quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Não me roubem a noite

Ela tem seu regime. O principal ingrediente da noite é, claro, a escuridão. Noite só é ela por escurecer. Ao errar numa dessas noites pela rua Racine, me lembrei do escritor do século XVII que emprestou o nome ao logradouro. Numa tragédia, o francês Jean Racine fala do "horror de uma noite profunda", a escuridão que leva o sujeito a mergulhar nos dilemas e no medo que guarda no fundo da alma. A rua Racine ainda faz jus a seu padroeiro, e pode assustar pelo breu, como antigamente. Outras ruas próximas, no entanto, estão sendo iluminadas por lojas e bancos, roubando a noite do meu bairro, de todos os bairros.
Caminhando do breu das árvores em direção ao brilho das vitrines, observo o seguinte: à medida que a história se desenrola, os habitantes das cidades contraem um medo crescente de escuro – e querem enxotá-lo para mais longe. Thomas Edison inventou a lâmpada em 1879 e, desde então, a humanidade vem sendo iluminada em escala... assombrosa.
Os sedentos de luz costumam dizer que esta cidade é detentora de poucas luzes, se comparada a Paris ou Nova York. A noite no centro dessas duas metrópoles cintila. Paris, a Cidade Luz, começou a ser iluminada em arcos voltaicos isolados no ano da invenção da lâmpada. A Torre Eiffel e a lâmpada incandescente surgiram ao mesmo tempo, uma lançando fachos de glória à outra. Nova York, a primeira cidade a ter recebido iluminação em grande escala, em 1891, tem o Times Square, lugar onde a noite é sempre dia por conta dos prédios que emitem raios estroboscópicas, holofotes e imagens tridimensionais.
São Paulo, pobrezinha, ganhou sua rede elétrica em 1891, uma década depois das então grandes capitais - o Rio teve luz antes. Dessa forma, a Paulicéia até hoje não ficou de todo às claras. Talvez ela seja atrasada e candidata ao título de cidade-apagão. Mas a admiro assim, com seus lampejos bruxuleantes e raios que vez ou outra explodem os tansformadores. Será que alguém neste mundo precisa de arrabaldes e periferias com tantos postes e luminárias?
A lâmpada é a cúpula apoteótica da rede elétrica. É a invenção mais fundamental da civilização. Mas, talvez, a luz mais e mais resplandecente venha a ofuscar nossos sentidos. Um clarão que pode cegar a ponto de os homens do futuro serem incapazes de ler no papel. Agora me encontro diante de um computador iluminado: contemplo o nascimento destas palavras emergindo de uma lâmpada elétrica. O monitor não passa de uma lâmpada achatada.
Em vista do avanço irressistível da iluminação, chego a apreciar a calada dos blecautes. Pelo menos assim a gente não tem dúvida de que a noite da alma ainda pode se encontrar com a noite aqui fora. Sem luz, o ar fica mais fresco...

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