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segunda-feira, 11 de abril de 2011

Quem vê carro quer ver coração

Não posso reclamar de solidão porque vivo cercado de gente. Por isso, para mim os momentos em que passo sozinho não são nada dolorosos. Ao contrário, servem para refletir, ouvir as músicas que amo, fazer planos para os próximos minutos e mesmo pensar em abstrato, sem um alvo fixo. Mas hoje a solidão dos outros me contagia. Estou só no carro, indo ao trabalho. Ouço um triste quinteto com piano e cordas e olho para frente com lágrimas impostas pelo compositor nos olhos. Vejo apenas as traseiras dos carros que nervosamente passam à minha frente.

Sou devagar no carro, não acelero muito talvez para não sentir o tempo passar. Os outros são diferentes, e não formam exatamente o paraíso que inventei em alguma história. É isto: ao dirigir o carro, escrevo mentalmente histórias, que podem ser chamadas de crônicas porque no Brasil poema em prosa é crônica. Sim, estou distraído no meio do trânsito, os outros buzinam e sou puxado por todos os lados, tenho de acelerar e parar quando me forçam a isso. O clima está meio frio, as janelas de todos os veículos estão fechadas. É um hábito recente, derivado do excesso de violência e assédio nas esquinas.

Lembro que não havia solidão no trânsito quando todo mundo andava de janela aberta, batia papo com o motorista do carro do lado, ou mesmo o insultava com ímpeto. Eu gostava de observar a madame nervosa que esnobava os outros de seu carrão alto; o mocinho que, ao volante, enchia o peito se fingindo de adulto; o profissional paramentado para ir, todo ereto no banco, ao trabalho; o mano dançando com som alto; a mãe que transportava um enxame de filhos barulhentos, mais o cachorro tomador de vento; o folclórico velho de chapéu que rareia, até porque chapéu voltou à cabeça dos jovens... Essa divertida fauna sobre jaulas motorizadas sumiu para dentro dos veículos superprotegidos, que mais parecem incubadoras ou foguetes. Hoje, as pessoas se esconderam por trás do insufilm – já quase não é possível observar o quem está dentro dos carros.

Talvez para compensar o isolamento, começaram a surgir adesivos nas traseiras dos carros. São adesivos de identidade, de todos os tipos e feitios. Eles pretendem obviamente revelar as personalidades, os gostos e até os origens do motorista e dos passageiros. Os carros agora querem dizer coisas específicas, enviar mensagens determinadas para quem está fora e em volta. Os bairristas exibem orgulhosamente as bandeiras de seus estados, só mesmo conhecida e compartilhada por seus concidadãos. Descubro hordas de gaúchos pela cidade, já que muitos fazem questão de usar a bandeira verde, vermelha e amarela do estado, que eu conheço por ser de lá (confesso: eu próprio já usei a bandeira farroupilha no meu carro, para assim ser reconhecidos pelos conterrâneos, e só por eles). As gentes manifestam sua fé, ao grudar no carro símbolos religiosos: cruzes, peixes (sabe-se que é um carro evangélico), estrelas de Davi, terços de imagens da Virgem Maria. Curiosamente, para falar na religião mais forte do pais, poucos ousam exibir símbolos de times de futebol, por medo de depredação da torcida rival. Médicos e advogados trazem suas respectivas credenciais simbólicas em suas respectivas traseiras. Parecem dizer: “olha o respeito, você aí!). Há aqueles motoristas que, ao contrário, espantam o medo ao querer infundir pavor, e se jactam de pertencer a algum clube secreto ou a uma tribo temível. Esses ostentam um símbolo como uma carranca amedrontadora. Como não temer a caveira do metaleiro, o distintivo de algum tribunal de alçada ou o esquadro e o compasso de um maçom veloz e intrépido?

Em tempos recuados, havia a filosofia dos parachoques de caminhão. Os caminhoneiros eram os maiores solitários do Brasil. Viviam longe de namoradas e da família. Só lhes sobrava um pouco de humor para compartilhar com quem os ultrapassava. Quantos aforismos maravilhosos não li em alta velocidade: “De pensar, morreu um burro, e, aposto que ainda não entendeu!” “Estrada reta é igual à mulher sem cintura, só dá sono.” “Divórcio é igual engenho, só devolve o bagaço.” “Há males que vem para pior.” “Se a prática conflita com a teoria, muda-se a teoria!” “Do frio do sul ao calor do norte, montado na morte, à procura da sorte” “Se a vida é um buraco, esta rua é cheia de vida”. Essas frases geniais dos caminhoneiro – que valem uma crônica à parte - estão desaparecendo das estradas, talvez porque tenham arranjado companhia fixa, talvez porque instalaram DVD-player na boleia, ou porque a nova ortografia aboliu a palavra “para-choque” e a substitui por uma feiosa “parachoque”. Com isso, os motoristas de caminhão estão perdendo o traço que os distinguia dos outros. Hoje a maioria usa o símbolo banal da companhia de seguros ou então os dizeres colados pelo dono da empresa de transporte com uma pergunta específica: “Como estou dirigindo? Ligue para...” Não existe mais metafísica nem mesmo no seu último baluarte: as carrocerias dos caminhões.

De um tempo para cá, noto que os carros e até os caminhões andam exibindo bonequinhos que representam um grupo de pessoas. São figurinhas simples, quase desprovidas de senso artístico que começaram a povoar todo tipo de veículo. Elas não estão ali apenas para fins de decoração, como anos atrás acontecia com Bart Simpson, Pink e o Cérebro e outros personagens de desenho animado. Não: as novas imagens têm um sentido específico, elas representam quem está dentro do carro, ou melhor, quem o ocupa habitualmente: a conjuntos com pai, mulher e filhos; outros já trazem o gato e o cão; há os que incluem até a sogra no alegre grupo de passageiros. A moda pegou. Trata-se de uma nova forma de afetividade. É também uma forma de informar que dentro do carro tem gente, tem muita gente. E também de parecer inofensivo aos outros motoristas. Alguns especialista chegam a dizer que as “familinhas” põem os passageiros em perigo, pois assim os bandidos podem detectar facilmente quem está dentro do veículo que pretendem assaltar. É um pouco de paranoia desses experts.

Não vejo perigo nem desdouro nos adesivos de identidade. Eles são veículos de proteção e de aproximação, formas de expressão de credo, origem, profissão e vínculo. Nada mais. Aqui do meu carro lento, suponho que o problema não seja o que desejam dizer, mas o que evitam dizer: as figurinhas passaram a servir como substitutos das relações humanas reais. Funcionam como uma anestesia à solidão que, apesar de toda a nova iconografia, insiste em existir. Quem vê carro quer ver coração. Mas acaba por enxergar o vazio que quer se ocultar sob a aparência de algum sentido.

