudante universitária de Letras que, aos 22 anos, encontra o bilionário Christian Grey, de 27. Eles se apaixonam à primeira vista. Ela quer se entregar, mas ele a obriga a assinar um documento com regras de conduta do relacionamento. Entre elas, permanecer em cárcere privado,  tomar banho todos os dias, fazer ginástica quatro vezes por semana e aceitar um catálogo de atividades sexuais sadias, que só não incluem sadismo, coprofilia e bestialidade. Anastasia, ouvindo sua  “deusa interior” que sempre a aconselha, assina o documento, e assim dá início a suas peripécias sexuais. Em uma espécie de apologia pós-moderna à submssão feminina temperada de pequenas perversões, Grey a transforma em mulher, ao passo que Anastasia aceita os jogos sexuais dele  para suavizá-lo até convertê-lo em macho dócil. O processo de domesticação do casal não tem entusiasmado a crítica americana, que, em geral, não se digna em resenhar literatura pop. Mas há otimistas, como Lisa Swharzbaum, da revista popular Entertainment Weekly  “O livro tira proveito da portabilidade dos e-readers e tablets, que suscitam a leitura discreta”, diz ela. “Santa porcaria! A leitora corre o risco de se distrair e perder o ponto de õnibus.” O livro virou assunto nos Estados Unidos, especialmente em Nova York, onde é discutido em rodas de amigas e programas de televisão.

Muitas são as especulações sobre os motivos que levam as mulheres a consumir atualmente mais que os homens esse tipo de literatura. Para a escritora Heloísa Seixas, a reação feminina exagerada faz parte do mundo novo da internet. “É o reflexo do do fim da privacidade”, diz. “No exibicionismo geral, as pessoas anseiam em mostrar sua intimidade em público, e consumir furiosamente a intimidade dos outros.”

As mulheres levaram muito tempo para se expor e tomar coragem de falar e ler abertamente sobre sexo. “A procura por pornografia é mais comum nos homens, e a sociedade tolera mais esse hábito nos homens do que mulheres”, afirma Paulo Canella, professor de ginecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Por isso também é mais fácil para o homem admitir." 

Segundo Nilza Rezende, autora de livros eróticos, as mulheres hoje venceram os preconceitos e tomam coragem para falar sobre seus desejos e as necessidades de seus corpos. Estão mais interessadas em sexo que os homens, e isso determina novos hábitos de leitura. “Elas vivem mais intensamente o sexo que os homens”, diz Nilza. “A instabilidade das relações amorosas as leva a tentar resolver suas dúvidas amorosas na cama – e, quando não conseguem, na leitura de livros eróticos. Elas são diferentes dos homens porque querem falar sobre o assunto.” 

Outra diferença em relação ao público masculino é o tipo de excitação que as leitoras buscam em um romance. “O homem considera erótico o aspecto genital, enquanto a mulher valoriza o caminho que produz a excitação e permite o sexo”, diz o sexólogo Oswaldo Rodrigues Jr. “A pornografia sempre foi feita para homens, e o caminho romântico foi feito para mulheres. A leitura permite fantasiar o caminho romântico para as mulheres que desejam o sexo como objetivo. Para os homens, a literatura é algo que demora muito para chegar ao objetivo coital.”

A meta primordial das leitoras de Fifity shades of Grey pode ser o romantismo. Mas não é a única. Donas de casa americanas afirmam que o livro de E.L. James ajudaram a melhorar suas vidas conjugais. É o caso da nova-iorquina Michele Yogel, de 33 anos. Ela devorou a trilogia só parando quando tinha de levar o filho para a escola. “Não consegui parar”, disse ao jornal The New York Post. “O livro está revitalizando o casamento e a vida sexual de todo mundo no Upper East Side.”


