quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O senhor Trema

Ele veio me visitar sem aviso. O senhor Trema não observa a etiqueta atual. Ele vem daquele tempo em que as casas não tinham muros e não havia carros. Pela primeira vez, aquela criatura tão simpáticca me pareceu alquebrada. Seus olhos negros estavam muito tristes. Posso dizer que ele era todo feito de tristeza. Mesmo porque seu ser se resume a dois pontos negros pairando sobre as letras, sobre o mundo. Agora ele estava pairando sobre o sofá da sala, enobrecendo o móvel, assim como ele enobrecia as palavras que costumava acompanhar freqüentemente, e ainda acompanha, até janeiro do ano que vem.
“Meu fim está próximo, meu amigo”, supirou, segurando um choro. “O Lula já assinou o decreto que me extingue da língua portuguesa...”
Tentei acalmá-lo com uma xícara de chá verde. Notei que ele fingiu que gostou, mas chá verde não faz parte de seu código de gentilezas. Teria preferido o breakfast tea à inglesa, servido na chávena...
“Eu fiquei sabendo”, respondi. “Lamento muito. Sempre gostei de você. Mas não há de ser nada, você continua no finlandês, no húngaro e no alemão!”
Que afirmação desastrada, delinqüescente, o pobre senhor Trema se desfez em prantos - como ele diria. Não agüentou segurar a emoção.
Abracei-o, para abafar o choro. Desde que me entendo por alfabetizado, ele me acompanha. Sua presença é eloqüente na minha vida de escrevinhador. Quantas vezes não recorri ao snhor Trema, em crõnicas, contos, reportagens, romances, ensaios? Ele nunca foi apenas um sinal diacrítico, usado para modificar a pronúncia do “u”. Ele foi importante na existência de pessoas que já não estão entre nós. O presidente JK assinou o famoso plano qüinqüenal para o Brasil, aquele que faria um atalho de cinqüenta anos em cinco. E quando eu completar cinqüenta anos, serei obrigado a comemorar “cinquenta”. Essa possibildade de um aniversário sem a graça do trema me deixa qüinqüenérveo...
“Não me conformo”, prossseguiu meu amigo, secando as lágrimas. “Não bastaram os portugueses terem me expulsado no pós-guerra, agora todos os países lusófonos me repudiam. É uma injustiça. Enquanto isso, o “cá”, o dabliú e o ípsilon estão sendo recepcionados de volta ao abecê com honras de estadistas! Você acha que eu mereço essa humilhação?”
“Claro que não, meu amigo. Tome mais um pouco de chá, acalme-se. Eu prometo usar você para sempre, na vida privada e na pública. Mesmo que os textos que eu venha a escrever sejam corrigidos, você vai estar lá, em ausência!”
É claro que isso não serviu de consolo, mas ele esboçou um sorriso cordial, já que senhor Trema é um sinal diacrítico muito educado.
“A gente se vê por aí”, disse ele, enquanto cruzava o portão da minha casa. E me fitou com os olhos negros, numa expressão irônica. “Quando você vai voltar a estudar alemão?”

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