domingo, 22 de novembro de 2009

Natal apressadinho

Natal apressadinho



Para um andarilho compulsivo, nada é melhor que o Natal. Costuma ser um tal de decorar casas, lojas e templos, um tal de querer surpreender quem passa pela rua, que eu tenho vontade de ter crianças de novo só para levá-las a passear, e ver a expressão de espanto no rosto delas, iluminada pelo pisca-pisca de milhões de lâmpadas colorididas.
Mas neste ano aconteceu algo paradoxal. O desaquecimento econômico e financeiro global deu mais brilho à cidade. Os pinheiros de Natal e as luzes surgiram muito antes do tempo, ainda em outubro. .As lojas já estão superdecoradas, com anões e alces de Walt Disney e as nevascas falsas, ao som de “Jingle Bells”. Diante de um shopping center, um Papai Noel autômato gigantesco vira a cabeça de um lado para outro para atrair visitantes. Do rádio à internet, passando pela televisão, a festa já se instalou.
O motivo é tosco. A recessão faz com que os comericantes venham com muita sede ao pote. Eles que esperavam um natal como o do ano passado agora estão com medo de ver suas mercadorias encalharem. É o frenesi da oferta, embalada em maus presságios de demanda. Algo adequado à ocasião, não é mesmo?
Enquanto isso, a “noite feliz” de verdade tem sofrido abalos em várias frentes. Anos atrás, os padres deram início à decadência quando anteciparam o horário da Missa do Galo. Por temor de desagradar aos fiéis, a missa passou da meia-noite para as 7 da noite. Os moradores de um bairro famoso na Zona Norte por suas casas decoradas estão desistindo do Natal por temer a invasão noturna dos turistas – e a depredação do patrimônio. E se aparecer um Papai Noel na sua frente, tome cuidado. Há uma gangue fantasiada do bom velhinho pronta para assaltar você.
Talvez eu esteja sendo melodramático. Um caminhante da minha laia, que tudo fuça com curiosidade mórbida, tende a exagerar nos sentimentos. Devo estar triste porque não há mais ninguém lá em casa que acredite em Papai Noel. Ando por aí e me sento no meio-fio da calçada para observar quem sabe aquilo que quero ver. Deliro. E assim dou vazão ao meu pessimismo incontinente. O leitor me desculpe, mas nâo consigo evitar esta azia da alma.
O pior de uma festa é antecipá-la sem que tenhamos tempo de esperar por ela.. Pelo andar do assédio, quando o Natal propriamente dito chegar, não terá sobrado nada, nem compras e nem esperança. O Natal virou uma festa pela qual você não espera, pois ela corre atrás de você. Que medo!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Capital dos pombais

O destino dos bairros de São Paulo é verticalizar. Tudo tende a ser substituído por um imenso pombal branco e cinza. Pombais é como a gente chama pejorativamente essas torres que andam brotando por aí, nos lugares mais absurdos. Surgem no meio de uma favela, ou no coração de uma vila tradicional. Os pombais estão varrendo SP de Leste a Oeste.
Conto o que vejo. No início do ano, fui convidado a participar de uma reunião da comunidade da capela de São Miguel Arcanjo, no Belenzinho. Na pauta, o futuro do bairro. Isso porque a Zona Leste já não é a mesma. As humildes casas térreas estão indo embora. No lugar, chegam os prédios – e, com eles, novos moradores. Como abrigar tanta gente numa capelinha fundada por uma família na década de 1930? O dilema daquelas pessoas é escolher entre se isolar num gueto ou converter a capela numa igreja. Gueto está fora de questão, avisou o padre. Eu me meti na história e retruquei: será que a ampliação não significa o fim da paróquia e a substituição por outra realidade?
A História marcha apesar dos nossos desejos. Viver no século XXI tira o fôlego. Alguém se lembra de Moema vinte anos atrás? O bairro ainda lembrava uma cidade do interior, com sobrados, praças, lojas e prédios médios. Outro dia tentei passear por lá e me espantei com edifícios residenciais de 20 e 30 andares. É impossível reconhecer alguns trechos antes familiares. Os prédios que pareciam grandes hoje são anões perto dos condomínios monstruosos. E o meu hábito de andar pelo meio-fio virou esporte radical por lá...
E assim a paisagem urbana vai mudando. Fui atrás de horizontes na Praça do Por-do-Sol, em Pinheiros. Encontrei só prédios surgindo ao longe, como bombas de efeito retardado. No início parecem inofensivos, mas logo o trânsito adensa, a aparência enfeia, sol desaparece, o vento sopra e apaga a esperança de uma cidade civilizada.
O emblema do futuro de SP reside no passado. Mora na avenida do Estado, no Centro. Trata-se do edifício São Vito. Construído em 1959, ele foi o precursor dos torreões que enxameiam o espaço urbano. Com 27 andares e 3 mil moradores, o prédio virou cortiço vertical. Agora a Prefeitura estuda sua demolição e a reurbanização da área.Aí eu me lembro daquele verso de canção: se for pra desfazer, porque é que fez? Se é para um dia a gente ter de recuperar a paisagem perdida, para que fazer o que será desfeito? Já sabemos o final do enredo dos pombais nascentes. Eles vão destruir a arquitetura e o resto de verde e poesia da cidade. Basta contemplar o São Vito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Datas extremas

Durante mais de dois dois anos, segui pelo meio-fio, persegui o que não se via ou não se queria ver, aqui da fronteira, do hífen que separa ou une a rua e a calçada. Anotei tudo à mão, no meu caderno de bolso, enquanto ia andando com o olhar atento, ou sonolento, ou desencantado.
Flagrei favelas destruídas para dar lugar a torres gigantes; políticas públicas sem pé nem cabeça; personagens e amigos que surgiram ou morreram; experiências tragicômicas de chuvas, festivais, bares e tropeços, dramas em filmes e em jogos de futebol; retratos de papagaios e cães. Conversei com o Sr. Trema sobre a nova ortografia; falei do paulistanês, dos andarilhos, dos catadores de papel, dos mágicos, dos mendigos que povoam as ruas. Refleti sobre a crônica e a vida do escritor nas redações. Recordei uma São Paulo byroniana e romãntica que não vivi, mas conheci por tabela. Fiz uma elegia ao poeta que se foi, contei a história de outro que se escondeu e fingiu morrer. Escrevi um testo que um amigo saudoso gostaria de ter feito. Narrei um encontro com o diabo e com os anjos. E contei um pouco de meus passos, hesitações e implicâncias.
Está é a crônica de número 89. Cheguei a escrever umas 20 outras, que não tive coragem de fazer pubicar, por serem talvez demasiado íntimas, ou simplesmente irrelevantes. Acho que posso até lançar um livro com as que publiquei e as que não ousei revelar. Elas formam um volume, uma obra que desde o início se impôs regras, como a de não mentir, seguir o balanço da inspiração e se resignar a um espaço de 2.500 caracteres. Outra regra dizia respeito ao meu incurável fatalismo: dancei pelo meio-fio entre o que ganhei e o que tinha de perder, como prometi no meu texto inaugural. Eu sabia que um dia os deuses me convidariam à retirada, que haveria datas extremas: 2007-2009. É como na vida, chega o instante de sair de cena. A gente sabe que vai se comover.
Meio-Fio foi um espaço raro de liberdade. Jamais fui censurado ou barrado em minhas ideias, fossem as mais estapafúrdias.. Foi um momento único em meus 26 anos de carreira. Pela primeira vez também posso me despedir. Jornalistas costumam sumir das páginas dos veículos sem informar destino – e deixam o leitor desnorteado. Agora tenho o privilégio de dizer até mais. Para o leitor que quiser “seguir” (termo tão em moda) os rastros deste escrevedor, vai achá-los na internet, em meu blog, no site e nas páginas da revista Época. E também vai me encontrar nas minhas andanças entre calçadas e ruas. As páginas e o tempo podem acabar, mas o cronista é teimoso, e segue a anotar o que vê, sente e pensa...