LAGiron

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Jorge Amado. Versão século XXI


IDEIAS - 16/05/2012 15h46 - Atualizado em 18/05/2012 15h34

TAMANHO DO TEXTO

Jorge Amado. Versão século XXI

O escritor foi primeiro consagrado como ídolo nacional. Depois, foi execrado como popularesco e sexista. Agora, volta a ser valorizado como um narrador capaz de falar para todas as tribos 

LUÍS ANTÔNIO GIRON

NOVO ROSTO A montagem retrata o escritor Jorge Amado na exposição do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. Onze anos após a morte, sua obra volta a ser lida e interpretada (Foto: divulgação)
NOVO ROSTO

Da juventude à morte, em 2001, aos 89 anos, Jorge Amado atuou como o escritor brasileiro de maior prestígio e popularidade no mundo. A posição de relevo não o poupou dos ataques da crítica – que, em diferentes períodos e segundo os mais diversos critérios, encontrou em sua obra motivos de execração. A esquerda, que o incensara no início da carreira, condenou no final dos anos 1950 o abandono da agenda social pelo não dogmatismo. Nos anos 1960, os formalistas e puristas definiram seu estilo como desleixado. As feministas surgiram na década de 1970 para acusá-lo de populista e sexista. No fim da vida, ele ainda amargou o menosprezo dos universitários e da Academia Sueca, que anualmente concede o Prêmio Nobel de Literatura. Amado dizia não entender por que não recebera o tão ambicionado Nobel. Desconfiava de que os jurados, muitos deles comunistas “de longo curso”, ressentiam-se de sua rejeição ao stalinismo em troca de uma atitude moral leve, de ateu que rezava aos orixás, cosmopolita que, mesmo com berrantes camisas havaianas, preferia a religiosidade de sua Bahia natal às civilizações tidas como mais adiantadas.

A morte fez com que sua obra fosse relegada à indiferença. Os livros parecem ter morrido antes do autor. Os festejos de seu centenário ensejam a reedição dos livros e a nova versão da telenovela Gabriela, sucesso de 1975, que estreará na TV Globo em junho no horário das 23 horas com Juliana Paes no papel-título. Um dos maiores eventos é a exposição Jorge Amado e Universal, em cartaz até 22 de julho no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Depois ela seguirá para várias cidades brasileiras, Lisboa e Porto. Em agosto, mês do nascimento de Amado, a Academia Brasileira de Letras (ABL) promoverá uma exposição com palestras e exibições de filmes baseados em sua obra. O centenário é, acima de tudo, a ocasião para uma revisão crítica. É preciso separar os livros que permanecem dos que podem ser esquecidos. E avaliar o papel de Amado nos novos tempos.

“Jorge foi para o limbo, como acontece com quase todos os clássicos quando morrem”, diz a romancista Nélida Piñón. “Passados 11 anos de sua morte, ele precisa sair de lá e voltar ao convívio dos leitores.” Nélida e seus colegas acadêmicos Ana Maria Machado e Sergio Paulo Rouanet assumiram na ABL a missão de revisar a obra dele. Em março, o trio promoveu na Sorbonne, em Paris, um evento que discutiu o lugar da imaginação de Jorge Amado no século XXI. O esforço revisionista será repetido no Reino Unido, na Espanha e em Portugal. “Queremos incentivar a releitura da obra no exterior e no Brasil, e não apenas por um ou outro livro isolado”, diz Ana Maria, presidente da ABL. “Apesar de um título, Capitães da areia, fazer parte do currículo escolar, os estudantes já não têm noção da grandeza do escritor. Daí o convite: vamos voltar a ler Jorge Amado.”

A HEROÍNA A atriz Juliana Paes interpreta a retirante Gabriela na novela das 23 horas que vai ao ar em junho pela TV Globo. O romance Gabriela cravo e canela marcou a virada ideológica de Jorge Amado (Foto: Alex Carvalho/CGCOM)
A HEROÍNAA atriz Juliana Paes interpreta a retirante Gabriela na novela das 23 horas que vai ao ar em junho pela TV Globo. O romance Gabriela cravo e canela marcou a virada ideológica de Jorge Amado

A produção de Amado compreende 34 títulos, dos quais se destacam 21 romances. Há poesia, crônicas, memórias e panfletos como O mundo da paz, de 1951, uma apologia do stalinismo, depois renegada. Seus livros foram traduzidos para 49 idiomas em 55 países. Em vida, ele vendeu cerca de 50 milhões de exemplares em todo o mundo. O sucesso só foi superado, após sua morte, pela obra de seu protegido Paulo Coelho, com seus 100 milhões de cópias vendidas e tradução para 66 idiomas. Coelho ocupa desde 2002 a cadeira de número 21 na ABL, que pertenceu ao economi

Dê adeus às bibliotecas

Instituições como a Biblioteca Nacional podem desaparecer ou ser vetadas à consulta em carne e osso

LUÍS ANTÔNIO GIRON

Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV (Foto: ÉPOCA)

