quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Corpos fragmentados

Quem me lê agora já entendeu. Quem me ler no futuro talvez fique intrigado. Mas vamos aos fatos deste sétimo mês no sétimo ano do século XXI. De repente, SP virou palco de uma tragédia sem precedentes: a queda do avião da TAM naquele que é agora conhecido como o Vôo 3054, que matou mais de 200 pessoas e espalhou destroços e pedaços de seres humanos na avenida Washington Luís.
Até então, o desastre dos desastres paulistanos era o incêndio do edifício Joelma, em 1º de fevereiro de 1974. Morreram 189 pessoas. Ficaram famosas as cenas de gente pulando do alto do arranha-céu do centro da cidade. Pessoas jogando-se de prédio em chamas se converteram no logotipo do sinistro, imagens que ecoaram no Onze de Setembro, embora os flagrantes de suicidas voadores tenham sido censurados pelo Pentágono e se apagaram da memória coletiva. Do Joelma saltaram imagens que acabaram grudadas na História e dizem até que anos depois fantasmas do prédio passaram a assombrar várias cidades.
O que dizer então do Vôo 3054 s seus “corpos fragmentados”, no novo termo lançado pelo Corpo de Bombeiros? A gente foi obrigada a encarar a morte violenta de frente, e ver e ouvir os responsáveis pelo resgate tentando amenizar o inferno com termos técnicos. Então surgiu a expressão “corpos fragmentados” para designar os restos mortais que os bombeiros acondicionavam em sacos plásticos para enviar ao IML. Chegou um momento em que não havia cadáver para jogar. Só restavam fragmentos, que tornaram mais terrível o trabalho de contagem dos corpos. Porque corpos, de fato, já não havia.
A expressão “corpos fragmentados” é mais chocante que “corpos despedaçados”, usada antes em acidentes de grande monta. O fragmento define o quase nada que sobrou deas pessoas, mutiladas e queimadas até desaparecer. Como seres podem desmaterializar assim, num átimo? Essa aniquilação soa mais extraordinária que a vida, ou mesmo que a vida após a morte. Daí o travo macabro, insolente, do termo “corpos fragmentados”. A fragmentação é o símbolo desta tragédia maior.
Por isso, as nossas almas fragmentadas tremem de pavor. Porque a tragédia não acaba jamais. É uma explosão nuclear de desespero, que vai amenizando como uma dízima periódica à medida que os corpos são identificados... mas não termina. O avião vai continuar aterrissando e arremetendo e batendo até que se apague a lembrança do último ente querido das vítimas... do último de nós.

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