terça-feira, 27 de outubro de 2009

O segredo dos palestrantes

O que seria do mundo sem os palestrantes? Talvez um lugar melhor. Você já deve ter reparado como esta cidade virou alvo privilegiado deles. De epidemia nos anos 90, passou a endemia incurável.. E o assédio é de 7 dias por semana, 24 horas por dia. De repémte você está no emprego e o RH faz a convocação para todos assistirem a uma palestra sobre as lições do boto amazônico para a liderança. Abundam especialistas em generalidades as mais inimigináveis: esportistas falam das lições de vitória aplicadas ao trabalho; ex-filósofos montam cursos de treinamento para atendentes de telemarketing...
Todo acadêmico fracassado percebe que fazer palestra em empresa é lucrativo. Conheço vários gênios promissores na universidade que desistiram dos ideais para faturar alto. Não os condeno, porque a carreira universitária é mal-remunerada e frustrante, e não há boa instituição que escape da pasmaceira e da rede de inveja. Acaba sendo mais lucrativo discorrer superficialmente sobre assuntos no qual o acadêmico se aprimorou, mesmo que para uma audiênica de zé-manés. Estes formam o público-alvo dos palestrantes, já que a formação no Brasil é mais que deficiente..
Em terra de cego, palestrante é pensador. Os olhinhos brilham quando ele discorre sobre superação e cita neurolinguística, psicanálise ou uma proposição de Wittgenstein. O público se sente recompensado, mesmo que seja com vidrinhos de mais falso brilho intelectual. “Vou usar este aforismo na próxima reunião!”, pensa o gerente que assiste à apresentação.
As palestras são aulas-shows divertidas, até porque os especialistas usam datashow para projetar figurinhas e frases de efeito, em corpo bem grande, para todo mundo entender. Cada conferencista guarda o seu sistema de exibição. Há o piadista ou o que faz passos de funk para acordar a patuleia..Também tem o palestrante professoral, defendendo autoajuda como se fosse doutorado em Oxford.
Que reis do sofisma ele são. Usam exemplos para sustentar um argumento assertivo que em geral não se apoia na realidade. Os palestrantes vendem tudo como se fosse “o Segredo”: da força do pensamento positivo à Arte da Guerra de Sun Tzu, do Cristo à física quântica..
As pessoas já não creem em mais nada nem têm padrões éticos ou lógicos claros. O restulado é que viraram reféns do engano. Os palestrantes preenchem a lacuna da nossa ignorância. O problema é a superpopulação desses sábios de araque. Daqui a pouco serão tantos que vai ter gente bradando manual corporativo na rua, feito pregador de Bíblia.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Solidão embutida

Tenho visto nos trens e ônibus pessoas que conseguem usar o tempo para ouvir música. Antigamente era difícil topar com alguém de pé, absorto em uma música. Tudo ficou mais fácil.com a popularização dos tocadores de mp3. Agora você pode embarcar num ônibus da periferia e deparar com pelo menos cinco pessoas silenciosas, com o olhar oco, prestando atenção nas suas canções favoritas. Isso não acontecia aqui cinco anos atrás, e eu já havia notado o fenômeno do mp3 no metrô de Nova York e nos ônibus londrinos. A sensação inicial foi de estranhamento.
As tecnologias mudam os hábitos. Mesmo com todas as vantagens, os tocadores digitais criaram a mais terrível forma de isolamento urbano: ouvir música em volume alto sem que os outros notem ou se irritem. Eu me pergunto se essa mudança é positiva. A música educa e altera a sensibilidade. Mas os tocadores de mp3 estão gerando novas espécies de zumbis urbanos. As pessoas embutiram a solidão e agora dialogam menos. Ouvir música sem prestar atenção nos barulhos em torno é a forma mais triste de andar sozinho, de evitar contato.
Para demonstrar minha tese, fiz um teste e percorri o mesmo trecho – cerca de 200 metros, atravessando o Terminal Parque Dom Pedro II - várias vezes, nos horários de maior movimento. Em cada uma, toquei um estilo de música. Escutei o som dançante de Rihanna e tudo me pareceu eufórico, mesmo quando notei que um sujeito me seguia. Curti as canções melosas de James Blunt e quase dormi enquanto a multidão me dava encontrões. Ouvi o Acústico MTV de Paulinho da Viola e me deu pena da miséria. Prestei atenção na monumental Sinfonia nº 6 de Anton Bruckner, e as pessoas pegando ônibus me lembraram a mecanização do filme Metrópolis, de Fritz Lang, mas elas estavam marchando em protesto..
Nessas quatro andadas no mesmo trecho, sob condições parecidas, o passeio ganhou ares de variedade. Foram pelo menos quatro significados para o mesmo evento: festa, meditação, crítica social e saga épica. Isso quer dizer que a solidão sonora injetou no meu cérebro várias realidades virtuais a partir do mesmo ambiente real. O mp3 player separou o mundo concreto do universo dos signos, aquilo que eu via do que eu imaginava. E juntou elementos distintos de forma inaudita. Isolado em minhas preferências no meio da multidão, eu me senti delirando, num curto-circuito existencial. Resolvi deixar o aparelhinho em casa. Vou voltar aos de barulhos do mundo.

sábado, 24 de outubro de 2009

Crônica: modo de operar

Gente me para na guia da calçada só para comentar o último texto que fiz publicar neste jornal. Imagino que isso aconteça com outros cronistas deste e de outros periódicos. É uma experiência estimulante e nova, pelo menos para mim, que nunca antes havia tentado escrever sobre a cidade. Fazer crônica envolve atos de compreensão (e ocultação) mútua entre aquele que escreve e aquele que lê.

Devo dizer que há muito tempo sou cronista, mas de espetáculos, discos, filmes e livros. A esse tipo de cronista cultural denomina-se crítico. O crítico é alvo de sentimentos extremos. Ou é detestado ou amado – e o pior que lhe pode acontecer está em ser ignorado pelo leitor. A indiferença lhe é mortal. O crítico faz um esforço para aparecer, à custa de resenhas de obras de arte alheias.

A exemplo dos críticos, os cronistas também mendigam atenção. Acredito que os cronistas da cidade surgiram dos resenhistas. Em um belo dia, talvez em Paris ou Londres no século XIX, o assunto artístico faltou, a ópera deixou de ser apresentada. Como conseqüência, o jornalista encarregado de cobrir a vida cultural da cidade – era chamado de folhetinista – ficou sem outra opção que ir para fora ver no que dava. A crônica nasceu da ausência do que dizer e que fazer. O romance de folhetim também, com a vantagem de não precisar recorrer ao mundo real.

Assim, o cronista pode ser definidio como uma espécie de crítico sem obra de arte, de romancista a suaves prestações. Ou então, um crítico que atribui à vida cotidiana a condição de obra artística. Para arrancar do chão uma observação ou um olhar que interesse ao leitor, ele precisa suar a camiseta. Deve possuir habilidade literária e ficar atento ao mundo que o rodeia, ser sensível e dotado de presença de espírito.