Avatares no Jardim da Luz

Uma tarde dessas eu passeava pelo Jardim da Luz quando percebi um casal jovem andando de mãos dadas a alguns metros diante de mim, perto do lago. Como sou um incorrigível bisbilhoteiro, prestei atenção no que falavam. Eles trocavam beijos e carinhos e pareciam no início do namoro. A certa altura, escutei ele sussurrar no ouvido da mocinha: "Mal posso esperar para ver como você é online..."
Em que mundo estou vivendo? - pensei com os meus cadarços desamarrados. Quer dizer que o moleque está com a namorada pertinho, mas ele só pensa na aparência dela na internet - no orkut, no messenger ou mesmo no Second Life!?
Enfiei o boné até o os olhos, ultrapassei os casal e segui caminho, pensando no caso. Nestes novos tempos de desejos tecnológicos, o mundo virtual parece ter assumido o aspecto de realidade mais real que a real. Lembrei que ele disse: “ver como você é” e não “como você aparenta”. A vida online é reveladora. Ela desmascara a pessoa offline. Melhor dizendo: a existência via computadores em rede se encontra em um nível superior ao cotidiano de carne e osso. Ela explica, abarca e se torna a verdadeira essência das coisas e dos seres. É como se abolisse a realidade, e os objetos concretos não passassem de mera aparência de um universo acima deles.
Imagino que o casal tenha marcado encontro na Luz do Second Life – e que lá deram um jeito de fazer amor dentro da gruta virtual. Cada um num canto da cidade de aparência (para mim a real), clicando ou apertando obsessivamente o “enter” do computador, para assim atingirem o superorgasmo do casal na tela, bem mais completo que o deste mundo físico de tão poucas variantes e de perfumes, identidades e rostos previsíveis. Online, ligados, os dois assumem seus avatares: ele é um guerreiro ninja; ela, uma princesa com os contornos sensuais de Lara Croft. O prazer da gruta virtual é essencial, ao passo que o prazer possível no mundo da presença física não passa de uma cópia imperfeita. Eis a moça brilhando no monitor, despida de toda as condicionantes humanas. Ei-la online, deslumbrande em sua nudez de fóton, pronta para se entregar ao amado do modo mais profundo e conseqüente, via internet.
Ainda não andei pela SP do Second Life (prometo que entro lá em breve), mas esse ultra-universo me parece uma versão inovadora da caverna de Platão. O filósofo preconizava a superioridade do plano da essência sobre o da aparência. E, nesse ponto, o amor do rapaz na Luz soa platônico: realiza-se apenas quando ele se eleva à essência do que ele imagina ser: o avatar. E seu objeto de desejo, a moça, só pode ganhar vida no ambiente digital.
Esse mundinho novo sem porteira dos avatares não serve para mim, não. Ainda prefiro a imperfeição, o perfume e a sedução da natureza.

Meu mundo caiu

Tarde dessas eu estava numa seção de discos clássicos de uma grande loja quando me dei conta de que me encontrava inteiramente sozinho. O DVD de um recital magnífico do violonista André Geraissati passava na tela de plasma, sem que houvesse vivalma na poltrona diante do aparelho. Eu gostaria de ver o produto, saber o preço etc. Mas cadê o vendedor, o atendente ou que nome leve o funcionário que deveria estar ali, se não ouvindo o freguês, pelo menos a tomar conta do local?
O setor de clássicos sempre foi o mais seleto e isolado. Mas nunca assim. Nem o mestre Geraissati se acomodava antes na prateleira erudita – sua música vai além de qualquer rótulo. Saí ao encalço de um ser pensante, mas, à medida que percorria as gôndolas, notei que não havia ninguém, salvo gatos pingados que ouviam o novo CD da banda Coldplay (que saiu antes na internet). Fui reclamar à moça do caixa. Depois de um muxoxo, ela chamou o gerente pelo telefone. O sujeito surgiu esbaforido. Quando lhe falei do DVD, arregalou os olhos e saiu atrás do produto como se brincasse de cabra-cega. Demorou um tempão, mas conseguiu descobrir o disco. Acabei comprando o Geraissati e o Coldplay. Mas não saí satisfeito.
Concluí o óbvio: lojas de discos não existem mais. Os clássicos estão sendo liquidados como tomate na xepa da feira. Numa cidade enorme como esta, um amigo e eu somos os únicos a ainda comprar sonhados álbuns, antes tão caros. Eu sei porque ele comprou outro dia uma caixa de sonatas de Beethoven pelo Arthur Schnabel que eu queria ter comprado. Aí ele me deu a dica de que havia uma igual numa das filiais da loja. Temos trocado idéias como se fôssemos os últimos audiófilos sobre a Terra da Garoa.
Não existem mais amantes da música, nem alma nesse negócio. No mundo todo, as grandes cadeias de discos estão fechando. A Tower Records e a Virgin saíram de cena nos Estados Unidos. Em cidades como Miami, restou uma única cadeia, a Fye, que mesmo assim empurra os discos cada vez mais para o fundo, em nome do destaque para games e filmes em blu-ray. Em São Paulo, sobraram seções de discos nas livrarias e em lojas de alta tecnologia. Há os sebos, mas estes não se comparam aos do passado. Recendem a mesquinhez, com seus donos sem trato nem cultura...
Disco e inteligência parecem ter se divorciado irremediavelmente. E assim descobri que meu mundo não existe mais. Deixe estar: tenho reservas de som suficientes para passar bem o resto da vida. Só tenho pena de quem não pode mais desfrutar de uma conversa com o gerente cultivado das lojas de discos de antanho.

Saudosa caixaria

– O senhor não sabe de nada. – diz o Paco com voz agressiva, enquanto prega numa caixa de compensado. – Isto aqui tá acabando!
O barulho do martelo não irrita, é o som do trabalho que Paco, um sujeito moreno de olhos puxados de seus 40 anos, faz ali, na rua Fröben, Vila Leopoldina, há uns 30 pelo menos. Ensurdecedor é caminhão, moto e carro passando pela via imunda. Lixo reciclável ou não, cães, gatos, galos e galinhas se misturam às caixas e tabetes - pequenos estrados também de compensado que servem para isolar do chão as frutas, verduras e legumes. Pela região, ainda se estendem galpões de tijolo de velhas fábricas, bares de sinuca, bordéis, casebres e pequenas oficinas de marcenaria. Ainda se vê chão de terra batida. É coração da Caixaria.
A Caixaria é um enclave entre as avenidas Imperatriz Leopoldina e Gastão Vidigal e as ruas Fröben e Aroaba. Ali, residem as famílias de trabalhadores dependentes dao CEAGESP, a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, do outro lado da Gastão Vidigal. O aspecto é de um povoado antigo incrustado na megalópole. E esta avança sobre o cenário que começou a ser construído em 1969, quando nasceu a CEAGESP, então CEASA. Até hoje, os habitantes da caixaria fala “o Ceasa”.
– Meu pai chegou aqui para trabalhar pro Ceasa – diz o China, o colega do Paco. – Dia e noite é fazer caixa pros atacadistas estocarem os produtos. Dia e noite alugando, montando, vendendo caixa.
China tem uma especialidade: compra e vende tabetes e vende casinhas de cachorro. Mas, em geral, a turma se arranja catando papel e lixo reciclável no bairro de classe-média logo adiante. Na caixaria, as crianças ainda andam descalças, as mulheres são donas-de-casa e carregam sacolas no vaivém do varejão. Nos sábados e domingos, a centena de moradores da Caixaria corre para a “xepa”, quando os produtos custam nada.
– Sobra de tudo pelo chão, a gente cata alface, tomate, batata – diz Karine, filha de 12 anos de Paco, de jeans e camiseta regata. – Ninguém passa fome na Caixaria.
No meio da Caixaria, quase na favela, há um terreno calçado com anúncio de uma torre de apartamentos de 2 e 3 dormitórios. “Concilie a ecologia com a vida urbana”, diz o anúncio, sem considerar uma possível conciliação com a vida primitiva dos caixarenses. Talvez a construtora tenha razão e não haja conciliação.
Com a Caixaria, está acontecendo o que já se passou com tantos e tantos bairros pobres históricos de São Paulo: a especulação imobilária, o avanço das incorporadoras, a destruição das malocas para que se ergam prédios de 30 e até 40 andares. Monstros que vão soterrar o casario pobre e deslocar os trabalhadores das caixas para regiões mais e mais distantes.
– Estamos sendo expulsos –– resmunga Paco, sentando-se na calçada para fumar. – Daqui a pouco só vai ter prédio. Que será de nós? Tanto faz, a gente vai lá pra trás dos armazéns do Ceasa, não adianta querer nos expulsar!
Eles crêem que, enquanto houver frutas, legumes e flores para vender, haverá as caixas – e gente vivendo delas. As caixas estão ali, amontoadas em até seis metros de altura como instalações comoventes, talvez mais humanas que os novos moradores das torres vizinhas. Pois estes desejam ver aquele poo bem longe de suas butiques, lojas e bares de açaí e balada recém-inauguradas.
Ao bater papo com a turma da Caixaria, sou invadido por um sentimento de nostalgia antecipada. Então tudo isto será derrubado para dar lugar a torres gigantescas... Chego a preferir mil bordéis, sinucas e uma cidade de caixas a ver tudo isso convertido em shopping centers. Mas, exceto eu, talvez, ninguém vai chorar pela Caixaria.

