quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Pets e viralatas

Por onde passo, vejo cães adultos e filhotes das raças mais variadas. Eles estão nos best-sellers. Dou um pulo na livraria e ei-los na lista de livros mais vendidos. Três títulos em torno de cães estão entre os dez mais: Marley e Eu, sobre a relação delicada entre um dono e mascote; De Bagdá, com Muito Amor – sobre Lava, o filhote resgatado que trocou o Iraque pela Califórnia; e O Encantador de Cães, autobiografia de um adestrador de cachorros de estirpe.
No shopping center, são vendidos na vitrina, umas fofuras a peso de ouro. Mesmo num parque, no domingo passado, gastei parte de meu tempo admirando animaizinhos enjaulados, alguns em promoção. Pelas alamedas e ruas, os donos levam rottweilers, dachshunds e cockers spaniels, com cara de orgulhosos da sujeira que seus pets fazem à medida que desfilam diante dos passantes encantados.
Os cães raçudos já são os senhores da calçada. Os donos em geral não observam a lei do município, que obriga o uso de pá e saco plástico para recolher seus dejetos.Também não faz diferença, porque calçada mesmo não existe na cidade... Os adoráveis peludos têm hotel, butique, loja, restaurante e agora até um serviço de seguros que oferece banho e tosa em casa!
Há raças mais “fashion” que outras. Por exemplo, os donos de pitbull andam com vergonha dos bichos e tentam se livrar deles, por razões óbvias. Isto tem ocorrido muito: como viraram produtos, os pets deixam de ser pets quando crescem, perdem a graça e aumentam a produção de excrementos. As crianças os rejeitam, os adultos passam a detestá-los. Alguém ainda tem um pequinês como mascote? Nunca mais vi aqueles cachorros anões, de orelhas enormes e língua para fora, latindo com o focinho nos portões, prontos para morder. Os pequineses saíram de moda e foram expulsos dos lares.
Fui ao cinema e percebi que eles já são astros do mutliplex. O filme Vira-Lata, da Disney, está para estrear, contando a história de superação de um beagle abandonado, num mundo em que pedigrees mais altos são cada vez mais valorizados. E é obrigado a conviver com os vira-latas.
Se beagles e pequineses não têm mais valor, o que dizer dos vira-latas? Reparei que os cães sem dono não andam mais pela “zonas nobres” da cidade. Pelo jeito, tiveram o mesmo destino dos pequineses: foram banidos do mapa – e do nosso afeto. Eu me lembro de um tempo em que as crianças não jogavam fora seus mascotes. E se alegravam com o abanar do rabo de um amado vira-lata. Mas hoje tudo está mudado: até catador de papel tem husky siberiano para puxar carroça.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

A bilhteira mística

Maura tem 26 anos e gastou tempo demais pensando no que fazer da vida. Namorou e brigou. Queria sair da casa dos pais na Vila Clarice e não conseguiu. Começou muitos cursos e os trancou. Imaginou projetos que não foram adiante até que abandonou seus ideais na ilusão de náo sofrer. Dispersou o seu talento na indecisão.
De dúvida em dúvida, há dois anos acabou sendo aprovada em um concurso como funcionária do metrô, e se rendeu à necessidade de trabalhar. No primeiro dia, já a jogaram no guichê de vendas de bilhetes. Tremeu cada minuto das oito horas de expediente.
Voltou para casa tremendo. Quase não conseguiu dormir. “Não possso aguentar”, pensou enquanto virava de um lado a outro na cama. A resolução lhe deu tanto alívio que sonhou até que o despertador a chamasse às 6 da manhã. A mãe avisou-a de que tinha de pegar no serviço dali a uma hora. “Não vou”, anunciou, a cabeça debaixo do travesseiro. A mãe insistiu, trouxe-lhe café com pão. Meio a contragosto, prometeu tentar uma última vez. Chegou atrasada porque errou o endereço.
Aos poucos, acostumou-se à rotina – e ao salário baixo. Progrediu, não na carreira, mas por dentro. Seu sorriso pode ser visto no guichê ou diante das catracas na estação Barra Funda. Logo ela, que sempre se extraviou no tempo e no espaço, tomou gosto de orientar os passageiros. Voltou até ao curso de Inglês, para lidar com os estrangeiros, que lhe enchem de perguntas, e não só sobre itinerários: querem dicas de passeios e sugestões de roteiro cultural.
Mas o que deixou Maura surpresa foi o comportamento dos passageiros. Jamais pensou que as pessoas fossem tão carentes. Passou a notar que as filas diferenciam umas das outras, e cada uma das dezenas de pessoas que compõe as filas tem personalidade própria. Estranhou que em geral elas não compram bilhetes múltiplos. Querem uma passagem de cada vez, talvez para bater papo ou lhe dar bom-dia.
Fila é área de lazer, concluiu. Uns confessam segredos, outros querem opiniões sobre quaisquer assuntos, pechincham, levam presentes e santinhos. Há quem se aconselhe sobre teorias filosóficas. Um sujeito aparece por lá todos os dias. Espera horas só para, quando chega a sua vez, olhar no fundo do olho de Maura. Seria hipnotismo ou xaveco? Outra tarde uma senhora pediu que previsse o seu futuro, sem ligar para quem vinha atrás. Eu mesmo gosto de passar pela estação só para praticar meu inglês com ela. Maura acha graça:. “Neste trabalho, descobri que as pessoas se sentem seguras na fila. E que são muito mais perdidas do que eu!” Enfim, encontrou sua vocação: guru...


.

Traiu ou não?