Não é fichinha reunir tantos pré-requisitos em uma cidade que mais isola que reúne, dispersa mais que prende a atenção. Num tal ambiente, o desafio do cronista parece invencível. Talvez seja mais suave falar de uma cidade cercada de história e paisagens bonitas por todos os lados. Mas o esforço de revelar os detalhes ocultos em um lugar turbulento como este fornece ao cronista uma razão de existir e conversar com o leitor. A crônica não passa de uma arte menor, rezam os especialistas. Eu não a vejo assim. Para mim, ela é o sudoku poético das ruas: um jogo de decifração.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Capital dos pombais

O destino dos bairros de São Paulo é verticalizar. Tudo tende a ser substituído por um imenso pombal branco e cinza. Pombais é como a gente chama pejorativamente essas torres que andam brotando por aí, nos lugares mais absurdos. Surgem no meio de uma favela, ou no coração de uma vila tradicional. Os pombais estão varrendo SP de Leste a Oeste.
Conto o que vejo. No início do ano, fui convidado a participar de uma reunião da comunidade da capela de São Miguel Arcanjo, no Belenzinho. Na pauta, o futuro do bairro. Isso porque a Zona Leste já não é a mesma. As humildes casas térreas estão indo embora. No lugar, chegam os prédios – e, com eles, novos moradores. Como abrigar tanta gente numa capelinha fundada por uma família na década de 1930? O dilema daquelas pessoas é escolher entre se isolar num gueto ou converter a capela numa igreja. Gueto está fora de questão, avisou o padre. Eu me meti na história e retruquei: será que a ampliação não significa o fim da paróquia e a substituição por outra realidade?
A História marcha apesar dos nossos desejos. Viver no século XXI tira o fôlego. Alguém se lembra de Moema vinte anos atrás? O bairro ainda lembrava uma cidade do interior, com sobrados, praças, lojas e prédios médios. Outro dia tentei passear por lá e me espantei com edifícios residenciais de 20 e 30 andares. É impossível reconhecer alguns trechos antes familiares. Os prédios que pareciam grandes hoje são anões perto dos condomínios monstruosos. E o meu hábito de andar pelo meio-fio virou esporte radical por lá...
E assim a paisagem urbana vai mudando. Fui atrás de horizontes na Praça do Por-do-Sol, em Pinheiros. Encontrei só prédios surgindo ao longe, como bombas de efeito retardado. No início parecem inofensivos, mas logo o trânsito adensa, a aparência enfeia, sol desaparece, o vento sopra e apaga a esperança de uma cidade civilizada.
O emblema do futuro de SP reside no passado. Mora na avenida do Estado, no Centro. Trata-se do edifício São Vito. Construído em 1959, ele foi o precursor dos torreões que enxameiam o espaço urbano. Com 27 andares e 3 mil moradores, o prédio virou cortiço vertical. Agora a Prefeitura estuda sua demolição e a reurbanização da área.Aí eu me lembro daquele verso de canção: se for pra desfazer, porque é que fez? Se é para um dia a gente ter de recuperar a paisagem perdida, para que fazer o que será desfeito? Já sabemos o final do enredo dos pombais nascentes. Eles vão destruir a arquitetura e o resto de verde e poesia da cidade. Basta contemplar o São Vito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Choque de zonas

Em qualquer cidade, a divisão do território do município em zonas deriva de uma decisão do plano diretor. Mas em São Paulo essas diferenças formais se traduzem em ilusões de identidade. A vastidão da mancha urbana faz com que os habitantes de cada região tentem se encaixar em uma série de características e valores comuns. E assim compartilham culturas distintas entre si. Não se trata de um apartheid ou um zoneamento de classes, embora a origem da Zona Leste seja proletária e a Zona Sul abrigue as mansões e prédios mais ricos. Mas hoje em dia o Tatuapé da ZL é quase um bairro nobre, e do ladinho do Morumbi espalham-se favelas gigantescas. Como as camadas sociais se misturam, resta aos habitantes de cada área se agarrar a uma série de traços distintivos, como modo de falar, comportar-se e até enxergar o mundo.
Quantas vezes não me disseram que o pessoal da Zona Leste é mais simpático e atencioso que os cruéis esnobes da Sul, ou que aquela menina possui um sotaque meio caipira da Oeste? Na periferia, os membros ricos e pobres das cooperativas culturais recebem gente de outros lugares como extracomunitários.
Um amigo meu chamado Tonico costuma jurar que a Zona Norte é a origem de todos os males que infestam o município, de sinistros a indivíduos inescrupulosos, passando pelas frentes frias e tempestades. E o mais curioso é que ele consegue provar que todos os mosquitos e dias nublados nascem e se criam no Tremembé, e de lá partem com o fito de aterrorizar a cidade inteira. No final de demonstração, Tonico dispara, com seu acento de paulistano tradicional, com o “erre” marcado: “Você pode notar que o que digo é verdade. De onde vieram os piores casos criminais ultimamente? Batata: da Zona Norte!”
Talvez seja paranóia ou bairrismo. Porque Tonico é natural da região oposta, a Sul.... e nunca pôs os pés em Santana. Toda vez que cruza a fronteira dos Jardins, diz que se sente um forasteiro na própria terra natal. Segundo ele, as falas, hábitos, as modas, as filosofias, tudo muda... Tanto que ele decidiu sofrer por amor no próprio bairro, para não experimentar choque cultural. Quando quer ver coisa diferente, vai à ZL como se fizesse um safári no Zimbábue. Nas profundezas de Vila Unhokuné e adjacências, Tonico age como um orientalista que se deparasse com exotismo em cada esquina. “Na ZL, me chamam de americano e na ZN, sou africano!”, orgulha-se.
Eu, que não nasci aqui, acho insignificantes todas as supostas diferenças culturais entre quadrantes. Mas quem sabe não esteja notando o quanto se alterou o meu jeito de ser e falar nestas minhas três décadas de Oeste...

Datas extremas

Durante mais de dois dois anos, segui pelo meio-fio, persegui o que não se via ou não se queria ver, aqui da fronteira, do hífen que separa ou une a rua e a calçada. Anotei tudo à mão, no meu caderno de bolso, enquanto ia andando com o olhar atento, ou sonolento, ou desencantado.
Flagrei favelas destruídas para dar lugar a torres gigantes; políticas públicas sem pé nem cabeça; personagens e amigos que surgiram ou morreram; experiências tragicômicas de chuvas, festivais, bares e tropeços, dramas em filmes e em jogos de futebol; retratos de papagaios e cães. Conversei com o Sr. Trema sobre a nova ortografia; falei do paulistanês, dos andarilhos, dos catadores de papel, dos mágicos, dos mendigos que povoam as ruas. Refleti sobre a crônica e a vida do escritor nas redações. Recordei uma São Paulo byroniana e romãntica que não vivi, mas conheci por tabela. Fiz uma elegia ao poeta que se foi, contei a história de outro que se escondeu e fingiu morrer. Escrevi um testo que um amigo saudoso gostaria de ter feito. Narrei um encontro com o diabo e com os anjos. E contei um pouco de meus passos, hesitações e implicâncias.
Está é a crônica de número 89. Cheguei a escrever umas 20 outras, que não tive coragem de fazer pubicar, por serem talvez demasiado íntimas, ou simplesmente irrelevantes. Acho que posso até lançar um livro com as que publiquei e as que não ousei revelar. Elas formam um volume, uma obra que desde o início se impôs regras, como a de não mentir, seguir o balanço da inspiração e se resignar a um espaço de 2.500 caracteres. Outra regra dizia respeito ao meu incurável fatalismo: dancei pelo meio-fio entre o que ganhei e o que tinha de perder, como prometi no meu texto inaugural. Eu sabia que um dia os deuses me convidariam à retirada, que haveria datas extremas: 2007-2009. É como na vida, chega o instante de sair de cena. A gente sabe que vai se comover.
Meio-Fio foi um espaço raro de liberdade. Jamais fui censurado ou barrado em minhas ideias, fossem as mais estapafúrdias.. Foi um momento único em meus 26 anos de carreira. Pela primeira vez também posso me despedir. Jornalistas costumam sumir das páginas dos veículos sem informar destino – e deixam o leitor desnorteado. Agora tenho o privilégio de dizer até mais. Para o leitor que quiser “seguir” (termo tão em moda) os rastros deste escrevedor, vai achá-los na internet, em meu blog, no site e nas páginas da revista Época. E também vai me encontrar nas minhas andanças entre calçadas e ruas. As páginas e o tempo podem acabar, mas o cronista é teimoso, e segue a anotar o que vê, sente e pensa...