Não me roubem a noite

Ela tem seu regime. O principal ingrediente da noite é, claro, a escuridão. Noite só é ela por escurecer. Ao errar numa dessas noites pela rua Racine, me lembrei do escritor do século XVII que emprestou o nome ao logradouro. Numa tragédia, o francês Jean Racine fala do "horror de uma noite profunda", a escuridão que leva o sujeito a mergulhar nos dilemas e no medo que guarda no fundo da alma. A rua Racine ainda faz jus a seu padroeiro, e pode assustar pelo breu, como antigamente. Outras ruas próximas, no entanto, estão sendo iluminadas por lojas e bancos, roubando a noite do meu bairro, de todos os bairros.
Caminhando do breu das árvores em direção ao brilho das vitrines, observo o seguinte: à medida que a história se desenrola, os habitantes das cidades contraem um medo crescente de escuro – e querem enxotá-lo para mais longe. Thomas Edison inventou a lâmpada em 1879 e, desde então, a humanidade vem sendo iluminada em escala... assombrosa.
Os sedentos de luz costumam dizer que esta cidade é detentora de poucas luzes, se comparada a Paris ou Nova York. A noite no centro dessas duas metrópoles cintila. Paris, a Cidade Luz, começou a ser iluminada em arcos voltaicos isolados no ano da invenção da lâmpada. A Torre Eiffel e a lâmpada incandescente surgiram ao mesmo tempo, uma lançando fachos de glória à outra. Nova York, a primeira cidade a ter recebido iluminação em grande escala, em 1891, tem o Times Square, lugar onde a noite é sempre dia por conta dos prédios que emitem raios estroboscópicas, holofotes e imagens tridimensionais.
São Paulo, pobrezinha, ganhou sua rede elétrica em 1891, uma década depois das então grandes capitais - o Rio teve luz antes. Dessa forma, a Paulicéia até hoje não ficou de todo às claras. Talvez ela seja atrasada e candidata ao título de cidade-apagão. Mas a admiro assim, com seus lampejos bruxuleantes e raios que vez ou outra explodem os tansformadores. Será que alguém neste mundo precisa de arrabaldes e periferias com tantos postes e luminárias?
A lâmpada é a cúpula apoteótica da rede elétrica. É a invenção mais fundamental da civilização. Mas, talvez, a luz mais e mais resplandecente venha a ofuscar nossos sentidos. Um clarão que pode cegar a ponto de os homens do futuro serem incapazes de ler no papel. Agora me encontro diante de um computador iluminado: contemplo o nascimento destas palavras emergindo de uma lâmpada elétrica. O monitor não passa de uma lâmpada achatada.
Em vista do avanço irressistível da iluminação, chego a apreciar a calada dos blecautes. Pelo menos assim a gente não tem dúvida de que a noite da alma ainda pode se encontrar com a noite aqui fora. Sem luz, o ar fica mais fresco...

Corpos fragmentados

Quem me lê agora já entendeu. Quem me ler no futuro talvez fique intrigado. Mas vamos aos fatos deste sétimo mês no sétimo ano do século XXI. De repente, SP virou palco de uma tragédia sem precedentes: a queda do avião da TAM naquele que é agora conhecido como o Vôo 3054, que matou mais de 200 pessoas e espalhou destroços e pedaços de seres humanos na avenida Washington Luís.
Até então, o desastre dos desastres paulistanos era o incêndio do edifício Joelma, em 1º de fevereiro de 1974. Morreram 189 pessoas. Ficaram famosas as cenas de gente pulando do alto do arranha-céu do centro da cidade. Pessoas jogando-se de prédio em chamas se converteram no logotipo do sinistro, imagens que ecoaram no Onze de Setembro, embora os flagrantes de suicidas voadores tenham sido censurados pelo Pentágono e se apagaram da memória coletiva. Do Joelma saltaram imagens que acabaram grudadas na História e dizem até que anos depois fantasmas do prédio passaram a assombrar várias cidades.
O que dizer então do Vôo 3054 s seus “corpos fragmentados”, no novo termo lançado pelo Corpo de Bombeiros? A gente foi obrigada a encarar a morte violenta de frente, e ver e ouvir os responsáveis pelo resgate tentando amenizar o inferno com termos técnicos. Então surgiu a expressão “corpos fragmentados” para designar os restos mortais que os bombeiros acondicionavam em sacos plásticos para enviar ao IML. Chegou um momento em que não havia cadáver para jogar. Só restavam fragmentos, que tornaram mais terrível o trabalho de contagem dos corpos. Porque corpos, de fato, já não havia.
A expressão “corpos fragmentados” é mais chocante que “corpos despedaçados”, usada antes em acidentes de grande monta. O fragmento define o quase nada que sobrou deas pessoas, mutiladas e queimadas até desaparecer. Como seres podem desmaterializar assim, num átimo? Essa aniquilação soa mais extraordinária que a vida, ou mesmo que a vida após a morte. Daí o travo macabro, insolente, do termo “corpos fragmentados”. A fragmentação é o símbolo desta tragédia maior.
Por isso, as nossas almas fragmentadas tremem de pavor. Porque a tragédia não acaba jamais. É uma explosão nuclear de desespero, que vai amenizando como uma dízima periódica à medida que os corpos são identificados... mas não termina. O avião vai continuar aterrissando e arremetendo e batendo até que se apague a lembrança do último ente querido das vítimas... do último de nós.

Mais nova ortografia

A linguiça que tenha paciência, mas trema é essencial. Pelo menos para mim. Até 2013, quando a lei férrea contra os erros ortográficos entrar em vigor, vou continuar a manter o simpático sinal na minha escrita particular. O leitor já sabe como gosto de escrever, a mão, sem outra máquina intermediando que o lápis e o caderno. E nenhum revisor abelhudo e cioso do Acordo Ortográfico vai me impedir de agir assim, mesmo porque ele receberá o texto eletrônico devidamente corrigido.
No meu dia a dia (agora sem hífen) e no meu íntimo, sigo com o trema. Em texto passado, nesta coluna, contei da visita de despedida que o Sr. Trema me havia feito. O leitor deve lembrar que o ancião saiu da minha casa contendo o pranto – e até me convidou a encontrá-lo no idioma alemão. O que não contei é que há dias bati um papo com ele no Messenger, para lhe desejar Boas Festas e dizer que não o abandonarei. “Mesmo pq o trema naum k-iu de todo, vc sabia?”, teclei. “Ele continua em expressões como mühleriano ou björkiano!” Sr. Trema me respondeu com um emotion de extrema felicidade. Sorri de volta. O internetês é o máximo de novidade que me permito.
Sou do tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça com trema e tudo. Quanto às outras novidades do Acordo Ortográfico, ainda estou tentando entender as alterações seguindo as orientaçôes do lexicógrafo Evanildo Bechara, o nosso gramático-mor (será que vai hífen?). Caiu o acento em “ideia” e “heroi” e outras palavras terminadas em ditongos abertos. Mas aí fico a me perguntar o que será do ótimo samba “Filho da véia”, de Luiz Américo e Braguinha. A letra diz o seguinte: “Sou filho da véia/ E eu não pego nada/ A véia tem força, ô/ Na encruzilhada”. Sem o acento, a “véia” vira “veia”. Bechara ensina que devemos atentar para o contexto e daí depreender se se trata do duto que carrega o sangue venoso ou a senhora mãe do compositor. Ora, pela letra, é impossível chegar a uma conclusão. Um E.T. que aprendesse o novo português e lesse a nova versão da letra, poderia interpretá-la como a manifestação do vigor do povo, que põe fé na veia, na força do sangue. Nosso E.T. vai demorar para compreender....
O pior mesmo é o hífen. Não sei ainda se ele agora serve para unir ou separar vocábulos. Fui informado que agora paraqueta e mandachuva estão unidos poara sempre. Mas o “não” se divorciou de palavrs como comparecimento e “aceitação” – assim como diz que me diz que e fim de semana.agora são palavras que andam em regime de amor livre. Em compensação, ‘trouxe-mouxe” segue com hífen. Justamente troux-mouxe, que significa ação desordenada, confusão...

