sexta-feira, 11 de maio de 2012

Nem Hitler parou Paris

        Virou chavão afirmar que artistas e intelectuais são temperamentais e imprevisíveis. No entanto, quando se trata de manter a fama e os privilégios com uma mudança de regime político, eles se se apressam em negociar com o poder do modo mais prático, racional e até insidioso. Será que agem com a mesma desenvoltura diante de situações extremas, como tomada de poder ou a invasão de um regime totalitário? A dúvida animou o jornalista anglo-brasileiro Alan Riding a escrever Paris: a festa continou – a vida cultural durante a ocupação nazista, 1940-4 (Companhia das Letras, 448 páginas, R$ 54). O volume, publicado originalmente em inglês em 2009, interpreta e sintetiza o grande volume de informações disponíveis sobre um dos períodos menos compreendidos e, por conseguinte, mais estigmatizados do século XX.

“Eu me perguntava como foi possível Paris, o farol da cultura mundial, render-se aos nazistas”, diz Riding , que está no Brasil para lançar a tradução de seu livro e começar a pesquisa para a biografia do empresário Eike Batista. “Acabei mexendo em tabus até hoje mantidos pelos franceses.”     

Ele diz que a investigação ficou intensa durante dois anos e meia e compreendeu, além de consulta a documentos, dezenas de entrevistas. “Como não sou historiador, tratei de correr atrás de sobreviventes daqueles anos”, diz. “Terminei fazendo uma reportagem sobre o passado distante.” Um passado que, segundo ele, volta à tona periodicamente,como  nos golpes militares da América Latina nos anos 60 e 70 e na atual ascensão da ideologia neonazista e xenófoba entre a juventude da França e da Alemanha. Riding testemunhou várias ascensões e quedas fascistas. Mudou-se para  a França em 1989 para colaborar ao  jornal The New York Times. Nos anos 60 e 70, havia sido correspondente de vários jornais e revistas europeus e americanos no Mèxico e no Brasil. Acompanhou o processo político da América Latina, na transição de ditaduras para regimes democráticos (“Tomei café com José Sarney no palácio da Alvorada”, diz. “Sarney é o único dinossauro preservado até os dias de hoje.”). Também no Brasil, e por duas vezes,no Estado Novo (1937 a 1945)e no regime militar de 1964 a 1985, os artistas tiveram de dançar conforme a música. E isso não foi privilégio dos bracileiros.

No que se refere aos artistas franceses na ocupação nazista, Riding derrubou pelo menos dois mitos em torno da intelligentsia francesa. O primeiro diz respeito à aridez da vida cultural  dquele momento. “Ao contrário das ideias adquiridas sobre o assunto, Paris continuou a publicar livros, a produzir filmes e montar espetáculos”, diz Riding. Depois de poucas semanas da chegada das tropas alemãs, a cidade reabriu seus cabarés, teatros e salas de concerto.

“Na realidade, o ministro da informação nazista Joseph Goebbels tentou manter intacta a reputação cultural de Paris.” A indústria cinematográfica produziu 220 longas-metragens durante os quatro anos de ocupação. Goebbels promovia viagens das estrelas francesas a Berlim, além de banquetes na embaixada alemã de Paris frequentados pela elite de pintores, bailarinos, cineastas, dramaturgos e escritores. Sob a aparência festiva, os nazistas continuavam a praticar censura, vetando obras com conteúdo mais nacionalista. “A censura aos livros se dava por amostragem, e não pegava todo mundo, salvo os autores judeus”. A escritora judia Irène Nemirovsky foi proibida de publicar e, em seguida, enviada ao campo de concentraçãod e Auschwitz, onde foi assassinada. Seu grande livro, o romance Suíte francesa, só foi publicado em 2004. Ao mesmo tempo, autores agressivamente antissemitas, como Louis-Ferdinand Céline e Pierre Drieu La Rochelle, receberam apoio à publicação e divulgação de suas obras de ficção. “Constatei que o ódio aos judeus não era patrimônio dos alemães”, diz Riding. “ele partia de uma parcela grande da população francesa, representada pelo marechal Philippe Pétain, cujo governo era sediado em Vichy. Na realidade, as perseguições mais agressivas partiram da vontade de Vichy, com a aprovação tácita de Berlim.”  

O segundo mito afirma que a resistência contra o nazismo teve ampla maioria dos intelectuais. Não foi bem assim. O movimento, de acordo com Riding, contou com pouquíssima adesão e demorou até se impor. Muitos intelectuais se vangloriaram depois da Segunda Guerra Mundial de sua participação na résistance. Foi o caso de Jean-Paul Sartre, que não comparecia a reuniões secretas; estava mais preocupado em lançar seus livros, mas, depois da guerra, vendeu-se como herói da resistência. Em contrapartida, colaboracionistas como o ator Sacha Guitry e Céline, sofreram julgamentos públicos, mas seus casos foram vagarosamente abafados.

“Os intelectuais e artistas costumam manter um jogo ambíguo com o poder”,a firma Riding. “Quando se trata de regimes autoritários, a ambivalência se torna ainda mais intensa. Acontece uma polaridade entre grupos minoritários: há uma minoria que se aproveita e adere ao regime para proveito próprio, e outra minoria que radicaliza à esquerda e enfrenta o regime. Entre os dois pólos, a grande maioria permanece sem tomar posições claras, e mesmo aqueles que se opõem ideologicamente acabam fingindo para continuar a trabalhar. Aconteceu na França e se repetiu em diversos regimes totalitários, em especial o latino-americano dos anos 60 e 70. O avanço da direita na Europa, em especial na França, pode reencenar esse jogo ambíguo."

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