Avatares no Jardim da Luz

Uma tarde dessas eu passeava pelo Jardim da Luz quando percebi um casal jovem andando de mãos dadas a alguns metros diante de mim, perto do lago. Como sou um incorrigível bisbilhoteiro, prestei atenção no que falavam. Eles trocavam beijos e carinhos e pareciam no início do namoro. A certa altura, escutei ele sussurrar no ouvido da mocinha: "Mal posso esperar para ver como você é online..."
Em que mundo estou vivendo? - pensei com os meus cadarços desamarrados. Quer dizer que o moleque está com a namorada pertinho, mas ele só pensa na aparência dela na internet - no orkut, no messenger ou mesmo no Second Life!?
Enfiei o boné até o os olhos, ultrapassei os casal e segui caminho, pensando no caso. Nestes novos tempos de desejos tecnológicos, o mundo virtual parece ter assumido o aspecto de realidade mais real que a real. Lembrei que ele disse: “ver como você é” e não “como você aparenta”. A vida online é reveladora. Ela desmascara a pessoa offline. Melhor dizendo: a existência via computadores em rede se encontra em um nível superior ao cotidiano de carne e osso. Ela explica, abarca e se torna a verdadeira essência das coisas e dos seres. É como se abolisse a realidade, e os objetos concretos não passassem de mera aparência de um universo acima deles.
Imagino que o casal tenha marcado encontro na Luz do Second Life – e que lá deram um jeito de fazer amor dentro da gruta virtual. Cada um num canto da cidade de aparência (para mim a real), clicando ou apertando obsessivamente o “enter” do computador, para assim atingirem o superorgasmo do casal na tela, bem mais completo que o deste mundo físico de tão poucas variantes e de perfumes, identidades e rostos previsíveis. Online, ligados, os dois assumem seus avatares: ele é um guerreiro ninja; ela, uma princesa com os contornos sensuais de Lara Croft. O prazer da gruta virtual é essencial, ao passo que o prazer possível no mundo da presença física não passa de uma cópia imperfeita. Eis a moça brilhando no monitor, despida de toda as condicionantes humanas. Ei-la online, deslumbrande em sua nudez de fóton, pronta para se entregar ao amado do modo mais profundo e conseqüente, via internet.
Ainda não andei pela SP do Second Life (prometo que entro lá em breve), mas esse ultra-universo me parece uma versão inovadora da caverna de Platão. O filósofo preconizava a superioridade do plano da essência sobre o da aparência. E, nesse ponto, o amor do rapaz na Luz soa platônico: realiza-se apenas quando ele se eleva à essência do que ele imagina ser: o avatar. E seu objeto de desejo, a moça, só pode ganhar vida no ambiente digital.
Esse mundinho novo sem porteira dos avatares não serve para mim, não. Ainda prefiro a imperfeição, o perfume e a sedução da natureza.

Quando Soriano abraçou Waldick

Esta história se passou no tempo em que o diretor deste jornal, Ricardo Anderaos, ainda era chefe de reportagem da Ilustrada. Deu-se no final de 1990, em Belém do Pará. Anderaos enviou este repórter ao Pará para uma missão curiosa: descobrir o local de origem da lambada. O ritmo fazia barulho, e só se falava nos pares sensuass ao som de Beto Barbosa (lembram?).
A investigação foi fácil. Na primeira noite eu já descobria que o ritmo vinha do Caribe. A dança, influenciada pelo lundum marajoara, era praticada nos bregas de Belém - as casas noturnas frequentadas por “gente bem” e por prostitutas. Assim, “brega” virou sinônimo de música tocada nos “bregas”. Era a canção popular romântica antes depreciada como “cafona”. O berço da lambada era o borde.l.
Casimiro, o assessor da gravadora que gravava lambada e brega, tratou de me ciceronear. Em poucas horas a pesquisa se esgotou e eu já não tinha o que fazer. Tinha de ir embora. “Não, de jeito nenhum”, disse. “Temos um pagode no sábado!” Era a festa de aniversário de um empresário local, cujo apelido era Soriano Waldick. “Ele se chama Antônio, acho”, explicou Casimiro. “Mas é o fã número 1 do Waldick Soriano – e, com o tempo, virou sósia e homônimo do Waldick.” Melhor de tudo: Soriano Waldick havia convidado Waldick Soriano para a ocasião, a se realizar numa fazenda nos arredores da cidade. “Você vai adorar a maniçoba que o Soriano vai servir na beira do igarapé!”
Claro que alterei a passagem. No sábado, lá estava eu no carro, batendo papo com o deus do brega: figura incrível, de óculos enormes e chapéu panamá. Na meia hora que durou a viagem até a fazenda, ele me contou sua vida, a infância dura na Bahia e as conquistas amorosas no Programa Sílvio Santos. E o melhor estava por vir.
Ao chegamos à sede da fazenda, deparamos com um homem sorridente e de braços abertos. Tratava-se de uma versão miniaturizada de Waldick, inclusive com o chapéu e os óculos idênticos aos do cantor. Fã e ídolo se abraçaram como irmãos, pois o Waldick já conhecia Soriano.
A tarde foi deliciosa. Não importava o calor tremendo ou as moscas que vinham beliscar a maniçoba. Naquele tempo não havia videokê. No fim da comilança, Soriano levou Waldick para um coreto à beira do rio – e ali, acompanhado de um regional, ele soltou a voz de barítono e desfilou seus sucessos: “Eu não sou cachorro não” , “Tu és meu mundo”, “Tortura de amor”. Que bela voz – e que sinceridade na interpretação! Chamado ao coreto, Soriano Waldick chorou... Não sei se está vivo. Mas tenho a impressão que ele e o ídolo formaram um dueto à beira de um igarapé no céu.

O fascismo antifumo

ar desta cidade está cada vez mais irrespirável. É poluição e emanações pestilenciais vindas de todo os cantos. Daqui a pouco só será possível fazer minhas caminhadas com máscara de oxigênio. Agora o governador baixou a Lei Antifumo, que cria uma brigada de caça-fumantes em locais públicos fechados. Se ele pensava em acabar com a poluição ao eliminar fumaça de tabaco, enganou-se. A fumacinha dos cigarros não passa de um suspiro no cataclisma de poluição. Se o tabaco mata, há fumaças piores assassinando nosso cotidiano. A lei antifumo só presta para criar uma cortina de fumaça de celebridade para quem a baixou.
Com ou sem ela, o Apocalipse respiratório está entre nós. A pouca área verde disponível de São Paulo está sendo devastada até o último arbusto, o último pernilongo, por causa da abertura da área final do Rodoanel. Animais silvestres são mortos, casas são derrubadas e torres erguidas. Criam-se nuvens de poeira por todos os quarteirões.
O City Lapa, onde passeio, foi tombado como patrimônio, mas já é tarde. O que restou do bairro arborizado são algumas ruas cercadas de monstruosos prédios de mais de 30 andares, em empreendimentos lunáticos que vendem a área como playground e cinzeiro dos edifícios. Os novos habitantes desses prédios infestam as praças com seus cigarros, crianças, skatistas e delinquentes. As árvores “tombadas” morrem de asfixia.
Voltando ao tabaco, encontro-me no espaço ao ar livre do Kinoplex Itaim. Sinto fumantes por todo lado, esbaforidos e angustiados, com pavor de sofrer perseguições e olhares reprovadores. Não acho fumantes a melhor companhia, mas não os culpo pelo vício, nem penso que mereçam ser perseguidos como os judeus do gueto de Varsóvia. A lei antifumo tem o mesmo efeito da lei do saquinho de excrementos caninos e da lei seca: é nula. Baseada na autoridade da Medicina, ela exclui, estigmatiza e suprime a liberdade do cidadão. Tabaco agora tem status de drogra pesada. Daqui a pouco será vedado à população soltar gases – por conta do metano, altamente tóxico. Já vi o símbolo: uma bunda atravessada na diagonal por uma tarja negra. Vêm aí os caça-puns.
O governo vai pôr em ação uma divisão especial de fiscais para perseguir fumantes, multá-los e até detê-los, caso necessário. Ainda bem que este não é um país “sério” como dizia o general De Gaulle. Não há fiscal suficiente para marcação homem a homem, como agia a tropa de choque de Mussolini. O fascismo à brasileira provoca gargalhadas. No final, os cães vão continuar a sujar, os bebuns a dirigir e os fumantes a brincar de chaminés... nem que seja molhando a mão das “autoridades”.

