quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Saudosa caixaria

– O senhor não sabe de nada. – diz o Paco com voz agressiva, enquanto prega numa caixa de compensado. – Isto aqui tá acabando!
O barulho do martelo não irrita, é o som do trabalho que Paco, um sujeito moreno de olhos puxados de seus 40 anos, faz ali, na rua Fröben, Vila Leopoldina, há uns 30 pelo menos. Ensurdecedor é caminhão, moto e carro passando pela via imunda. Lixo reciclável ou não, cães, gatos, galos e galinhas se misturam às caixas e tabetes - pequenos estrados também de compensado que servem para isolar do chão as frutas, verduras e legumes. Pela região, ainda se estendem galpões de tijolo de velhas fábricas, bares de sinuca, bordéis, casebres e pequenas oficinas de marcenaria. Ainda se vê chão de terra batida. É coração da Caixaria.
A Caixaria é um enclave entre as avenidas Imperatriz Leopoldina e Gastão Vidigal e as ruas Fröben e Aroaba. Ali, residem as famílias de trabalhadores dependentes dao CEAGESP, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, do outro lado da Gastão Vidigal. O aspecto é de um povoado antigo incrustado na megalópole. E esta avança sobre o cenário que começou a ser construído em 1969, quando nasceu a CEAGESP, então CEASA. Até hoje, os habitantes da caixaria fala “o Ceasa”.
– Meu pai chegou aqui para trabalhar pro Ceasa – diz o China, o colega do Paco. – Dia e noite é fazer caixa pros atacadistas estocarem os produtos. Dia e noite alugando, montando, vendendo caixa.
China tem uma especialidade: compra e vende tabetes e vende casinhas de cachorro. Mas, em geral, a turma se arranja catando papel e lixo reciclável no bairro de classe-média logo adiante. Na caixaria, as crianças ainda andam descalças, as mulheres são donas-de-casa e carregam sacolas no vaivém do varejão. Nos sábados e domingos, a centena de moradores da Caixaria corre para a “xepa”, quando os produtos custam nada.
– Sobra de tudo pelo chão, a gente cata alface, tomate, batata – diz Karine, filha de 12 anos de Paco, de jeans e camiseta regata. – Ninguém passa fome na Caixaria.
No meio da Caixaria, quase na favela, há um terreno calçado com anúncio de uma torre de apartamentos de 2 e 3 dormitórios. “Concilie a ecologia com a vida urbana”, diz o anúncio, sem considerar uma possível conciliação com a vida primitiva dos caixarenses. Talvez a construtora tenha razão e não haja conciliação.
Com a Caixaria, está acontecendo o que já se passou com tantos e tantos bairros pobres históricos de São Paulo: a especulação imobilária, o avanço das incorporadoras, a destruição das malocas para que se ergam prédios de 30 e até 40 andares. Monstros que vão soterrar o casario pobre e deslocar os trabalhadores das caixas para regiões mais e mais distantes.
– Estamos sendo expulsos –– resmunga Paco, sentando-se na calçada para fumar. – Daqui a pouco só vai ter prédio. Que será de nós? Tanto faz, a gente vai lá pra trás dos armazéns do Ceasa, não adianta querer nos expulsar!
Eles crêem que, enquanto houver frutas, legumes e flores para vender, haverá as caixas – e gente vivendo delas. As caixas estão ali, amontoadas em até seis metros de altura como instalações comoventes, talvez mais humanas que os novos moradores das torres vizinhas. Pois estes desejam ver aquele poo bem longe de suas butiques, lojas e bares de açaí e balada recém-inauguradas.
Ao bater papo com a turma da Caixaria, sou invadido por um sentimento de nostalgia antecipada. Então tudo isto será derrubado para dar lugar a torres gigantescas... Chego a preferir mil bordéis, sinucas e uma cidade de caixas a ver tudo isso convertido em shopping centers. Mas, exceto eu, talvez, ninguém vai chorar pela Caixaria.

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