domingo, 22 de fevereiro de 2009

Traiu ou não?

É a carioca mais falada em São Paulo. Não passa um dia sem que eu ouça o nome de Capitu. A moça alta, de rosto quadrado, nariz afilado, cabelos escuros e olhos grandes, claros e arrevezados parece viva, e não feita de letras. Ela se estabeleceu de tal modo na imaginação das pessoas, que chego a pensar que a personagem está ofuscando o seu criador, Machado de Assis. Agora a intrigante personagem dá nome a uma minissérie de televisão. Era o que faltava para virar celebridade..
Assim como o Sherlock Holmes enterrou seu criador, Conan Doyle, Capitu devora Machado - e no ano de celebração do centenário de sua morte. Capitolina pulsa e fascina. E Machado? Apesar de venerado, sua imagem pública não passa de uma escultura em bronze miúda na porta do prédio da Academia Brasileira de Letras. Agora ele a estátua é lembrada porque deu à luz a femme fatale brasileira.
Capitu surge no romance Dom Casmurro, publicado no fim de 1899. Quando eu tinha uns 20 anos, muito tempo atrás, achei um exemplar da segunda edição do livro. A Tipografia Garnier Irmãos imprimiu em Paris uma segunda tiragem em abril de 1900. Certamente Machado aprovou o volume – quem sabe tenha folheado este aqui... Talvez isso não signifique nada, mas me sinto privilegiado por ter conhecido Dom Casmurro nessa tiragem específica. Nas incontáveis situações que o li, sempre faço uma descoberta.E me inebrio ao folhear as páginas amarelecidas e rever as palavras em velha ortografia. Assim, Capitu é “Capitú”, com acento no final, o que faz com que pareça um nome ransgressivo, até ortograficamente. Porque melhor que ler Dom Casmurro, é deslê-lo. É voluptuoso perseguir os rastros do enredo a contrapelo, como um legista das artes.
Reler é sempre um desler. Dom Casmurro prova que a obra de arte muda com o tempo – e com os leitores. Em 110 anos, o livro foi submetido a tantos leitores, leituras e versões. O interesse vem de uma dúvida vulgar: teria Capitu traído Bentinho com o melhor amigo dele, Escobar, ou é uma vítima, a Desdêmona do Otelo Brasileiro?
É a conversa de bar mais antiga do mundo. Aposto que ela o traiu – se não por atos, pelo menos em palavras. No velório de Escobar, Bentinho nota que Capitu traga o cadáver com o olhar. São os “olhos de ressaca” que engolfam o amante, morto por afogamento. Os olhos carregam-no de volta ao mar, para espanto do narrador inseguro. Treme de pavor do desejo dela. Naquele instante, como em outros, o ciúme denso de Bentinho lança Capitu e Escobar ao adultério. O enredo é dele, afinal...

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