Evitemos uns aos outros...

Uma hábito paulistano é praticar uma versão light do pânico social. Trata-se do pânico do outro, a mania que muitas pessoas têm de fazer tudo para evitar se encontrar por acaso com um conhecido, especialmente se faz muito tempo.
Percebi isso no sábado, quando estava numa locadora de DVD (hábito tradicional que tende a desaparecer) e divisei minha velha colega de redação no caixa, pronta para sair. Nossa, fazia uns 15 anos que não via Alice (nome fictício), e, como era uma boa colega, senti vontade de ir lhe dar um abraço e perguntar como estava. Quando fiz menção disso, ela me enxergou com o canto do olhar e deu um jeito de escapar, saindo rapidamente do recinto. Não me lembro de ter tido qualquer problema com ela. Inimigos costumam não se olhar, quando não brigar no instante em que se veem. Um dia eu perdi uma amiga quando ela me ligou, fiquei de retonar dali a 15 minutos – e só me lembrei do telefonema seis meses depois! Adivinhe se hoje eu tenho cara de falar com ela hoje?
Não era o caso de Alice. Nunca discutimos nem, a simpatia era mútua, sempre fomos companheiros de redação. Mas ela ficou com vergonha de me encontrar. Depois desses anos todos, o que dizer e como se comportar? A gente muda, fica mais velha, pode até ficar irreconhecível para os outros. Rola a saia-justa da passagem do tempo.
Ora, entendo Alice. Até porque já fiz dessas. Há não muito tempo, entrei num restaurante e, ao perceber um antigo colega, recuei para não atrapalhar a refeição dele, nem a minha, com conversas tão amenas e como constrangedoras. E não que eu não quisesse encontrá-lo. Era uma questão de timidez associada à falta de assunto e à vergonha de estar diferente em relação ao tempo em que tínhamos uma convivência diária. Algo se perde quando deixamos de bater papo com as pessoas. Perde-se o contato, e a amizade leve se torna mero embaraço. .
Por que a cena se repete tanto nesta cidade? Penso que o fenômeno se deve ao isolamento das pesssoas em seu ambiente de trabalho. Infelizmente, é no trabalho que tudo acontece, de amizades a tremendos arranca-rabos. A fixação no trabaho faz com que a maioria se aliene dos outros, perca os rastros e adquira um medo ancestral de lidar com o passado, suas velhas relações e, portanto, de lidar consigo mesmo. À medida que amadurecemos, vamos perdendo os amigos pelo caminho e deixamos de manter contato, salvo por meio dos sites de relacionamentos, que pasteurizaram a sensação de perda e venceram o bloqueio dos reencontros. Quem sabe num deles eu reencontre Alice e tente conversar. Em carne e osso é mais difícil.

Bafômetro e liberdade

Fui a uma cantina do Bexiga no sábado à noite e fiquei pela primeira vez em dúvida sobre mudar um velho hábito: escolher um vinho para acompanhar a pizza. Ora, esse não era e nem deveria ser um tema para discussões metafísicas ou dilemas morais. Mas a nova Lei Seca me fez pensar um pouco. Só um pouco.
Meu problema não era culpa, mas a possibilidade de ser surpreendido por policiais munidos de bafômetro quando eu estivesse ao volante. E lá estava eu, praticando uma horrível transgressão, diante do olhar severo de minhas filhas. Garçom, que venha o cabernet sauvignon! E aqui faço a confissão do crime: sim, depois de duas taças de vinho e uma margherita, dirigi o carro até minha casa, arriscando o meu pescoço e o de minha família numa noite fria de fim de semana. Não, não adiantaria dizer eu não estava embriagado nem tonto. Eu seria detido!
Vou poupar meu querido leitor de uma aula sobre conduta civil e suas relações com a sobriedade à direção. Também não farei o elogio à contravenção. Não se trata disso. O fato irritante de toda a história de bafômetro no nosso pescoço está no chatérrimo clamor público em torno do assunto. Essas leis tendem a redundar em histeria coletiva - e o resultado é a perda progressiva de direitos mínimos. O cidadão que bebe e comete um acidente não teria já uma pena adequada com a legislação existente? Será que é preciso impor outro pacote de penalidades e submeter os motoristas à humilhação de um teste?
Pergunto isso porque a polícia não é lá grande modelo de conduta. Quantas vezes não vi nossos agentes da lei bebendo alegremente em padarias e bares nas tardinhas de sexta-feira... Agora aboliram a happy hour. Enfim, penso que, se a gente passasse a aplicar o bafômetro nos policiais ou nos funcionários do Detran, talvez não sobrasse ninguém para controlar o insidioso aparelhinho. Estaríamos todos vendo o sol quadrado.
E assim caminha a legislação. Os fumantes, coitados, foram banidos de todos os cantos. Chegou a vez dos bebuns. Daqui a pouco virá uma extensão da Lei Seca para os pedestres. Tenho certeza de que a arrecadação de multas vai aumentar bastante. Animada com os lucros, a polícia poderá inventar um aparelho controlar nossas boas intenções no trânsito, uma espécie de "mentirômetro" para aplicação indolor e imediata. Caso o indivíduo seja assombrado por algum pensamento ruim, ele será imediatamente recolhido ao xilindró.
Enquanto meu vaticínio não se cumpre, proponho um brinde à saúde de nossas instituições - e à nossa liberdade. Garçom, um pro secco, por favor. Depois eu peço uma carona.

O senhor Trema

Ele veio me visitar sem aviso. O senhor Trema não observa a etiqueta atual. Ele vem daquele tempo em que as casas não tinham muros e não havia carros. Pela primeira vez, aquela criatura tão simpáticca me pareceu alquebrada. Seus olhos negros estavam muito tristes. Posso dizer que ele era todo feito de tristeza. Mesmo porque seu ser se resume a dois pontos negros pairando sobre as letras, sobre o mundo. Agora ele estava pairando sobre o sofá da sala, enobrecendo o móvel, assim como ele enobrecia as palavras que costumava acompanhar freqüentemente, e ainda acompanha, até janeiro do ano que vem.
“Meu fim está próximo, meu amigo”, supirou, segurando um choro. “O Lula já assinou o decreto que me extingue da língua portuguesa...”
Tentei acalmá-lo com uma xícara de chá verde. Notei que ele fingiu que gostou, mas chá verde não faz parte de seu código de gentilezas. Teria preferido o breakfast tea à inglesa, servido na chávena...
“Eu fiquei sabendo”, respondi. “Lamento muito. Sempre gostei de você. Mas não há de ser nada, você continua no finlandês, no húngaro e no alemão!”
Que afirmação desastrada, delinqüescente, o pobre senhor Trema se desfez em prantos - como ele diria. Não agüentou segurar a emoção.
Abracei-o, para abafar o choro. Desde que me entendo por alfabetizado, ele me acompanha. Sua presença é eloqüente na minha vida de escrevinhador. Quantas vezes não recorri ao snhor Trema, em crõnicas, contos, reportagens, romances, ensaios? Ele nunca foi apenas um sinal diacrítico, usado para modificar a pronúncia do “u”. Ele foi importante na existência de pessoas que já não estão entre nós. O presidente JK assinou o famoso plano qüinqüenal para o Brasil, aquele que faria um atalho de cinqüenta anos em cinco. E quando eu completar cinqüenta anos, serei obrigado a comemorar “cinquenta”. Essa possibildade de um aniversário sem a graça do trema me deixa qüinqüenérveo...
“Não me conformo”, prossseguiu meu amigo, secando as lágrimas. “Não bastaram os portugueses terem me expulsado no pós-guerra, agora todos os países lusófonos me repudiam. É uma injustiça. Enquanto isso, o “cá”, o dabliú e o ípsilon estão sendo recepcionados de volta ao abecê com honras de estadistas! Você acha que eu mereço essa humilhação?”
“Claro que não, meu amigo. Tome mais um pouco de chá, acalme-se. Eu prometo usar você para sempre, na vida privada e na pública. Mesmo que os textos que eu venha a escrever sejam corrigidos, você vai estar lá, em ausência!”
É claro que isso não serviu de consolo, mas ele esboçou um sorriso cordial, já que senhor Trema é um sinal diacrítico muito educado.
“A gente se vê por aí”, disse ele, enquanto cruzava o portão da minha casa. E me fitou com os olhos negros, numa expressão irônica. “Quando você vai voltar a estudar alemão?”