Nostalgia é o oitavo pecado capital destes tempos. Você pode ser retrô e reciclar informações do passado com o glamour e a retina exata do presente. Ser nostálgico e sentir saudade é pecar. Por que sentir falta de um passado que era mais atrasado, mais ridículo e mais sujo do que o presente? Como sei que o presente é o futuro passado e que os brilhos atuais vão parecer foscos aos olhos judiciosos do amanhã, continuo a gostar da nostalgia. Recaio sempre nela, e sinto o olhar reprovador de quem está por perto e nota a infração. Para horror de minha mulher, guardo uma edição da Encyclopedia Britannica, edição de 1962. Pior, vivo consultando seus verbetes absoluta e encantadoramente desatualizados. Agora que a Britannica deixou de ser publicada em papel e migrou inteirinha para a internet, só me resta o prazer táctil de folhear a minha velha prensagem da obra. Não posso evitar ser um ser pré-internético, pré-google, pré-instagram e o diabo a quatro.

Em um desses meus acessos incuráveis de nostalgia, cometi o crime de visitar a biblioteca pública do meu bairro. Cheguei de mansinho, talvez pensando em reencontrar nas prateleiras os livros que mais me influenciaram e emocionaram. Topei com prateleiras de metal com volumes empoeirados à espera de um leitor que nunca mais apareceu. O lugar estava oco. A bibliotecária me atendeu com aquela suave descortesia típica dessa categoria profissional, como se o visitante fosse um intruso a ser tolerado, mas não absolvido. Eu sei que as bibliotecárias, entre suas muitas funções hoje em dia, sentem-se na obrigação de ocultar os volumes mais raros de suas respectivas bibliotecas. Bibliotecas mais escondem do que mostram. Há depósitos ou estantes secretas vedadas aos visitantes. São as melhores – e, graças às bibliotecárias, você jamais chegará a elas. 

Na recepção daquela pequenina biblioteca municipal, eu me senti uma assombração do passado a importunar a ordem do agora. 

Lang Lang é farsante ou a crítica faz lenga-lenga?

O pianista chinês Lang Lang, de 30 anos, é uma personalidade mundial. Embaixador da Unicef, conselheiro do Carnegie Hall de Nova York e artista consagrado, com contrato com o selo Deutsche Grammophon. Acima de tudo, é um virtuose exagerado, que altera as partituras que interpreta à vontade, e que imprime a cada execução um toque expressivo, muitas vezes arrebatado. Ele é, portanto, um alvo fácil para a crítica cevada nos ideais de clareza de digitação de Glenn Gould e Alfred Brendel. A crítica brasileira – ou o que resta dela – malhou os recitais de Lang Lang domingo e terça-feira por causa de suas visões exacerbadas das obras. A crítica errou. Na realidade, Lang Lang soprou vida em peças mais do que desgastadas de Bach, Schubert e Chopin. Dar vida a múmias sonoras virou pecado?
Pelo jeito, virou. Mas o que o público aplaudiu de pé e clamou por bis na Sala São Paulo na última terça-feira não foi uma miragem. Lang Lang ofereceu uma aventura de expressão através da Partita nº 1, em Si bemoll maior BWV.826, de Johann Sebastian Bach, Sonata nº 23, em si bemol maior, D.960, de Franz Schubert, e os 12 Estudos, opus 2, de Frederyk Chopin.
Em Bach, ele explorou os timbres e as possibilidades emocionais que repousam no fundo e adormecidos da escritura de Bach, um compositor tido como mais metafísico que dado a arroubos. Uma abordagem delicada e cantabile da peça, feita originalmente para cravo. Muita gente não gosta do repertório clavecinista no piano, e Lang Lang avança sobre esse preconceito e se dá bem.
Em Schubert, autor de obras abertamente transgressivas e emotivas, o pianista atacou o teclado com fúria de pianista romântico, descabelado. Manteve a tensão ao longo dos quatro movimentos da obra, pontuando as erupções possíveis à vontade. Isso horrorizou muitos ouvidos cultivados na clareza da execução.
Por fim, Lang Lang percorreu o gradus ad Parnassum dos doze estudos de alta interpretação pianística de Chopin, da melodia inicial, evocativa, ao turbulento epílogo. Ele ofereceu uma interpretação ousada do autor romântico, destacando seus traços mais contemporâneos e inquietantes.
A crítica preconiza que as múmias fiquem nos seus sarcófagos, para serem veneradas. Não suporta ouvir modificações em objetos sacros. Sua reação negativa se deve aos hábitos adquiridos. Lang Lang é dono de uma técnica pianística perfeita. Obviamente, tem suas idiossincrasias: salta e dança demais com os dedos, talvez economize demais nos pedais, sente-se livre para explorar uma peça musical. A crítica jamais apreciou artistas que fogem dos paradigmas. Mas o que mais ficou flagrante na segunda passagem de Lang Lang pelo Brasil foi que os críticos madurões não parecem se comover com os arroubos dos jovens. O que é lamentável e decadente.
Luís Antônio Giron