Pedestres mais velozes

Resolvi parar na guia para admirar a pressa em plena Avenida Paulista ao meio-dia de uma quarta-feira. Um corre-corre que parece não ter pausa, as pessoas andam tão velozmente que não consigo nem vislumbrar um semblante, o tal do rosto perdido na multidão se esquiva da gente numa espécie de vergonha de olhar ou ser olhado. Estou a me perguntar o que leva o cidadão a correr dessa forma que tanto parece lunática como é regida por uma força maior, uma lógica do horário.
A questão é velha, claro. Há dois séculos surgiu a multidão, como bem observou o escritor americano Edgar Allan Poe, ao fazer o retrato da Londres da Revolução Industrial no conto “O Homem na Multidão”, de 1843. Poe demonstrava que, a partir daqueles anos, era possível se esconder na massa humana da cidade. O espaço que antes era personalizado (as pessoas se cumprimentavam!) ganhou ares de esconderijo, a fumaça escondeu as estrelas e os indivíduos. Foi mais ou menos nessa época que as multidões começaram a invadir os centros urbanos. Pobre Charles Baudelaire! O poeta maldito flanava pelas galerias de Paris quando as hordas de pedestres o atropelaram. Passear nas grandes cidades passou a ser impossível. Em São Paulo, o fenômeno aconteceu nos anos 1930, quando a Paulicéia se desvairou com as fábricas e os imigrantes.
Então faz muito tempo. Quando me lembro das multidões que vi, sou invadido por imagens aceleradas que às vezes passam na televisão, imagens de pessoas correndo noite e dia sem cansar – vem a noite, amanhece e entardece, tudo seguindo igual, numa espécie de centrífuga. Pego o jornal e leio sobre um estudo feito por uma universidade ingles (Heartfordshire), que mostra a aceleração da velocidade dos pedestres nas cidades do muindo inteiro. Segundo os cientistas, as pessoas andam muito mais rápido hoje do que há dez anos (o que dizer de 160 anos atrás?). Curiosamente, São Paulo não está entre as dez cidades campeãs da pressa. Cingapura é a vitoriosa, com aumento de 30 por cento na velocidade desde 1990, seguida por Guangzhou, na China, com 20 por cento. Na Europa, Copenhague e Madri bateram Londres e Paris. Curitiba, não São Paulo, é a vencedora no Brasil. Os especialistas atribuem a culpa à cultura 24 horas, ao e-mail e ao celular. Estar permanentemente disponível está convertendo as pessoas em carne para moer. Pensamentos para moer. São Paulo está nessa, mesmo sendo vencida.
Aqui da sarjeta, imaginei me levantar, e virar um “flâneur” agora na Paulista... não observar horários, andar à solta bem devagar, fitar cada rosto e cumprimentar cada um que eu encontre. Mas, caramba, eu seria considerado mais um dos tamtps loucos que assombram os outros nestas ruas, tentando afirmar sua individualidade...

Sonho de regente

Diz o ditado latino que o leopardo sonha com o leopardo, o lobo com o lobo. Imagino como isso possa acontecer. Uma serpente que sonha com uma serpente parece uma ideia grotesca, uma alegoria do veneno eterno da História. Ela deve escutar chocalhos e zunidos do outro e os olhos se destacam do resto do corpo, mesmo na imprecisão de um pesadelo.
Até sonho às vezes com cães que me mordem no vazio da noite – e deve ser resquício infantil. Eu me lembro de ter sido mordido por um cão, e o sangue me vem à mente, sangue que eu derramei ao tropeçar, não que o cachorro tenha me mordido. Sou tomado por uma onda de horror e toda vez parece que não há saída. O sonho que mais me assalta, porém, é o que conto a seguir. E, claro, trata-se de um sonho com gente, estranha. O mesmo sonha com o mesmo, embora seja outro.
Está escuro, ouço o barulho e os risos de uma plateia que está ali em frente. Eu me encontrou nas coxias de um teatro. Alguém, um contrar-regra talvez, ou um ponto, me chama à cena. Limpo a garganta como se fosse cantar. Mas ao chegar à boca de cena descubro que estou de fraque e com uma batuta na mão direita. Vou reger uma orquestra. O público aplaude com barulho. Inclino-me e diviso a sala cheia, com quatro ou seis andares, não sei ao certo. Uma casa de ópera que pode lembrar Viena, ou Paris. Talvez não passe do cinema Ópera que eu frequentei quando criança, um antigo teatro de ópera na Serra Gaúcha. Não pode ser lá porque eu não estaria de fraque e nem a orquestra seria tão disciplinada. Tantos andares de balcões não havia...
A orquestra está toda a postos, os violinos de arco em riste, os sopros em posição de ataque, a percussão em suspense, esperando uma ordem. Minha. Lanço um olhar sobre os músicos, e percebo que o grupo é enorme, formação para tocar uma obra gigantesca. Um coro se posta diante dos instrumentistas. É peça de grande fôlego, algo pós-romântico. Quem sabe um poema sinfônico de Richard Strauss. Respiro fundo e tento me lembrar por que estou aqui.
Nenhuma lembrança me dá atenção. A sensação não é de amnésia, e sim de uma espécie de naturalidade diante do destino que me conduziu até este lugar. Parece outra vida. Eis-me aqui porque tenho que cumprir uma tarefa. E assim me dirijo ao pódio, dou as costas ao público, e leio a partitura que está disposta na estante: “Gustav Mahler – Simphonie N. 7 in E Minor - I. Langsam - Allegro risoluto, ma non troppo”. Nas páginas suavemente amareladas, os instrumentos estão distribuídos, a armadura da clave clara tudo pronto para a execução. Bato três com a ponta da batuta no canto da estante e dou o sinal erguendo-a até acima da cabeça, os braços bem abertos. Eu sei que vão me criticiar pelo gesto, porque maestro de verdade não faz assim. É contido, os braços quase presos ao corpo. A posição aberta parece indecorosa, desproporcional a meu talento.
Agora não é mais possível recuar, pedir desculpas ao público e me retirar, sob vaias e pateadas. Mesmo que eu fareje o pânico tentando dominar minha razão. Já não tenho certeza de que é sonho. Experimento o suor do medo real. Devo conhecer esta sinfonia de cor e por um instante procuro me lembrar de alguma gravação, para não ser surpreendido e dar o ataque errado. Preciso me lembrar, é um início desajeitado, esquisito, o mais estranho entre os das sinfonias mahlerianas. Há um episódio de tímpanos, aí vêm as cordas e os metais, acho que é assim, vamos lá..
Para meu espanto, a orquestra executa e desenrola o movimento com uma lógica irresistível, e parece até o fim, porque a peça anda aos fragmentos, segue o seu caminho de forma-sonata que se estilhaça no tempo. Tento gesticular, marcando o compasso com a batuta, e criar expressão com a mão direita. Mas é como se eu não tivesse controle algum sobre a música. Nem ela sobre mim. Á medida que a harmonia profunda se impõe à minha frente, encontro-me mais sozinho do que nunca entre músicos e ouvintes, esbraçando como um nadador que tenta não se afogar em um fosso, e é tragado.
Eu deveria ter assumido o papel e me mantido sobranceiro até o último compasso. Só que me perdi nadando de costas para o público, de frente para os instrumentistas. Se eu tivesse me comportado como um profissional e representado com segurança, ninguém teria me escorraçado como pária, intruso. O farsante teria sido oculto pelo véu da pose, da batuta em riste. Sim, o fracassado sonha com o fracasso, mas não é o seu. Não pode ser o seu...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Ciclo de vingança