Padrinhos, cuidado!

É um absurdo. Fui convidado para ser padrinho de casamento. Aparentemente, trata-se de um compromisso dos mais singelos. O padrinho deve comprar um presente e se colocar em posição de sentido no altar. O único privilégio da função é ter um close-up do beijo do casal, além do direito ao banquete - caso haja, pois hoje o padrão é self-service e todo mundo comendo de pé com prato de plástico, antes do pagode eletrônico.
Eu pensava assim até o mês passado, quando me fizeram o convite. Descobri então um mundo novo de obrigações sociais e me tornei presa das mais variadas armadilhas. A começar pelo presente. Hoje está tudo mudado: os noivos querem os presentes mais exorbitantes. Eles “postam” no blog do casal uma lista de presentes, os mais caros do mercado. As lojas indicadas também já estão preparadas para a punhalada. São eletrodomésticos, móveis e outras engenhocas de última geração, a preços nada convidativos. E ai do padrinho se não comprar o melhor item da loja mais cara.
E isso não é tudo. O padrinho é forçado a fazer uma porção de coisas para as quais ele não está preparado. A pior é a roupa. Atualmente não basta você vestir seu melhor terno e se dirigir ao altar. Não. Em nome do sagrado sacramento, o padrinho cai numa arapuca dos diabos.
Os noivos já pensaram em tudo, até nos trajes. Eles me informaram que eu tinha de “tirar as medidas do terno” em uma loja de aluguel de roupas no Tatuapé , do outro lado da cidade! E mais: todos os padrinhos teriam de vestir o mesmo modelo de terno e gravata. O plano era coreografar no altar uma dúzia de padrinhos e suas respectivas mulheres (com longos em cores predeterminadas), fazendo o chorus line para a féerie de um casamento no Belenzinho! De jeito nenhum.
A noiva me ligou suplicando que eu não podia falhar. Engoli em seco e fui ao tal lugar. Estava lotado de padrinhos, vítimas como eu. Provei o terno horrendo – e me prometeram uma gravata acetinada, que não vi. Os noivos só não me contaram que eu teria de voltar lá para apanhar a roupa dois dias antes, pois até então seria usada por outro freguês. E não me avisaram que tudo isso custaria a bagatela de 150 reais, preço de um terno novinho em folha e comprado.
Caí na indústria do casamento. Vendo minha expressão, o alfaiate tratou de me consolar. Além de gastar os tubos, pagar o mico de me vestir como num coro de musical, tive de escutar esta: “O senhor está praticando uma boa ação, pois o noivo ganha o aluguel do fraque de brinde!” Hoje, o padrinho virou o melhor dos presentes de casamento: ele paga pelo show, dança e ainda provoca risos nos convidados.

Meu mundo caiu

Tarde dessas eu estava numa seção de discos clássicos de uma grande loja quando me dei conta de que me encontrava inteiramente sozinho. O DVD de um recital magnífico do violonista André Geraissati passava na tela de plasma, sem que houvesse vivalma na poltrona diante do aparelho. Eu gostaria de ver o produto, saber o preço etc. Mas cadê o vendedor, o atendente ou que nome leve o funcionário que deveria estar ali, se não ouvindo o freguês, pelo menos a tomar conta do local?
O setor de clássicos sempre foi o mais seleto e isolado. Mas nunca assim. Nem o mestre Geraissati se acomodava antes na prateleira erudita – sua música vai além de qualquer rótulo. Saí ao encalço de um ser pensante, mas, à medida que percorria as gôndolas, notei que não havia ninguém, salvo gatos pingados que ouviam o novo CD da banda Coldplay (que saiu antes na internet). Fui reclamar à moça do caixa. Depois de um muxoxo, ela chamou o gerente pelo telefone. O sujeito surgiu esbaforido. Quando lhe falei do DVD, arregalou os olhos e saiu atrás do produto como se brincasse de cabra-cega. Demorou um tempão, mas conseguiu descobrir o disco. Acabei comprando o Geraissati e o Coldplay. Mas não saí satisfeito.
Concluí o óbvio: lojas de discos não existem mais. Os clássicos estão sendo liquidados como tomate na xepa da feira. Numa cidade enorme como esta, um amigo e eu somos os únicos a ainda comprar sonhados álbuns, antes tão caros. Eu sei porque ele comprou outro dia uma caixa de sonatas de Beethoven pelo Arthur Schnabel que eu queria ter comprado. Aí ele me deu a dica de que havia uma igual numa das filiais da loja. Temos trocado idéias como se fôssemos os últimos audiófilos sobre a Terra da Garoa.
Não existem mais amantes da música, nem alma nesse negócio. No mundo todo, as grandes cadeias de discos estão fechando. A Tower Records e a Virgin saíram de cena nos Estados Unidos. Em cidades como Miami, restou uma única cadeia, a Fye, que mesmo assim empurra os discos cada vez mais para o fundo, em nome do destaque para games e filmes em blu-ray. Em São Paulo, sobraram seções de discos nas livrarias e em lojas de alta tecnologia. Há os sebos, mas estes não se comparam aos do passado. Recendem a mesquinhez, com seus donos sem trato nem cultura...
Disco e inteligência parecem ter se divorciado irremediavelmente. E assim descobri que meu mundo não existe mais. Deixe estar: tenho reservas de som suficientes para passar bem o resto da vida. Só tenho pena de quem não pode mais desfrutar de uma conversa com o gerente cultivado das lojas de discos de antanho.

