quarta-feira, 7 de março de 2007

No Meio-Fio

Começar uma série de crônicas da vida fácil da cidade pode soar como uma ousadia - ou mesmo leviandade. Mas minha gana é captar o movimento da megalópole a partir de uma perspectiva de alguém que não está nem da calçada nem da rua, mas observando tudo do meio-fio, naquela fronteira entre seres e carros, onde correm líquidos e pequenos gravetos que acreditamos perigosos. Aquele borda da rua junto à pista, feita de concreto ou paralalelepídeos dispostos um após outro e que sempre foge da nossa atenção, salvo quando o transeunte vai atravessar a rua. No meio-fio, a gente não está nem a bordo de um veículo, nem andando como um pedestre comum. Do meio-fio, é possível desconfiar dos dois mundos que ele divide, numa linha concreta, num degrau muitas vezes perigoso.
Me lembrei da bonita canção de Arnaldo Antunes e Rita Lee, intitulada Meio Fio, que diz o seguinte:

"Onde quer que eu vá
Levo em mim o meu passado
E um tanto quanto do meu fim
Todos os instantes que vivi
Estão aqui
Os que me lembro e os que esqueci...
Carrego minha morte
E o que da sorte eu fiz
O corte e também a cicatriz

Mas sigo meu destino
num yellow submarino
Acendo a luz que me conduz
E os deuses me convidam...
Para dançar no meio fio
Entre o que tenho e o que tenho que perder
Pois se sou só
É só flutuando no vazio
Vou dando voz ao ar que receber"

Que a música seja a epígrafe que encima esta série. Dançar no meio fio entre o ganhar e o perder, entre o passado e o presente, entre a cidade e sua negação, entre a fantasia e a realidade, entre as vidas fácil e dura, entre a crônica e a notícia, o ser e o nada, o bem e o mal, o urbano e a terra de ninguém, entre a São Paulo agora e a Paulicéia Desavairada de um século atrás, as casas derrubadas e as torres que irrompem ameaçadoras, entre escrever e ser lido, entre viver e nem tanto. No meio-fio pode se interpor uma pedra entre o homem e seu futuro. O meio-fio pode cortar em dois uma crença.
Há tanta vida em uma cidade fervilhante que o cronista sente uma tontura metafísica talvez incurável. Escrever estas crônicas será como ir adiante, como andar por vezes se imaginando de costas, olhando para trás, como num banco do metrô que a gente evita, aquele banco que dá vertigem porque o passageiro é levado de costas a um destino inevitável. Carregamos nossa morte, como diz a letra da canção. Carregamos nossa vida também. O meio-fio nos provoca, nos faz vislumbrar o inevitável. O meio-fio, esta faixa desértica sem carros nem gente, este nada apavora, mas ensina aquilo que está sob o nariz e não se nota. A cidade devora, a cidade constrói outros mundos. Eu vou falar tudo daqui mesmo, olhando para todos os lados em que não me encontro. Boa leitura!