sábado, 12 de maio de 2012

Kepler corre perigo na Biblioteca Nacional

A descoberta de dois exemplares do tratado Harmonices mundi, do astrônomo alemão Johannes Kepler, projeta mundialmente a Biblioteca Nacional – e expõe sua precariedade

LUÍS ANTÔNIO GIRON

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DESCOBERTAS
Retrato póstumo do astrônomo alemão Johannes Kepler, de 1754. Em tratados como Harmonices mundi, ele descreveu as órbitas dos planetas do Sistema Solar (Foto: SSPL/Getty Images)

No fim de março, a Biblioteca Nacional (BN) do Rio de Janeiro divulgou ter encontrado um exemplar raríssimo da primeira edição do tratado Harmonices mundi (A harmonia do mundo), do astrônomo, astrólogo e matemático alemão Johannes Kepler (1571-1630). O volume, datado de 1619, é tão raro que os bibliotecários ficaram ainda mais surpresos ao descobrir que o único outro exemplar da obra na América do Sul estava no acervo da própria Biblioteca Nacional.

Ele fora localizado em 2007 e repousava no setor de obras raras. “Ninguém havia reparado nele”, diz Mônica Rizzo, diretora da BN. A bibliotecária Ana Virgínia Pinheiro, coordenadora da Divisão de Obras Raras, diz que esse é o aspecto mais extraordinário do achado. “O exemplar recém-localizado leva a anotação ‘dobrado’, a forma antiga de identificar um item extra no acervo”, diz ela. “A nota foi escrita no fim do século XIX, quando os exemplares duplicados passaram a ser distribuídos a outras instituições. O livro permaneceu aqui por acaso.”

O duplo achado gerou comoção nos círculos acadêmicos. O diretor de obras raras da Biblioteca do Congresso de Washington, a maior biblioteca do mundo, Clark Evans, disse que se tratava de um evento de “alta relevância” para as Américas. Intelectuais brasileiros reagiram a ela de modo passional. Quando viu o volume “dobrado”, o poeta Marco Lucchesi, da Academia Brasileira de Letras, ajoelhou-se em veneração. “É um livro maravilhoso”, afirma. “Não apenas como objeto, mas pela poética de sua cosmovisão, pelo diálogo ecumênico entre antigos e modernos.”

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OBRAS DUPLICADAS
A página de rosto da primeira edição do livro de Johannes Kepler, recém-descoberta (ao lado). O volume, em restauro, é uma duplicata do exemplar com capa azul achado em 2007 (na página seguinte). A página de rosto e a capa azul estão bem preservadas. O livro traz gravuras que explicam as órbitas dos planetas em torno do Sol e os poliedros que explicam o “segredo do mundo” (Foto: Fotos: reprodução)

Kepler foi a um só tempo astrofísico e metafísico, homem prático e sonhador. Por meio de critérios experimentais e uso de telescópios, Kepler comprovou a teoria heliocêntrica de Copérnico, segundo a qual os planetas giram em torno do Sol. Suas duas primeiras leis, demonstradas na obra Astronomia nova, de 1609, descrevem o movimento planetário em torno do Sol. A primeira afirma que os planetas realizam órbitas na forma de uma elipse. A segunda, que o raio que liga um planeta ao Sol percorre áreas iguais em tempos iguais. Harmonices mundi, a descoberta da BN, é uma obra de sua maturidade. É no capítulo final dessa obra que Kepler formula sua terceira lei, que relaciona os períodos de revolução dos planetas a distâncias médias do Sol. Trata-se de um caso particular da Lei da Gravitação Universal, que seria formulada por Isaac Newton sete décadas depois.

A obra de Kepler fornece ainda uma explicação para a ordem do Universo por meio da geometria e da música. Em Harmonices mundi, tenta demonstrar a noção medieval de música das esferas. As velocidades de um planeta poderiam, de acordo com essa visão, ser traduzidas em proporções harmônicas e intervalos entre os graus da escala musical. O cosmo executaria, segundo Kepler, um gigantesco acorde perfeito. Ele também mostrou, pela primeira vez, que seria possível programar expedições para os planetas. Em sua obra póstuma, Somnium (O sonho), lançada em 1634, narra uma viagem à Lua.

Os exemplares de Harmonices mundi da Biblioteca Nacional apresentam folhas de papel de trapo, mais resistente que o papel normal. Os diagramas e as gravuras são encartados em papel convencional. As notas do autor não figuram no rodapé, mas na lateral, num recurso gráfico chamado de corandel. Nessa primeira edição, realizada pelo tipógrafo Godofredo Tampach, da cidade austríaca de Linz, há erros de paginação. A página 43 na realidade é a 41, e assim por diante. Segundo os bibliófilos, há menos de duas centenas de exemplares da edição original em todo o mundo. Nos Estados Unidos, há somente dois exemplares completos: um na Biblioteca do Congresso e outro na da Universidade Brown. Agora, sabe-se que no Brasil também.

Os dois volumes brasileiros de Kepler foram encontrados pelos bibliotecários no 5o andar do armazém da Divisão de Obras Gerais. O lugar abriga cerca de 30 mil volumes, uma parcela pequena do acervo total. A Biblioteca Nacional – fundação de Direito Público ligada ao Ministério da Cultura, situada no centro do Rio de Janeiro – tem hoje 9 milhões de peças, entre itens impressos, manuscritos, ilustrações, fotografias e outros documentos. Mais de 400 funcionários trabalham ali, inclusive nos fins de semana. É a oitava maior biblioteca pública do mundo. Por isso, nenhum achado é tratado pela direção como tesouro. Até o verbo “descobrir” é proibido no interior dos nove andares do prédio neoclássico, inaugurado em 1911. Segundo Mônica Rizzo, a biblioteca não “descobre” livros raros, mas sim “localiza”. “Se ainda há raridades nas Obras Gerais, elas são inventariadas, identificadas e transferidas ao setor de Obras Raras”, diz Mônica. São consideradas raras apenas as obras publicadas até 1720.