Saudosa caixaria

– O senhor não sabe de nada. – diz o Paco com voz agressiva, enquanto prega numa caixa de compensado. – Isto aqui tá acabando!
O barulho do martelo não irrita, é o som do trabalho que Paco, um sujeito moreno de olhos puxados de seus 40 anos, faz ali, na rua Fröben, Vila Leopoldina, há uns 30 pelo menos. Ensurdecedor é caminhão, moto e carro passando pela via imunda. Lixo reciclável ou não, cães, gatos, galos e galinhas se misturam às caixas e tabetes - pequenos estrados também de compensado que servem para isolar do chão as frutas, verduras e legumes. Pela região, ainda se estendem galpões de tijolo de velhas fábricas, bares de sinuca, bordéis, casebres e pequenas oficinas de marcenaria. Ainda se vê chão de terra batida. É coração da Caixaria.
A Caixaria é um enclave entre as avenidas Imperatriz Leopoldina e Gastão Vidigal e as ruas Fröben e Aroaba. Ali, residem as famílias de trabalhadores dependentes dao CEAGESP, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, do outro lado da Gastão Vidigal. O aspecto é de um povoado antigo incrustado na megalópole. E esta avança sobre o cenário que começou a ser construído em 1969, quando nasceu a CEAGESP, então CEASA. Até hoje, os habitantes da caixaria fala “o Ceasa”.
– Meu pai chegou aqui para trabalhar pro Ceasa – diz o China, o colega do Paco. – Dia e noite é fazer caixa pros atacadistas estocarem os produtos. Dia e noite alugando, montando, vendendo caixa.
China tem uma especialidade: compra e vende tabetes e vende casinhas de cachorro. Mas, em geral, a turma se arranja catando papel e lixo reciclável no bairro de classe-média logo adiante. Na caixaria, as crianças ainda andam descalças, as mulheres são donas-de-casa e carregam sacolas no vaivém do varejão. Nos sábados e domingos, a centena de moradores da Caixaria corre para a “xepa”, quando os produtos custam nada.
– Sobra de tudo pelo chão, a gente cata alface, tomate, batata – diz Karine, filha de 12 anos de Paco, de jeans e camiseta regata. – Ninguém passa fome na Caixaria.
No meio da Caixaria, quase na favela, há um terreno calçado com anúncio de uma torre de apartamentos de 2 e 3 dormitórios. “Concilie a ecologia com a vida urbana”, diz o anúncio, sem considerar uma possível conciliação com a vida primitiva dos caixarenses. Talvez a construtora tenha razão e não haja conciliação.
Com a Caixaria, está acontecendo o que já se passou com tantos e tantos bairros pobres históricos de São Paulo: a especulação imobilária, o avanço das incorporadoras, a destruição das malocas para que se ergam prédios de 30 e até 40 andares. Monstros que vão soterrar o casario pobre e deslocar os trabalhadores das caixas para regiões mais e mais distantes.
– Estamos sendo expulsos –– resmunga Paco, sentando-se na calçada para fumar. – Daqui a pouco só vai ter prédio. Que será de nós? Tanto faz, a gente vai lá pra trás dos armazéns do Ceasa, não adianta querer nos expulsar!
Eles crêem que, enquanto houver frutas, legumes e flores para vender, haverá as caixas – e gente vivendo delas. As caixas estão ali, amontoadas em até seis metros de altura como instalações comoventes, talvez mais humanas que os novos moradores das torres vizinhas. Pois estes desejam ver aquele poo bem longe de suas butiques, lojas e bares de açaí e balada recém-inauguradas.
Ao bater papo com a turma da Caixaria, sou invadido por um sentimento de nostalgia antecipada. Então tudo isto será derrubado para dar lugar a torres gigantescas... Chego a preferir mil bordéis, sinucas e uma cidade de caixas a ver tudo isso convertido em shopping centers. Mas, exceto eu, talvez, ninguém vai chorar pela Caixaria.

Não me roubem a noite

Ela tem seu regime. O principal ingrediente da noite é, claro, a escuridão. Noite só é ela por escurecer. Ao errar numa dessas noites pela rua Racine, me lembrei do escritor do século XVII que emprestou o nome ao logradouro. Numa tragédia, o francês Jean Racine fala do "horror de uma noite profunda", a escuridão que leva o sujeito a mergulhar nos dilemas e no medo que guarda no fundo da alma. A rua Racine ainda faz jus a seu padroeiro, e pode assustar pelo breu, como antigamente. Outras ruas próximas, no entanto, estão sendo iluminadas por lojas e bancos, roubando a noite do meu bairro, de todos os bairros.
Caminhando do breu das árvores em direção ao brilho das vitrines, observo o seguinte: à medida que a história se desenrola, os habitantes das cidades contraem um medo crescente de escuro – e querem enxotá-lo para mais longe. Thomas Edison inventou a lâmpada em 1879 e, desde então, a humanidade vem sendo iluminada em escala... assombrosa.
Os sedentos de luz costumam dizer que esta cidade é detentora de poucas luzes, se comparada a Paris ou Nova York. A noite no centro dessas duas metrópoles cintila. Paris, a Cidade Luz, começou a ser iluminada em arcos voltaicos isolados no ano da invenção da lâmpada. A Torre Eiffel e a lâmpada incandescente surgiram ao mesmo tempo, uma lançando fachos de glória à outra. Nova York, a primeira cidade a ter recebido iluminação em grande escala, em 1891, tem o Times Square, lugar onde a noite é sempre dia por conta dos prédios que emitem raios estroboscópicas, holofotes e imagens tridimensionais.
São Paulo, pobrezinha, ganhou sua rede elétrica em 1891, uma década depois das então grandes capitais - o Rio teve luz antes. Dessa forma, a Paulicéia até hoje não ficou de todo às claras. Talvez ela seja atrasada e candidata ao título de cidade-apagão. Mas a admiro assim, com seus lampejos bruxuleantes e raios que vez ou outra explodem os tansformadores. Será que alguém neste mundo precisa de arrabaldes e periferias com tantos postes e luminárias?
A lâmpada é a cúpula apoteótica da rede elétrica. É a invenção mais fundamental da civilização. Mas, talvez, a luz mais e mais resplandecente venha a ofuscar nossos sentidos. Um clarão que pode cegar a ponto de os homens do futuro serem incapazes de ler no papel. Agora me encontro diante de um computador iluminado: contemplo o nascimento destas palavras emergindo de uma lâmpada elétrica. O monitor não passa de uma lâmpada achatada.
Em vista do avanço irressistível da iluminação, chego a apreciar a calada dos blecautes. Pelo menos assim a gente não tem dúvida de que a noite da alma ainda pode se encontrar com a noite aqui fora. Sem luz, o ar fica mais fresco...

Existe o paulistanês?

Gosto de ouvir o jeito de falar das pessoas. Toda comunidade, classe ou tribo tem por aqui seu vocabulário, gíria e entonação. E cada falar, sua identidade. Escutar a voz das ruas é uma aula de como se alteram e morrem os sotaques e as gírias. Um rap da periferia pode abrir um mundo de surpresas ao ouvinte – desde que, para isso, a gente se desarme.
Por isso, fico chateado com esses programas de rádio que zombam da fala “dos manos” (legenda: negros pobres de Heliópolis e Capão Redondo), do vocabulário de faxineiras e trabalhadores. Esse tipo de piada com a linguagem dos outros é puro preconceito social e de cor.
Lembro que nos anos 70 no rádio paulistano um programa cômico, Rádio Camanducaia, que fazia algo parecido, mas em incorrer em tanto rancor social. Havia o italiano que torcia pelo Palmeiras, morador de alguma “calábria” da Zona Oeste; o Lorde, o torcedor do São Paulo que, toda vez que o time perdia, ordenava ao mordomo: “Archibald, meus sais!” O bebum que amava o Corinthians: “Nega, traz ampola que o Curingão vai arrasar!”. Era uma aquarela de tipos, com seus acentos folclóricos.
Uma pergunta sempre me volta: será que, para além dos estereótipos, existe o paulistanês? Vamos pensar. Esta megalópole foi marcada pelo choque de línguas, gírias e sotaques. Isso faz parte de seu DNA. Um dialeto unificador parece improvável.
O Juó Bananére deu a entender que existe, quando inaugurou esse gênero de humor paulistano nos anos 10 e 20. Escrevia crônicas macarrônicas que reuniu no livro La Divina Increnca (1924). Oswald de Andrade apelidou a Paulicéia imigrante dos anos 1920 de “babélica”, com suas multidões de italianos tentando se adaptar à fala e à cultura locais. Restou desse tempo o dialeto da Moóca, cujos habitantes ainda conversam como se cantassem “O Sole Mio” e dizem coisas impagáveis com vogais anasaladas e erres puxados, do tipo: “Belo, num acredito: saí do Juventus, parei no istacionamento da Dicunto e tá tudo rreformado!” Este “moquês” se tornou o símbolo da fala paulistana. O supra-sumo do paulistanês era o sotaque napolitano, até porque os italianos formaram a maior comunidade imigrante.
No passado foi mais fácil reconhecer e analisar o paulistanês. Hoje, a fala italianada está desaparecendo. E surgem muitos novos paulistaneses: o dos meninos de classe alta, dos jovens pobres, dos universitários e tantos outros. Há quase tantos modos de falar na cidade quantos o número de bairros. É uma variedade lingüística talvez só encontrada nas maiores metrópoles. Mas, diferentemente de outras metrópoles, os idiomas aqui passam por uma centrífuga para, no fim, enriquecer o português brasileiro. Em São Paulo, nasce uma língua por minuto.