sábado, 12 de maio de 2012

Kepler corre perigo na Biblioteca Nacional

A descoberta de dois exemplares do tratado Harmonices mundi, do astrônomo alemão Johannes Kepler, projeta mundialmente a Biblioteca Nacional – e expõe sua precariedade

LUÍS ANTÔNIO GIRON

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DESCOBERTAS
Retrato póstumo do astrônomo alemão Johannes Kepler, de 1754. Em tratados como Harmonices mundi, ele descreveu as órbitas dos planetas do Sistema Solar (Foto: SSPL/Getty Images)

No fim de março, a Biblioteca Nacional (BN) do Rio de Janeiro divulgou ter encontrado um exemplar raríssimo da primeira edição do tratado Harmonices mundi (A harmonia do mundo), do astrônomo, astrólogo e matemático alemão Johannes Kepler (1571-1630). O volume, datado de 1619, é tão raro que os bibliotecários ficaram ainda mais surpresos ao descobrir que o único outro exemplar da obra na América do Sul estava no acervo da própria Biblioteca Nacional.

Ele fora localizado em 2007 e repousava no setor de obras raras. “Ninguém havia reparado nele”, diz Mônica Rizzo, diretora da BN. A bibliotecária Ana Virgínia Pinheiro, coordenadora da Divisão de Obras Raras, diz que esse é o aspecto mais extraordinário do achado. “O exemplar recém-localizado leva a anotação ‘dobrado’, a forma antiga de identificar um item extra no acervo”, diz ela. “A nota foi escrita no fim do século XIX, quando os exemplares duplicados passaram a ser distribuídos a outras instituições. O livro permaneceu aqui por acaso.”

O duplo achado gerou comoção nos círculos acadêmicos. O diretor de obras raras da Biblioteca do Congresso de Washington, a maior biblioteca do mundo, Clark Evans, disse que se tratava de um evento de “alta relevância” para as Américas. Intelectuais brasileiros reagiram a ela de modo passional. Quando viu o volume “dobrado”, o poeta Marco Lucchesi, da Academia Brasileira de Letras, ajoelhou-se em veneração. “É um livro maravilhoso”, afirma. “Não apenas como objeto, mas pela poética de sua cosmovisão, pelo diálogo ecumênico entre antigos e modernos.”

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OBRAS DUPLICADAS
A página de rosto da primeira edição do livro de Johannes Kepler, recém-descoberta (ao lado). O volume, em restauro, é uma duplicata do exemplar com capa azul achado em 2007 (na página seguinte). A página de rosto e a capa azul estão bem preservadas. O livro traz gravuras que explicam as órbitas dos planetas em torno do Sol e os poliedros que explicam o “segredo do mundo” (Foto: Fotos: reprodução)

Kepler foi a um só tempo astrofísico e metafísico, homem prático e sonhador. Por meio de critérios experimentais e uso de telescópios, Kepler comprovou a teoria heliocêntrica de Copérnico, segundo a qual os planetas giram em torno do Sol. Suas duas primeiras leis, demonstradas na obra Astronomia nova, de 1609, descrevem o movimento planetário em torno do Sol. A primeira afirma que os planetas realizam órbitas na forma de uma elipse. A segunda, que o raio que liga um planeta ao Sol percorre áreas iguais em tempos iguais. Harmonices mundi, a descoberta da BN, é uma obra de sua maturidade. É no capítulo final dessa obra que Kepler formula sua terceira lei, que relaciona os períodos de revolução dos planetas a distâncias médias do Sol. Trata-se de um caso particular da Lei da Gravitação Universal, que seria formulada por Isaac Newton sete décadas depois.