É a carioca mais falada em São Paulo. Não passa um dia sem que eu ouça o nome de Capitu. A moça alta, de rosto quadrado, nariz afilado, cabelos escuros e olhos grandes, claros e arrevezados parece viva, e não feita de letras. Ela se estabeleceu de tal modo na imaginação das pessoas, que chego a pensar que a personagem está ofuscando o seu criador, Machado de Assis. Agora a intrigante personagem dá nome a uma minissérie de televisão. Era o que faltava para virar celebridade..
Assim como o Sherlock Holmes enterrou seu criador, Conan Doyle, Capitu devora Machado - e no ano de celebração do centenário de sua morte. Capitolina pulsa e fascina. E Machado? Apesar de venerado, sua imagem pública não passa de uma escultura em bronze miúda na porta do prédio da Academia Brasileira de Letras. Agora ele a estátua é lembrada porque deu à luz a femme fatale brasileira.
Capitu surge no romance Dom Casmurro, publicado no fim de 1899. Quando eu tinha uns 20 anos, muito tempo atrás, achei um exemplar da segunda edição do livro. A Tipografia Garnier Irmãos imprimiu em Paris uma segunda tiragem em abril de 1900. Certamente Machado aprovou o volume – quem sabe tenha folheado este aqui... Talvez isso não signifique nada, mas me sinto privilegiado por ter conhecido Dom Casmurro nessa tiragem específica. Nas incontáveis situações que o li, sempre faço uma descoberta.E me inebrio ao folhear as páginas amarelecidas e rever as palavras em velha ortografia. Assim, Capitu é “Capitú”, com acento no final, o que faz com que pareça um nome ransgressivo, até ortograficamente. Porque melhor que ler Dom Casmurro, é deslê-lo. É voluptuoso perseguir os rastros do enredo a contrapelo, como um legista das artes.
Reler é sempre um desler. Dom Casmurro prova que a obra de arte muda com o tempo – e com os leitores. Em 110 anos, o livro foi submetido a tantos leitores, leituras e versões. O interesse vem de uma dúvida vulgar: teria Capitu traído Bentinho com o melhor amigo dele, Escobar, ou é uma vítima, a Desdêmona do Otelo Brasileiro?
É a conversa de bar mais antiga do mundo. Aposto que ela o traiu – se não por atos, pelo menos em palavras. No velório de Escobar, Bentinho nota que Capitu traga o cadáver com o olhar. São os “olhos de ressaca” que engolfam o amante, morto por afogamento. Os olhos carregam-no de volta ao mar, para espanto do narrador inseguro. Treme de pavor do desejo dela. Naquele instante, como em outros, o ciúme denso de Bentinho lança Capitu e Escobar ao adultério. O enredo é dele, afinal...

..

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Nosso amigo, o rato

O longa-metragem de animação Ratatouille, da Disney-Pixar, que acaba de sair em DVD, narra a ascensão de um ratinho, Rémy, de fascinado por comidas sofisticadas até se tornar no grande chef de um restaurante de Paris. Quando a turma do cozinha descobre quem era o gênio do lugar, todo mundo sai em debandada. E aí assoma o momento mais épico do filme: uma horda de ratos, sob o comando de Rémy, toma posse da cozinha e passa a produzir os pratos mais refinados do mundo – chegando a conquistar cinco estrelas do crítico mais cricri do pedaço. Nos extras do DVD, há um curta-metragem, intitulado “Seu amigo rato”, em que Rémy defende a idéia de que homens e ratos deverão viver em harmonia daqui para frente, até porque ambas as espécies são as mais preparadas para sobreviver a uma provável hecatombe ecológica (Rémy não menciona as baratas nem os cupins).
A Disney vem se esforçando desde 1928, quando criou Mickey, para que simpatizemos com os roedores. Nas historinhas, pode ser. Mas, de fato, a humanidade continua a alimentar um horror ancestral aos ratinhos de todas espécies. Acabo de ler a notícia de que os ratos anteciparam os homens e já se globalizaram. Porque a globalização humana ainda é de capital, não de circulação de indivíduos – pois seguimos leis internacionais que limitam fenômenos como, por exemplo, uma invasão de chineses na Europa. Ou que os paulistanos mais afortunados se mudem em definitivo para Nova York. Os ratos não precisam de passaporte e estão em toda parte.
São Paulo não é exceção, pois experimenta uma praga endêmica de ratos de telhado. Eles vivem nos forros e sótãos das casas e nos terraços dos prédios mais altos. Surgem pelos vasos sanitários, calhas e bocas-de-lobo, devorando o que encontram pela frente. Numa noite dessas fui ver um concerto no Teatro Municipal. Juro: durante a pausa da orquestra ouvi ruídos de mastigação – e não pareciam aqueles chatos que abrem balas durante um "adagio" em pianíssimo. Eram ratinhos felizes! Com capacidade para mais de mil espectadores humanos, o Municipal deve abrigar uma população correspondente de melômanos roedores.
Desratizar SP seria uma campanha útil. Mas o prefeito e seus subs estão mais interessados em fazer a “higienização social”, caçando pobres em favelas históricas para liberar os terrenos para as grandes torres das incorporadoras. Os ratos assistem de camarote ao “espetáculo do crescimento” da indústria civil. Afinal, adoram mascar cimento e concreto armado. Apreciam também a dieta dos mais ricos. Estão prontos, como Rémy, para aperfeiçoar seu paladar nos novos “espaços gourmets” dos condomínios que sobem às nuvens. Pelo jeito, o cidadão vai ter de se unir a eles. Será a esperada ratização de uma longa amizade.