Corpos fragmentados

Quem me lê agora já entendeu. Quem me ler no futuro talvez fique intrigado. Mas vamos aos fatos deste sétimo mês no sétimo ano do século XXI. De repente, SP virou palco de uma tragédia sem precedentes: a queda do avião da TAM naquele que é agora conhecido como o Vôo 3054, que matou mais de 200 pessoas e espalhou destroços e pedaços de seres humanos na avenida Washington Luís.
Até então, o desastre dos desastres paulistanos era o incêndio do edifício Joelma, em 1º de fevereiro de 1974. Morreram 189 pessoas. Ficaram famosas as cenas de gente pulando do alto do arranha-céu do centro da cidade. Pessoas jogando-se de prédio em chamas se converteram no logotipo do sinistro, imagens que ecoaram no Onze de Setembro, embora os flagrantes de suicidas voadores tenham sido censurados pelo Pentágono e se apagaram da memória coletiva. Do Joelma saltaram imagens que acabaram grudadas na História e dizem até que anos depois fantasmas do prédio passaram a assombrar várias cidades.
O que dizer então do Vôo 3054 s seus “corpos fragmentados”, no novo termo lançado pelo Corpo de Bombeiros? A gente foi obrigada a encarar a morte violenta de frente, e ver e ouvir os responsáveis pelo resgate tentando amenizar o inferno com termos técnicos. Então surgiu a expressão “corpos fragmentados” para designar os restos mortais que os bombeiros acondicionavam em sacos plásticos para enviar ao IML. Chegou um momento em que não havia cadáver para jogar. Só restavam fragmentos, que tornaram mais terrível o trabalho de contagem dos corpos. Porque corpos, de fato, já não havia.
A expressão “corpos fragmentados” é mais chocante que “corpos despedaçados”, usada antes em acidentes de grande monta. O fragmento define o quase nada que sobrou deas pessoas, mutiladas e queimadas até desaparecer. Como seres podem desmaterializar assim, num átimo? Essa aniquilação soa mais extraordinária que a vida, ou mesmo que a vida após a morte. Daí o travo macabro, insolente, do termo “corpos fragmentados”. A fragmentação é o símbolo desta tragédia maior.
Por isso, as nossas almas fragmentadas tremem de pavor. Porque a tragédia não acaba jamais. É uma explosão nuclear de desespero, que vai amenizando como uma dízima periódica à medida que os corpos são identificados... mas não termina. O avião vai continuar aterrissando e arremetendo e batendo até que se apague a lembrança do último ente querido das vítimas... do último de nós.

Mais nova ortografia

A linguiça que tenha paciência, mas trema é essencial. Pelo menos para mim. Até 2013, quando a lei férrea contra os erros ortográficos entrar em vigor, vou continuar a manter o simpático sinal na minha escrita particular. O leitor já sabe como gosto de escrever, a mão, sem outra máquina intermediando que o lápis e o caderno. E nenhum revisor abelhudo e cioso do Acordo Ortográfico vai me impedir de agir assim, mesmo porque ele receberá o texto eletrônico devidamente corrigido.
No meu dia a dia (agora sem hífen) e no meu íntimo, sigo com o trema. Em texto passado, nesta coluna, contei da visita de despedida que o Sr. Trema me havia feito. O leitor deve lembrar que o ancião saiu da minha casa contendo o pranto – e até me convidou a encontrá-lo no idioma alemão. O que não contei é que há dias bati um papo com ele no Messenger, para lhe desejar Boas Festas e dizer que não o abandonarei. “Mesmo pq o trema naum k-iu de todo, vc sabia?”, teclei. “Ele continua em expressões como mühleriano ou björkiano!” Sr. Trema me respondeu com um emotion de extrema felicidade. Sorri de volta. O internetês é o máximo de novidade que me permito.
Sou do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça com trema e tudo. Quanto às outras novidades do Acordo Ortográfico, ainda estou tentando entender as alterações seguindo as orientaçôes do lexicógrafo Evanildo Bechara, o nosso gramático-mor (será que vai hífen?). Caiu o acento em “ideia” e “heroi” e outras palavras terminadas em ditongos abertos. Mas aí fico a me perguntar o que será do ótimo samba “Filho da véia”, de Luiz Américo e Braguinha. A letra diz o seguinte: “Sou filho da véia/ E eu não pego nada/ A véia tem força, ô/ Na encruzilhada”. Sem o acento, a “véia” vira “veia”. Bechara ensina que devemos atentar para o contexto e daí depreender se se trata do duto que carrega o sangue venoso ou a senhora mãe do compositor. Ora, pela letra, é impossível chegar a uma conclusão. Um E.T. que aprendesse o novo português e lesse a nova versão da letra, poderia interpretá-la como a manifestação do vigor do povo, que põe fé na veia, na força do sangue. Nosso E.T. vai demorar para compreender....
O pior mesmo é o hífen. Não sei ainda se ele agora serve para unir ou separar vocábulos. Fui informado que agora paraqueta e mandachuva estão unidos poara sempre. Mas o “não” se divorciou de palavrs como comparecimento e “aceitação” – assim como diz que me diz que e fim de semana.agora são palavras que andam em regime de amor livre. Em compensação, ‘trouxe-mouxe” segue com hífen. Justamente troux-mouxe, que significa ação desordenada, confusão...

Pedestres mais velozes

Resolvi parar na guia para admirar a pressa em plena Avenida Paulista ao meio-dia de uma quarta-feira. Um corre-corre que parece não ter pausa, as pessoas andam tão velozmente que não consigo nem vislumbrar um semblante, o tal do rosto perdido na multidão se esquiva da gente numa espécie de vergonha de olhar ou ser olhado. Estou a me perguntar o que leva o cidadão a correr dessa forma que tanto parece lunática como é regida por uma força maior, uma lógica do horário.
A questão é velha, claro. Há dois séculos surgiu a multidão, como bem observou o escritor americano Edgar Allan Poe, ao fazer o retrato da Londres da Revolução Industrial no conto “O Homem na Multidão”, de 1843. Poe demonstrava que, a partir daqueles anos, era possível se esconder na massa humana da cidade. O espaço que antes era personalizado (as pessoas se cumprimentavam!) ganhou ares de esconderijo, a fumaça escondeu as estrelas e os indivíduos. Foi mais ou menos nessa época que as multidões começaram a invadir os centros urbanos. Pobre Charles Baudelaire! O poeta maldito flanava pelas galerias de Paris quando as hordas de pedestres o atropelaram. Passear nas grandes cidades passou a ser impossível. Em São Paulo, o fenômeno aconteceu nos anos 1930, quando a Paulicéia se desvairou com as fábricas e os imigrantes.
Então faz muito tempo. Quando me lembro das multidões que vi, sou invadido por imagens aceleradas que às vezes passam na televisão, imagens de pessoas correndo noite e dia sem cansar – vem a noite, amanhece e entardece, tudo seguindo igual, numa espécie de centrífuga. Pego o jornal e leio sobre um estudo feito por uma universidade ingles (Heartfordshire), que mostra a aceleração da velocidade dos pedestres nas cidades do muindo inteiro. Segundo os cientistas, as pessoas andam muito mais rápido hoje do que há dez anos (o que dizer de 160 anos atrás?). Curiosamente, São Paulo não está entre as dez cidades campeãs da pressa. Cingapura é a vitoriosa, com aumento de 30 por cento na velocidade desde 1990, seguida por Guangzhou, na China, com 20 por cento. Na Europa, Copenhague e Madri bateram Londres e Paris. Curitiba, não São Paulo, é a vencedora no Brasil. Os especialistas atribuem a culpa à cultura 24 horas, ao e-mail e ao celular. Estar permanentemente disponível está convertendo as pessoas em carne para moer. Pensamentos para moer. São Paulo está nessa, mesmo sendo vencida.
Aqui da sarjeta, imaginei me levantar, e virar um “flâneur” agora na Paulista... não observar horários, andar à solta bem devagar, fitar cada rosto e cumprimentar cada um que eu encontre. Mas, caramba, eu seria considerado mais um dos tamtps loucos que assombram os outros nestas ruas, tentando afirmar sua individualidade...