A obra de Kepler fornece ainda uma explicação para a ordem do Universo por meio da geometria e da música. Em Harmonices mundi, tenta demonstrar a noção medieval de música das esferas. As velocidades de um planeta poderiam, de acordo com essa visão, ser traduzidas em proporções harmônicas e intervalos entre os graus da escala musical. O cosmo executaria, segundo Kepler, um gigantesco acorde perfeito. Ele também mostrou, pela primeira vez, que seria possível programar expedições para os planetas. Em sua obra póstuma, Somnium (O sonho), lançada em 1634, narra uma viagem à Lua.

Os exemplares de Harmonices mundi da Biblioteca Nacional apresentam folhas de papel de trapo, mais resistente que o papel normal. Os diagramas e as gravuras são encartados em papel convencional. As notas do autor não figuram no rodapé, mas na lateral, num recurso gráfico chamado de corandel. Nessa primeira edição, realizada pelo tipógrafo Godofredo Tampach, da cidade austríaca de Linz, há erros de paginação. A página 43 na realidade é a 41, e assim por diante. Segundo os bibliófilos, há menos de duas centenas de exemplares da edição original em todo o mundo. Nos Estados Unidos, há somente dois exemplares completos: um na Biblioteca do Congresso e outro na da Universidade Brown. Agora, sabe-se que no Brasil também.

Os dois volumes brasileiros de Kepler foram encontrados pelos bibliotecários no 5o andar do armazém da Divisão de Obras Gerais. O lugar abriga cerca de 30 mil volumes, uma parcela pequena do acervo total. A Biblioteca Nacional – fundação de Direito Público ligada ao Ministério da Cultura, situada no centro do Rio de Janeiro – tem hoje 9 milhões de peças, entre itens impressos, manuscritos, ilustrações, fotografias e outros documentos. Mais de 400 funcionários trabalham ali, inclusive nos fins de semana. É a oitava maior biblioteca pública do mundo. Por isso, nenhum achado é tratado pela direção como tesouro. Até o verbo “descobrir” é proibido no interior dos nove andares do prédio neoclássico, inaugurado em 1911. Segundo Mônica Rizzo, a biblioteca não “descobre” livros raros, mas sim “localiza”. “Se ainda há raridades nas Obras Gerais, elas são inventariadas, identificadas e transferidas ao setor de Obras Raras”, diz Mônica. São consideradas raras apenas as obras publicadas até 1720.

A “operação Kepler”, como os funcionários estão chamando, meio por zombaria, a descoberta dos dois volumes, pode ser apenas a primeira de revelações ainda maiores. A análise do inventário tem trazido à tona raridades insuspeitas. Oito delas foram localizadas por ÉPOCA na base de dados da biblioteca (leia o quadro abaixo). Outras raridades são vetadas ao público e esperam ser reveladas: autos de fé do Santo Ofício, tratados sobre a Inquisição, obras filosóficas, como a Erotika biblion, de Mirabeau, ensaio sobre erotismo lançado em 1792, e as primeiras edições de romances e correspondências. Num setor chamado de “inferno” das Obras Raras, amontoam-se centenas de livros irrecuperáveis. É o caso do primeiro incunábulo (livros impressos e encadernados à mão, lançados antes do ano 1500) prensado em Portugal: um tratado cabalístico em hebraico.

“Pode ser que apareça alguma coisa”, afirma com prudência o presidente da Biblioteca Nacional, o jornalista Galeno Amorim. “Daí a necessidade de investir em segurança e preservação do acervo.” Ele afirma que busca uma parceria privada para acrescentar R$ 4 milhões à dotação orçamentária que recebe anualmente – cerca de R$ 128 milhões – para melhorar a segurança, a preservação e a digitalização dos livros.

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(Foto: reprodução)

O bom senso sugere que a localização de obras de valor inestimável, como os tratados de Kepler, deveria ser motivo de júbilo. Mas não é bem assim. Na Biblioteca Nacional, a descoberta virou motivo de preocupação e até gerou uma crise interna. O estagiário que anunciou o achado na internet e elaborou um estudo sobre Harmonices mundi, o bibliófilo Sylvio Sampaio Siffert, foi demitido por quebra de hierarquia. “Postei um comentário num fórum de discussão de bibliófilos na internet”, diz Siffert. “Repassei o link ao jornal O Globo, que noticiou o achado.” No fórum, Siffert escreveu o seguinte: “O exemplar foi achado pela equipe da Divisão de Obras Gerais, que está inventariando o quinto andar do armazém da BN (...)”. Ele afirma que sua declaração despertou “ciumeira” na coordenadoria, que queria para si os créditos da descoberta. “Fui demitido por perceber a importância da descoberta. Acabei expondo um fato inusitado e a precariedade com que as obras raras são tratadas”, diz.