Remonta ao tempo do onça o hábito de a torcida vaiar e agredir jogadores e técnicos de futebol. Começou com a primeira derrota, o frango primordial. O onça foi esquecido, embora a prática bárbara continue popular. Os tempos mudam uma hora destas. E mudaram para o Gilmar.
Ele é chefe de uma torcida de um tradicional clube de futebol da capital. Pode ser chamado de fanático. Seu lado positivo é organizar excursões quando o time joga fora, conferir os treinos, pintar faixas. Sabe conciliar as atividades com a de caixa de banco. O lado negativo está em não suportar quando o time perde uma partida. Toda vez que isso acontece, chama seu bando de choque e dá um jeito de espezinhar ou agredir a equipe.
Um dia Gilmar combinou com a torcida de jogar moedas no campo na direção de Uonderson, o atacante que idolatrava. Como Uonderson recebeu uma proposta melhor de um clube estrangeiro, tudo mudou. De herói, passou a saco-de-pancada.
No jogo seguinte, Gilmar esperou Uonderson se aproximar da lateral para puxar o coro: ”Mercenário! Mercenário”. Enquanto isso, uma chuva de moedas atingia o atleta. Não foi o bastante, Gilmar e gangue esperaram o jogador à saída do vestiário. Em formação de correcor polonês, desferiram-lhe uma saraivada de cascudos. O jogador foi para casa humilhado no seu carrão importado. No ônibus, a turma de Gilmar só ria.
Uonderson planejou sua revanche. E como vingança é um prato frio, demorou semanas para se realizar. Na manhã do dia 5 do mês de dezembro, Gilmar pegou no serviço. De paletó e gravata, sentou-se ao caixa para iniciar um expediente cheio, pois era dia de pagamento. As portas se abriram. Um grupo de rapazes fez fila diante dele. Eram un 20 atletas de seu time, ecabeçados por Uonderson. “E aí, vai demorar pra atender?”, gritou o craque. “Calma, amigos, vou atender a todos!”, replicou o bancário, pasmo. “Mano, cê tá demorando”, falou alguém de trás da fila. Outro ofendeu: “Você não vale nada!” Gilmar não teve tempo de pensar, nem o segurança de intervir. O bando avançou, deu-lhe cascudos e o arremessou para o alto, gritando: “Mercenário! Mercenário!” Uonderson mandou colocarem Gilmar de volta à cadeira, e proclamou. “É para você aprender como a gente se sente quando a torcida nos agride. A gente é tão profissional quanto você. Dói, né?” No fim, o time à paisana lançou sobre o subgerente um tornado de notas de um real, e se retirou às gargalhadas. Gilmar quis morrer, mas engoliu em seco e atendeu o primeiro cliente.
Será que aprendeu a lição? Quase. Agora mesmo ele está lá no centro de treinamento do clube, todo feliz, jogando pipoca nos jogadores...

sábado, 22 de agosto de 2009

Vista para o mar

Quem disse que São Paulo não tem praia? Basta dar uma olhada na rua nesta sexta-feira por volta das seis da tarde. As “prainhas” se espalham por todos os quadrantes da metrópole, do centro à periferia, invadindo também os bairros mais ricos. Assim são chamados os bares com mesas nas calçadas. Ali o pessoal se reúne, bebe cerveja, faz barulho e joga conversa fora. É um espaço cenográfico que simula areia e mar. Só não há nada disso por mera contingência.
Vamos nadar pela História. A colonização do Brasil começou na praia. Martim Afonso de Sousa fundou a vila de São Vicente em 1532, a primeira povoação brasileira. São Paulo de Piratininga foi criada 22 anos depois, num planalto magnífico próximo ao oceano. No início, não passava de um reduto indígena gerenciado por jesuítas. Para os padres, tratava-se do local mais aprazível do planeta – que eles conheciam bem, pois percorriam os continentes conhecidos O clima era ameno, as montanhas suaves, rios e vegetação abundantes. E ficava num ponto estratégico, entre o mar e o interior desconhecido do Brasil. Por isso, os bandeirantes apelidaram São Paulo de “a boca do sertão”. Pela boca se iniciou a exploração do interior. Isso deu ao reduto, mais tarde vila e, por fim, cidade, uma carcterística: a cabeça bifronte, contemplando a um só tempo o sertão com espírito de aventura, e o mar, com nostalgia do espaço abandonado.
Escrevi o parágrafo aicma só para dar crédito histórico às multidões de clientes dos bares, que olham para fora buscando visões de ondas batendo nos rochedos. Sim, e elas têm razão em mergulhar na imaginação, porque que nem mesmo as previsões mais catastróficas de aumento do nível dos oceanos por conta do aquecimento global trarão uma tábua de marés às prainhas da Paulista. Talvez a profecia do Antônio Conselheiro fosse propícia. Porque, se o sertão virar mar e o mar virar sertão, a boca do sertão reúne credenciais para se converter em boca do mar, entrada de golfo ou baía. Aí, sim, seria possível para os bebuns trocar a miragem por uma mesa mais próxima da arrebentação.
Enquanto as profecias não se verificam, as prainhas servem como paraísos artificias para quem não pode descer ao litoral. Não poderia haver nome mais expressivo. Porque praia é um estado de espírito. É um olhar e um gesto criador. Sem muito esforço, os freqüentadores de prainha conseguem transformar o concreto em palmeira... especialmente quando estão mais altos.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Cidade macabra