Sonho de regente

Diz o ditado latino que o leopardo sonha com o leopardo, o lobo com o lobo. Imagino como isso possa acontecer. Uma serpente que sonha com uma serpente parece uma ideia grotesca, uma alegoria do veneno eterno da História. Ela deve escutar chocalhos e zunidos do outro e os olhos se destacam do resto do corpo, mesmo na imprecisão de um pesadelo.
Até sonho às vezes com cães que me mordem no vazio da noite – e deve ser resquício infantil. Eu me lembro de ter sido mordido por um cão, e o sangue me vem à mente, sangue que eu derramei ao tropeçar, não que o cachorro tenha me mordido. Sou tomado por uma onda de horror e toda vez parece que não há saída. O sonho que mais me assalta, porém, é o que conto a seguir. E, claro, trata-se de um sonho com gente, estranha. O mesmo sonha com o mesmo, embora seja outro.
Está escuro, ouço o barulho e os risos de uma plateia que está ali em frente. Eu me encontrou nas coxias de um teatro. Alguém, um contrar-regra talvez, ou um ponto, me chama à cena. Limpo a garganta como se fosse cantar. Mas ao chegar à boca de cena descubro que estou de fraque e com uma batuta na mão direita. Vou reger uma orquestra. O público aplaude com barulho. Inclino-me e diviso a sala cheia, com quatro ou seis andares, não sei ao certo. Uma casa de ópera que pode lembrar Viena, ou Paris. Talvez não passe do cinema Ópera que eu frequentei quando criança, um antigo teatro de ópera na Serra Gaúcha. Não pode ser lá porque eu não estaria de fraque e nem a orquestra seria tão disciplinada. Tantos andares de balcões não havia...
A orquestra está toda a postos, os violinos de arco em riste, os sopros em posição de ataque, a percussão em suspense, esperando uma ordem. Minha. Lanço um olhar sobre os músicos, e percebo que o grupo é enorme, formação para tocar uma obra gigantesca. Um coro se posta diante dos instrumentistas. É peça de grande fôlego, algo pós-romântico. Quem sabe um poema sinfônico de Richard Strauss. Respiro fundo e tento me lembrar por que estou aqui.
Nenhuma lembrança me dá atenção. A sensação não é de amnésia, e sim de uma espécie de naturalidade diante do destino que me conduziu até este lugar. Parece outra vida. Eis-me aqui porque tenho que cumprir uma tarefa. E assim me dirijo ao pódio, dou as costas ao público, e leio a partitura que está disposta na estante: “Gustav Mahler – Simphonie N. 7 in E Minor - I. Langsam - Allegro risoluto, ma non troppo”. Nas páginas suavemente amareladas, os instrumentos estão distribuídos, a armadura da clave clara tudo pronto para a execução. Bato três com a ponta da batuta no canto da estante e dou o sinal erguendo-a até acima da cabeça, os braços bem abertos. Eu sei que vão me criticiar pelo gesto, porque maestro de verdade não faz assim. É contido, os braços quase presos ao corpo. A posição aberta parece indecorosa, desproporcional a meu talento.
Agora não é mais possível recuar, pedir desculpas ao público e me retirar, sob vaias e pateadas. Mesmo que eu fareje o pânico tentando dominar minha razão. Já não tenho certeza de que é sonho. Experimento o suor do medo real. Devo conhecer esta sinfonia de cor e por um instante procuro me lembrar de alguma gravação, para não ser surpreendido e dar o ataque errado. Preciso me lembrar, é um início desajeitado, esquisito, o mais estranho entre os das sinfonias mahlerianas. Há um episódio de tímpanos, aí vêm as cordas e os metais, acho que é assim, vamos lá..
Para meu espanto, a orquestra executa e desenrola o movimento com uma lógica irresistível, e parece até o fim, porque a peça anda aos fragmentos, segue o seu caminho de forma-sonata que se estilhaça no tempo. Tento gesticular, marcando o compasso com a batuta, e criar expressão com a mão direita. Mas é como se eu não tivesse controle algum sobre a música. Nem ela sobre mim. Á medida que a harmonia profunda se impõe à minha frente, encontro-me mais sozinho do que nunca entre músicos e ouvintes, esbraçando como um nadador que tenta não se afogar em um fosso, e é tragado.
Eu deveria ter assumido o papel e me mantido sobranceiro até o último compasso. Só que me perdi nadando de costas para o público, de frente para os instrumentistas. Se eu tivesse me comportado como um profissional e representado com segurança, ninguém teria me escorraçado como pária, intruso. O farsante teria sido oculto pelo véu da pose, da batuta em riste. Sim, o fracassado sonha com o fracasso, mas não é o seu. Não pode ser o seu...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Ciclo de vingança

Remonta ao tempo do onça o hábito de a torcida vaiar e agredir jogadores e técnicos de futebol. Começou com a primeira derrota, o frango primordial. O onça foi esquecido, embora a prática bárbara continue popular. Os tempos mudam uma hora destas. E mudaram para o Gilmar.
Ele é chefe de uma torcida de um tradicional clube de futebol da capital. Pode ser chamado de fanático. Seu lado positivo é organizar excursões quando o time joga fora, conferir os treinos, pintar faixas. Sabe conciliar as atividades com a de caixa de banco. O lado negativo está em não suportar quando o time perde uma partida. Toda vez que isso acontece, chama seu bando de choque e dá um jeito de espezinhar ou agredir a equipe.
Um dia Gilmar combinou com a torcida de jogar moedas no campo na direção de Uonderson, o atacante que idolatrava. Como Uonderson recebeu uma proposta melhor de um clube estrangeiro, tudo mudou. De herói, passou a saco-de-pancada.
No jogo seguinte, Gilmar esperou Uonderson se aproximar da lateral para puxar o coro: ”Mercenário! Mercenário”. Enquanto isso, uma chuva de moedas atingia o atleta. Não foi o bastante, Gilmar e gangue esperaram o jogador à saída do vestiário. Em formação de correcor polonês, desferiram-lhe uma saraivada de cascudos. O jogador foi para casa humilhado no seu carrão importado. No ônibus, a turma de Gilmar só ria.
Uonderson planejou sua revanche. E como vingança é um prato frio, demorou semanas para se realizar. Na manhã do dia 5 do mês de dezembro, Gilmar pegou no serviço. De paletó e gravata, sentou-se ao caixa para iniciar um expediente cheio, pois era dia de pagamento. As portas se abriram. Um grupo de rapazes fez fila diante dele. Eram un 20 atletas de seu time, ecabeçados por Uonderson. “E aí, vai demorar pra atender?”, gritou o craque. “Calma, amigos, vou atender a todos!”, replicou o bancário, pasmo. “Mano, cê tá demorando”, falou alguém de trás da fila. Outro ofendeu: “Você não vale nada!” Gilmar não teve tempo de pensar, nem o segurança de intervir. O bando avançou, deu-lhe cascudos e o arremessou para o alto, gritando: “Mercenário! Mercenário!” Uonderson mandou colocarem Gilmar de volta à cadeira, e proclamou. “É para você aprender como a gente se sente quando a torcida nos agride. A gente é tão profissional quanto você. Dói, né?” No fim, o time à paisana lançou sobre o subgerente um tornado de notas de um real, e se retirou às gargalhadas. Gilmar quis morrer, mas engoliu em seco e atendeu o primeiro cliente.
Será que aprendeu a lição? Quase. Agora mesmo ele está lá no centro de treinamento do clube, todo feliz, jogando pipoca nos jogadores...