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ARMAZÉNS DE OBRAS GERAIS Detalhe das estantes de ferro da Divisão de Obras Gerais da Biblioteca Nacional. O 5o andar abriga volumes não registrados da Real Biblioteca (Foto: Guillermo Giansanti/ÉPOCA)

O 5o andar onde Kepler foi encontrado abriga parte do acervo da Real Biblioteca, cerca de 20 mil exemplares. Esses itens formaram o primeiro núcleo da Biblioteca Nacional. A Real Biblioteca foi criada após o terremoto que devastou Lisboa em 1755, a partir de coleções de intelectuais iluministas que apreciavam títulos profanos. Os livros foram trazidos de Lisboa ao Rio de Janeiro em dois lotes, em 1810 e 1811, por ordem do príncipe regente, dom João VI. A primeira sede da Real Biblioteca do Rio foi no hospital da Ordem Terceira do Carmo. Em 29 de outubro de 1810 (data oficial da fundação da instituição), ela foi removida para as catacumbas do hospital. Ali, padres jesuítas tomaram conta do acervo e trataram de encobrir obras que desagradavam à cúpula da Igreja Católica, como os tratados de Kepler ou narrativas eróticas.


“As obras de Kepler passaram despercebidas ao longo dos anos”, diz Ana Virgínia. “Estavam entre muitas salvas da censura e da danação.” O 5o andar está repleto de obras danadas – e sem registro. Segundo um funcionário, apenas um terço de todos os títulos raros e antigos da BN foi registrado. Isso faz da Real Biblioteca um alvo fácil para furtos. “Um ladrão pode levar daqui centenas de raridades sem que ninguém saiba o que foi levado”, diz o funcionário. “Vários furtos insolúveis ocorreram em gestões anteriores.” Há quem culpe os fantasmas. Galeno Amorim diz que correm lendas sobre assombrações no prédio. Além dos espectros e de quatro funcionários que trabalham no andar, é frequentado pelos amantes mais persistentes dos livros: traças, carunchos e toda variedade de insetos. Enquanto os últimos baús de dom João VI aguardam a abertura, sujeira, umidade e pó se acumulam por toda parte. Os bibliotecários reclamam das condições de trabalho e da falta de climatização adequada. “No verão, a temperatura lá chega a 38 graus”, diz Anna Naldi, coordenadora de Obras Gerais. “À noite, o ar-refrigerado é desligado, e o calor naturalmente aumenta.” Siffert, o bibliófilo demitido, chama o andar de “Hades”, o inferno grego, o 2o da BN. “Que a aparição de Kepler sirva de exemplo e de alerta, pois o patrimônio do povo brasileiro corre perigo”, diz. O poeta Marco Lucchesi afirma: “É preciso que os acervos públicos recebam atenção redobrada. Estamos sempre e por toda parte em deficit no que diz respeito à preservação”.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Nem Hitler parou Paris

        Virou chavão afirmar que artistas e intelectuais são temperamentais e imprevisíveis. No entanto, quando se trata de manter a fama e os privilégios com uma mudança de regime político, eles se se apressam em negociar com o poder do modo mais prático, racional e até insidioso. Será que agem com a mesma desenvoltura diante de situações extremas, como tomada de poder ou a invasão de um regime totalitário? A dúvida animou o jornalista anglo-brasileiro Alan Riding a escrever Paris: a festa continou – a vida cultural durante a ocupação nazista, 1940-4 (Companhia das Letras, 448 páginas, R$ 54). O volume, publicado originalmente em inglês em 2009, interpreta e sintetiza o grande volume de informações disponíveis sobre um dos períodos menos compreendidos e, por conseguinte, mais estigmatizados do século XX.

“Eu me perguntava como foi possível Paris, o farol da cultura mundial, render-se aos nazistas”, diz Riding , que está no Brasil para lançar a tradução de seu livro e começar a pesquisa para a biografia do empresário Eike Batista. “Acabei mexendo em tabus até hoje mantidos pelos franceses.”     