Quando esteve por aqui, semanas atrás, o diretor de cinema inglês Peter Greenaway contou que, na vez anterior em que estivera na cidade, em 2001, tinha observado urubus voando nas alamedas.A visão o inspirou a fazer um filme de vampiros na Paulicéia, um longa-metragem que retratasse a cidade.
Fiquei admirado com a intuição de Greenaway. Porque São Paulo é e sempre sempre foi lugar inspirador de histórias de terror - e ligado ao macabro. É curioso que os paulistanos não assumam a faceta lúgubre, coisa que os londrinos já fizeram. Comentei isso com a escritora Lygia Fagundes Telles, ao entrevistá-la sobre seu último livro, Conspiração de Nuvens. Um dos relatos da obra me transportou à São Paulo horrenda e fantástica. E ousei sugerir à grande dama das letras: “Lygia, por que você não escreve um romance sobre a São Paulo byroniana do século XIX?”. Ela sorriu enigmática.
O livro de Lygia me fez pensar na cerração e na garoa gelada que tornavam a cidade dos estudantes de Direito de 1830, 1850, um lugar de devaneios fúnebres e até satânicos. Os poetas ultra-românticos, que têm bustos nos arcos da faculdade do Largo de São Francisco, fizeram época com suas cerimônias iniciáticas em cemitérios, orgias, banquetes em pensões de reputação duvidosa e tertúlias embaladas a ópio e álcool.
Conta-se que Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo passavam as noites em festas dissolutas na Ilha do Amor, como era conhecida uma ilhota no meio do Rio Tamanduateí. Ali, Bernardo tocava lundus pornográficos ao violão, enquanto Maneco – o apelido de Álvares de Azevedo – se embebedava com aguardente e poesia satânica. Noites na Taverna, livro de Álvares de Azevedo, é ambientado numa São Paulo alegórica. Sua peça Macário é a versão caipira do pacto com o Diabo. Dessa fase, Bernardo Guimarães deixou a “Orgia dos duendes”. É fácil imaginar a cerimônia de bruxaria num matagal paulistano de 1850, mulheres de mantilha no transe do cateretê bestial: “Já ressoam timbales e rufos, / Ferve a dança do cateretê;/ Taturana, batendo os adufos, / Sapateia cantando — o le rê!”. Eram textos inspirados em Lorde Byron, o modelo daquela geração, que tratou de dar cor local ao niilismo do poeta irlandês.
A São Paulo sombria gerou infinitas histórias desse tipo: o túmulo do professor Julius Frank no pátio da São Francisco, excomungado por ter fundado uma sociedade secreta; os incêndios dos edifícios Andraus e Joelma em 1972 e 1974 e a mitologia espectral que resultou dos sinistros; os enterrados vivos da Via Amarela; os filmes aracnídeos de Zé do Caixão... É a vocação de uma cidade.
Torço para que um romance futuro de Lygia Fagundes Telles aborde os poetas lúgubres e obscenos do Romantismo. Também espero ver Peter Greenaway tirando vampiros das bocas-de-lobo locais.

domingo, 12 de abril de 2009

Lembranças de um hotel

Hotéis são paradoxais. Apesar de sólidos e construídos para durar, deixam ao mesmo tempo transparecer uma instabilidade, como se soubessem que passam. Eles cruzam por nossas vidas, surgem e somem ao sabor do acaso. Eles imitam o destino de seus hóspedes. Hotéis são hóspedes da História, também vão e vêm. Para quem mora nos arredores, evocam visitas, encontros, espetáculos, situações banais ou inusitadas. Por isso, me emociono tanto quando certo hotel some de repente.
O parágrafo que acabou é só uma desculpa para falar de um hotel fascinante, candidato à desaparição: o Maksoud Plaza. O luxuoso prédio com seu átrio de 22 andares, fundado em 1979, foi a leilão e não apareceu comprador. Continua a funcionar, mas ninguém sabe até quando. Outros grandes hotéis tombaram: Crowne Plaza, o Hilton do Centro, o Cesar Park. O Maksoud é o derradeiro representante do brilho dos anos 80.
Vou lá no sábado frio me despedir dos velhos tempos. Já não exibe a velha elegância. Na realidade, está meio às moscas. Sento-me no velho sofá de couro, peço um café e contemplo o lugar, entregando-me a devaneios.
Ainda “foca”, em 1984, entrei de gaiato numa das salas do mezzanino para ver a entrevista coletiva que o escritor Jorge Luis Borges concedeu e segui o ancião cego de bengala para dizer que era seu fã. Ele me olhou nos olhos, sorriu e estendeu a mão. Sim, naqueles corredores, tive a certeza de que Borges enxergava.
Ali perto, diante da sala de jogos, numa madrugada do início dos anos 90, o roqueiro Axl Rose lançou uma cadeira na direção dos repórteres. Adivinhe quem estava entre os alvos? Fomos parar na delegacia. Fiquei orgulhoso de fazer o Axl tocar o seu melhor solo de piano... imprimindo suas digitais no prontuário da polícia.
Tantas outras coisas sucederam lá. No restaurante, em meados dos 80, almocei com a cantora italiana Rita Pavone e encontrei as Supremes. No 150 Night Club, no subsolo do hotel, vi shows lendários, como o do cançonetista Bobby Short e da papisa do blues Alberta Hunter. E as entrevistas? Foram tantas: minha primeira em inglês, com a pianista de jazz Toshiko Akiyoshi, e conversas longas com os mestres Tom Jobim e Miles Davis e o teórico agitador Antonio Negri.
O ápice da minha carreia de freqüentador do hotel foi em 1994: hospedei-me no Maksoud para espionar a banda Rolling Stones: passei dias entrevistando copeiros e garçons, coletando hábitos bizarros de Mick Jagger. O resultado foi nulo, pois a única excentricidade de Mick era tomar coquetéis de vitamina. Era caretão...
O átrio descomunal guarda lembranças, e se esqueceu de tantas outras. Passo pela porta giratória, enquanto tento disfarçar com a garoa uma lágrima impertinente. Sinto que deixei muito de mim para trás.

O Tao da guia

Neste instante tento me equilibrar na guia entre a calçada e a rua, ao passso que espero o ônibus. Por segundos, fecho os olhos para testar meu senso de equilíbrio – ginástica cerebral, dizem. Ao abrir os olhos, satisfeito por me manter a prumo, vejo a lanchonete do outro lado da rua. Ela anuncia refrescos de frutas diferentes. Então me lembro da Mônica e, mesmo no frio, cogito em tomar um suco de, digamos, mangaba com cupuaçu. É perto, mas o trânsito é louco, o ônibus vem rápido. Mais uma vez vou desistir.
É que um dia dsses a minha amiga Mônica (e pelo nome você já identifica a idade que tem, porque até nome tem safra e a safra das Mônicas é de longos anos atrás) me sugeriu pelo messenger que eu tomasse um suco gelado. “É longe”, digitei. O dia suava, mas não tomei suco, não andei nem me distraí. Tudo longe e muito quente. Tomar suco em São Paulo pode ser uma das missões mais difíceis. Ou comprar um parafuso. Pão. Pensamento: eu culpei a Mônica, porque ela não me convidou para o suco, pois estava a passeio em Dublim, longe daqui, na Irlanda. Ela deu a idéia de eu me divertir, numa daquelas semanas em que começo a resmungar que gostaria de saltar de mim mesmo no próximo ponto... mas saltar para quê, e para onde?
Não, leitor, não venha me acusar de pânico social. Pelo contrário, vivo de excesso de gente. Minha família é grande, estou sempre às voltas com parentes, contraparentes e amigos de amigos. Além disso sou jornalista, em contato com centenas de pessoas diariamente na redação – e não conheço nada mais enxameado de seres coisas e para fazer que uma redação. Ando mesmo é ocupado.
Não tenho hora nem ocasião de jogar uma bola ou nadar. Quando leio, vejo filme ou vou a um espetáculo, é para alguma reportagem. Sou como o ginecologista, que trabalha onde os outros se divertem. Só me resta mesmo me divertir onde os outros trabalham... Vivo numa mistura esquisita de espírito aventureiro e ostracismo. Pode me chamar de taoísta, de seguidor de Lao Tsé na prática da não-ação, uma não-ação turbulenta, vamos definir assim.
Mas agora, andando pela beira da calçada, sou tomado de euforia. Não importa embarcar no ônibus sem ter saboreado o refresco. Afinal, ao menos uma vez, tudo estava à mão. Percebo que longe e perto não são mais que preconceitos, reles noções geográficas que dependem do estado do espírito. E o meu espírito erra pela distância. Ou pela preguiça. Vou beber um suco pelo messenger em Dublim.