A “operação Kepler”, como os funcionários estão chamando, meio por zombaria, a descoberta dos dois volumes, pode ser apenas a primeira de revelações ainda maiores. A análise do inventário tem trazido à tona raridades insuspeitas. Oito delas foram localizadas por ÉPOCA na base de dados da biblioteca (leia o quadro abaixo). Outras raridades são vetadas ao público e esperam ser reveladas: autos de fé do Santo Ofício, tratados sobre a Inquisição, obras filosóficas, como a Erotika biblion, de Mirabeau, ensaio sobre erotismo lançado em 1792, e as primeiras edições de romances e correspondências. Num setor chamado de “inferno” das Obras Raras, amontoam-se centenas de livros irrecuperáveis. É o caso do primeiro incunábulo (livros impressos e encadernados à mão, lançados antes do ano 1500) prensado em Portugal: um tratado cabalístico em hebraico.

“Pode ser que apareça alguma coisa”, afirma com prudência o presidente da Biblioteca Nacional, o jornalista Galeno Amorim. “Daí a necessidade de investir em segurança e preservação do acervo.” Ele afirma que busca uma parceria privada para acrescentar R$ 4 milhões à dotação orçamentária que recebe anualmente – cerca de R$ 128 milhões – para melhorar a segurança, a preservação e a digitalização dos livros.

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(Foto: reprodução)

O bom senso sugere que a localização de obras de valor inestimável, como os tratados de Kepler, deveria ser motivo de júbilo. Mas não é bem assim. Na Biblioteca Nacional, a descoberta virou motivo de preocupação e até gerou uma crise interna. O estagiário que anunciou o achado na internet e elaborou um estudo sobre Harmonices mundi, o bibliófilo Sylvio Sampaio Siffert, foi demitido por quebra de hierarquia. “Postei um comentário num fórum de discussão de bibliófilos na internet”, diz Siffert. “Repassei o link ao jornal O Globo, que noticiou o achado.” No fórum, Siffert escreveu o seguinte: “O exemplar foi achado pela equipe da Divisão de Obras Gerais, que está inventariando o quinto andar do armazém da BN (...)”. Ele afirma que sua declaração despertou “ciumeira” na coordenadoria, que queria para si os créditos da descoberta. “Fui demitido por perceber a importância da descoberta. Acabei expondo um fato inusitado e a precariedade com que as obras raras são tratadas”, diz.

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ARMAZÉNS DE OBRAS GERAIS Detalhe das estantes de ferro da Divisão de Obras Gerais da Biblioteca Nacional. O 5o andar abriga volumes não registrados da Real Biblioteca (Foto: Guillermo Giansanti/ÉPOCA)

O 5o andar onde Kepler foi encontrado abriga parte do acervo da Real Biblioteca, cerca de 20 mil exemplares. Esses itens formaram o primeiro núcleo da Biblioteca Nacional. A Real Biblioteca foi criada após o terremoto que devastou Lisboa em 1755, a partir de coleções de intelectuais iluministas que apreciavam títulos profanos. Os livros foram trazidos de Lisboa ao Rio de Janeiro em dois lotes, em 1810 e 1811, por ordem do príncipe regente, dom João VI. A primeira sede da Real Biblioteca do Rio foi no hospital da Ordem Terceira do Carmo. Em 29 de outubro de 1810 (data oficial da fundação da instituição), ela foi removida para as catacumbas do hospital. Ali, padres jesuítas tomaram conta do acervo e trataram de encobrir obras que desagradavam à cúpula da Igreja Católica, como os tratados de Kepler ou narrativas eróticas.


“As obras de Kepler passaram despercebidas ao longo dos anos”, diz Ana Virgínia. “Estavam entre muitas salvas da censura e da danação.” O 5o andar está repleto de obras danadas – e sem registro. Segundo um funcionário, apenas um terço de todos os títulos raros e antigos da BN foi registrado. Isso faz da Real Biblioteca um alvo fácil para furtos. “Um ladrão pode levar daqui centenas de raridades sem que ninguém saiba o que foi levado”, diz o funcionário. “Vários furtos insolúveis ocorreram em gestões anteriores.” Há quem culpe os fantasmas. Galeno Amorim diz que correm lendas sobre assombrações no prédio. Além dos espectros e de quatro funcionários que trabalham no andar, é frequentado pelos amantes mais persistentes dos livros: traças, carunchos e toda variedade de insetos. Enquanto os últimos baús de dom João VI aguardam a abertura, sujeira, umidade e pó se acumulam por toda parte. Os bibliotecários reclamam das condições de trabalho e da falta de climatização adequada. “No verão, a temperatura lá chega a 38 graus”, diz Anna Naldi, coordenadora de Obras Gerais. “À noite, o ar-refrigerado é desligado, e o calor naturalmente aumenta.” Siffert, o bibliófilo demitido, chama o andar de “Hades”, o inferno grego, o 2o da BN. “Que a aparição de Kepler sirva de exemplo e de alerta, pois o patrimônio do povo brasileiro corre perigo”, diz. O poeta Marco Lucchesi afirma: “É preciso que os acervos públicos recebam atenção redobrada. Estamos sempre e por toda parte em deficit no que diz respeito à preservação”.

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