Ele diz que a investigação ficou intensa durante dois anos e meia e compreendeu, além de consulta a documentos, dezenas de entrevistas. “Como não sou historiador, tratei de correr atrás de sobreviventes daqueles anos”, diz. “Terminei fazendo uma reportagem sobre o passado distante.” Um passado que, segundo ele, volta à tona periodicamente,como  nos golpes militares da América Latina nos anos 60 e 70 e na atual ascensão da ideologia neonazista e xenófoba entre a juventude da França e da Alemanha. Riding testemunhou várias ascensões e quedas fascistas. Mudou-se para  a França em 1989 para colaborar ao  jornal The New York Times. Nos anos 60 e 70, havia sido correspondente de vários jornais e revistas europeus e americanos no Mèxico e no Brasil. Acompanhou o processo político da América Latina, na transição de ditaduras para regimes democráticos (“Tomei café com José Sarney no palácio da Alvorada”, diz. “Sarney é o único dinossauro preservado até os dias de hoje.”). Também no Brasil, e por duas vezes,no Estado Novo (1937 a 1945)e no regime militar de 1964 a 1985, os artistas tiveram de dançar conforme a música. E isso não foi privilégio dos bracileiros.

No que se refere aos artistas franceses na ocupação nazista, Riding derrubou pelo menos dois mitos em torno da intelligentsia francesa. O primeiro diz respeito à aridez da vida cultural  dquele momento. “Ao contrário das ideias adquiridas sobre o assunto, Paris continuou a publicar livros, a produzir filmes e montar espetáculos”, diz Riding. Depois de poucas semanas da chegada das tropas alemãs, a cidade reabriu seus cabarés, teatros e salas de concerto.

“Na realidade, o ministro da informação nazista Joseph Goebbels tentou manter intacta a reputação cultural de Paris.” A indústria cinematográfica produziu 220 longas-metragens durante os quatro anos de ocupação. Goebbels promovia viagens das estrelas francesas a Berlim, além de banquetes na embaixada alemã de Paris frequentados pela elite de pintores, bailarinos, cineastas, dramaturgos e escritores. Sob a aparência festiva, os nazistas continuavam a praticar censura, vetando obras com conteúdo mais nacionalista. “A censura aos livros se dava por amostragem, e não pegava todo mundo, salvo os autores judeus”. A escritora judia Irène Nemirovsky foi proibida de publicar e, em seguida, enviada ao campo de concentraçãod e Auschwitz, onde foi assassinada. Seu grande livro, o romance Suíte francesa, só foi publicado em 2004. Ao mesmo tempo, autores agressivamente antissemitas, como Louis-Ferdinand Céline e Pierre Drieu La Rochelle, receberam apoio à publicação e divulgação de suas obras de ficção. “Constatei que o ódio aos judeus não era patrimônio dos alemães”, diz Riding. “ele partia de uma parcela grande da população francesa, representada pelo marechal Philippe Pétain, cujo governo era sediado em Vichy. Na realidade, as perseguições mais agressivas partiram da vontade de Vichy, com a aprovação tácita de Berlim.”  

O segundo mito afirma que a resistência contra o nazismo teve ampla maioria dos intelectuais. Não foi bem assim. O movimento, de acordo com Riding, contou com pouquíssima adesão e demorou até se impor. Muitos intelectuais se vangloriaram depois da Segunda Guerra Mundial de sua participação na résistance. Foi o caso de Jean-Paul Sartre, que não comparecia a reuniões secretas; estava mais preocupado em lançar seus livros, mas, depois da guerra, vendeu-se como herói da resistência. Em contrapartida, colaboracionistas como o ator Sacha Guitry e Céline, sofreram julgamentos públicos, mas seus casos foram vagarosamente abafados.

“Os intelectuais e artistas costumam manter um jogo ambíguo com o poder”,a firma Riding. “Quando se trata de regimes autoritários, a ambivalência se torna ainda mais intensa. Acontece uma polaridade entre grupos minoritários: há uma minoria que se aproveita e adere ao regime para proveito próprio, e outra minoria que radicaliza à esquerda e enfrenta o regime. Entre os dois pólos, a grande maioria permanece sem tomar posições claras, e mesmo aqueles que se opõem ideologicamente acabam fingindo para continuar a trabalhar. Aconteceu na França e se repetiu em diversos regimes totalitários, em especial o latino-americano dos anos 60 e 70. O avanço da direita na Europa, em especial na França, pode reencenar esse jogo ambíguo."