domingo, 22 de março de 2009

O fim das bibliotecas municipais

Nostalgia é o oitavo pecado capital destes tempos. Incorro nela de quando em vez, e sinto o olhar reprovador de quem está por perto e nota a infração. Confesso que, num desses acessos de nostalgia, cometi o crime de visitar a biblioteca pública do meu bairro. Cheguei de mansinho, talvez pensando em reencontrar nas prateleiras os livros que mais me influenciaram e emocionaram. Encontrei racks de metal com volumes empoeirados à espera de um leitor que nunca mais apareceu. O lugar estava oco. A bibliotecária me atendeu com aquela suave descortesia paulistana, como se o visitante fosse um intruso a ser tolerado, mas não absolvido. Eu me senti uma assombração do passado a importunar a ordem do agora.
“Procuro uma coletânea de contos fantásitcos do Aluísio Azevedo”, disse à senhora. “O senhor trouxe a referência?” Não. “Por que não consultou o catálogo pela internet?” Sei lá por quê, eu só queria parar e ler uns livros difíceis de encontrar e talvez levar emprestados... “Os empréstimos são limitados a quatro volumes e a devolução acontece em 15 dias”, ela metralhou, com os olhos pregados no monitor velho e encardido. Por fim, informou que não tinha o livro que eu buscava. Virei as costas, imaginando o alívio da funcionária em me ver ir embora. Agora ela podia voltar a sua preguiçosa solidão.
Em tempos idos, eu encontrava nas bibliotecas públicas um abrigo para meditar, planejar e fugir do mundo. Passeava pelas estantes como quem viajasse por outros mundos, tempos e realidades, memórias, histórias, uma lição de vida aqui, uma descoberta da crueldade humana ali, fantasias inúteis acolá. Devo às bibliotecas a minha formação. Fiz mestrado e doutorado passando tardes enfurnado na Mário de Andrade e no Arquivo do Estado. Anos atrás, as bibliotecas de bairro eram cheias. Os usuários se interessavam por cultura, e não apenas como uma ferramenta para subir na vida. Havia oficinas e debates. Os livros de poesia e os romances não paravam nas prateleiras. Agora os ácaros venceram os leitores.
Saí da biblioteca e me dirigi a uma lan house repleta de moleques e adultos, absortos em pesquisar, mandar emails etc. Pela internet, encontrei O touro negro, de Aluísio Azevedo, disponível em arquivo digital. E pensei: perto de uma lan house imunda como aquela, as poeirentas bibliotecas municipais lembram santuários abandonados. Não espanta que a prefeitura queira fechá-las. Elas não servem mais a ninguém. Nem mesmo a mim, que sempre as amei.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Pets e viralatas

Por onde passo, vejo cães adultos e filhotes das raças mais variadas. Eles estão nos best-sellers. Dou um pulo na livraria e ei-los na lista de livros mais vendidos. Três títulos em torno de cães estão entre os dez mais: Marley e Eu, sobre a relação delicada entre um dono e mascote; De Bagdá, com Muito Amor – sobre Lava, o filhote resgatado que trocou o Iraque pela Califórnia; e O Encantador de Cães, autobiografia de um adestrador de cachorros de estirpe.
No shopping center, são vendidos na vitrina, umas fofuras a peso de ouro. Mesmo num parque, no domingo passado, gastei parte de meu tempo admirando animaizinhos enjaulados, alguns em promoção. Pelas alamedas e ruas, os donos levam rottweilers, dachshunds e cockers spaniels, com cara de orgulhosos da sujeira que seus pets fazem à medida que desfilam diante dos passantes encantados.
Os cães raçudos já são os senhores da calçada. Os donos em geral não observam a lei do município, que obriga o uso de pá e saco plástico para recolher seus dejetos.Também não faz diferença, porque calçada mesmo não existe na cidade... Os adoráveis peludos têm hotel, butique, loja, restaurante e agora até um serviço de seguros que oferece banho e tosa em casa!
Há raças mais “fashion” que outras. Por exemplo, os donos de pitbull andam com vergonha dos bichos e tentam se livrar deles, por razões óbvias. Isto tem ocorrido muito: como viraram produtos, os pets deixam de ser pets quando crescem, perdem a graça e aumentam a produção de excrementos. As crianças os rejeitam, os adultos passam a detestá-los. Alguém ainda tem um pequinês como mascote? Nunca mais vi aqueles cachorros anões, de orelhas enormes e língua para fora, latindo com o focinho nos portões, prontos para morder. Os pequineses saíram de moda e foram expulsos dos lares.
Fui ao cinema e percebi que eles já são astros do mutliplex. O filme Vira-Lata, da Disney, está para estrear, contando a história de superação de um beagle abandonado, num mundo em que pedigrees mais altos são cada vez mais valorizados. E é obrigado a conviver com os vira-latas.
Se beagles e pequineses não têm mais valor, o que dizer dos vira-latas? Reparei que os cães sem dono não andam mais pela “zonas nobres” da cidade. Pelo jeito, tiveram o mesmo destino dos pequineses: foram banidos do mapa – e do nosso afeto. Eu me lembro de um tempo em que as crianças não jogavam fora seus mascotes. E se alegravam com o abanar do rabo de um amado vira-lata. Mas hoje tudo está mudado: até catador de papel tem husky siberiano para puxar carroça.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

A bilhteira mística

Maura tem 26 anos e gastou tempo demais pensando no que fazer da vida. Namorou e brigou. Queria sair da casa dos pais na Vila Clarice e não conseguiu. Começou muitos cursos e os trancou. Imaginou projetos que não foram adiante até que abandonou seus ideais na ilusão de náo sofrer. Dispersou o seu talento na indecisão.
De dúvida em dúvida, há dois anos acabou sendo aprovada em um concurso como funcionária do metrô, e se rendeu à necessidade de trabalhar. No primeiro dia, já a jogaram no guichê de vendas de bilhetes. Tremeu cada minuto das oito horas de expediente.
Voltou para casa tremendo. Quase não conseguiu dormir. “Não possso aguentar”, pensou enquanto virava de um lado a outro na cama. A resolução lhe deu tanto alívio que sonhou até que o despertador a chamasse às 6 da manhã. A mãe avisou-a de que tinha de pegar no serviço dali a uma hora. “Não vou”, anunciou, a cabeça debaixo do travesseiro. A mãe insistiu, trouxe-lhe café com pão. Meio a contragosto, prometeu tentar uma última vez. Chegou atrasada porque errou o endereço.
Aos poucos, acostumou-se à rotina – e ao salário baixo. Progrediu, não na carreira, mas por dentro. Seu sorriso pode ser visto no guichê ou diante das catracas na estação Barra Funda. Logo ela, que sempre se extraviou no tempo e no espaço, tomou gosto de orientar os passageiros. Voltou até ao curso de Inglês, para lidar com os estrangeiros, que lhe enchem de perguntas, e não só sobre itinerários: querem dicas de passeios e sugestões de roteiro cultural.
Mas o que deixou Maura surpresa foi o comportamento dos passageiros. Jamais pensou que as pessoas fossem tão carentes. Passou a notar que as filas diferenciam umas das outras, e cada uma das dezenas de pessoas que compõe as filas tem personalidade própria. Estranhou que em geral elas não compram bilhetes múltiplos. Querem uma passagem de cada vez, talvez para bater papo ou lhe dar bom-dia.
Fila é área de lazer, concluiu. Uns confessam segredos, outros querem opiniões sobre quaisquer assuntos, pechincham, levam presentes e santinhos. Há quem se aconselhe sobre teorias filosóficas. Um sujeito aparece por lá todos os dias. Espera horas só para, quando chega a sua vez, olhar no fundo do olho de Maura. Seria hipnotismo ou xaveco? Outra tarde uma senhora pediu que previsse o seu futuro, sem ligar para quem vinha atrás. Eu mesmo gosto de passar pela estação só para praticar meu inglês com ela. Maura acha graça:. “Neste trabalho, descobri que as pessoas se sentem seguras na fila. E que são muito mais perdidas do que eu!” Enfim, encontrou sua vocação: guru...


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