quarta-feira, 18 de abril de 2012

O pequeno grande mundo de J.K.Rowling

O romance adulto da “mãe” de Harry Potter é uma crítica de costumes – e Harry Potter pode ser lido como tal

LUÍS ANTÔNIO GIRON

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O romance adulto da “mãe” de Harry Potter é uma crítica de costumes – e Harry Potter pode ser lido como tal
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A escritora britânica J.K. Rowling está ficando previsível. A “mãe” de Harry Potter liberou o site Pottermore, um prolongamento digital e interativo do universo do bruxo, e anunciou que vai escrever uma enciclopédia sobre o mundo paralelo que criou – e, ao contrário da Enciclopédia Britannica, garanto que a Enciclopéda Harry Potter será publicada também em papel. Rowling divulgou o argumento do seu primeiro romance adulto, The casual vacancy, que estou traduzindo obrigatoriamente, vamos dizer assim, como A vaga ocasional. Vamos dizer assim porque nós, jornalistas, gostamos de praticar a autovacinação e prudentemente não se antecipar ao tradutor e a qualquer confronto. Um romance adulto poderia soar como algo imprevisível, em se tratando de uma autora que se consagrou nos livros infantojuvenis. Mas, salvo erro, sou capaz de antever e até resenhar de antemão o livro. Sim, jornalistas se vacinam, mas também são presunçosos. Praticamos a presunção imunizada. Quantos, por exemplo, necrológios não escrevemos de antemão? Não será incrível praticar a resenha sem a obra.

A vaga ocasional pode ser descrita uma sátira e uma crítica de costumes sobre a vida contemporânea, mergulhada na cobiça e na competição. No vilarejo inglês de Pagford, Rowling reproduz em escala miúda o que se passa no mundo. Nesse microcosmo, os vícios se tornam ainda mais risíveis. A morte prematura do dignitário da região, um certo Barry Fairweather, aos 40 anos, provoca no local uma onda de brigas, discussões e luta pelo poder que transforma a história em uma possibilidade para discorrer sobre a ambição mundana e apresentar uma galeria de personagens tragicômicos.  

A sátira é um gênero nascido na literatura greco-latina da Antiguidade que se adaptou bem à Inglaterra. Daniel Defoe, Hery Fielding, Thackeray e Evelyn Waugh praticaram-na com excelência – acrescentando-lhe doses generosas de falta de decoro. Há várias sátiras de microcosmo no romance inglês, e a gente pode até pensar em Jane Austen, hoje de volta à moda, como uma delicada satirista da vida campestre da Inglaterra do fim do século XVIII.  

Ora, J.K. Rowling é uma representante – e uma leitora – da tradição da sátira. Consigo imaginar a confusão que resultará da luta entre facções políticas em Pagford, e como ela irá representar a luta de classes à maneira britânica, ora disfarçada de bons modos, ora explícita e violenta. De alguma forma, a criptocrítica social pode ser detectada nos sete romances de Harry Potter, que, a bem da verdade, são mais bem construídos do que os oito longas-metragens no cinema. Harry é um personagem dickensiano, mas também alegoriza os conflitos morais e ideológicos da Europa atual. Rowling é uma discípula não declarada de Diana Wynne-Jones (1934-2011), a grande e hoje ignorada alegorista e satirista inglesa, autora da fábula O castelo animado – que ganhou em 2004 uma versão genial de Hayao Miyasaki - e da saga de Crestomanci, publicada coincidentemente em sete volumes entre 1977 e 1005, sobre o mágico que possui uma escola de magia e bruxaria. Em entrevista a ÉPOCA em 2006, Diana acusou Rowling de ter-se baseado na história e na estrutura da saga de Crestomanci para criar a de Harry Potter, sem citar a fonte. Tirstes águas passadas, mas que precisam ser mencionadas, até nunca há nada de novo sob o sol. Rowling, assim como Wynne-Jones, apresentam uma leitura distorcida e fantástica dos mitos europeus, colocando-os em confronto com a falta de crença do mundo atual. Elas provam, cada uma a seu modo, que a fantasia ainda é o alimento da alma - o único, aliás, recurso de fuga, caso você seja cético. A ausência de fé provocou o triunfo do gênero fantástico, e não apenas na literatura. Basta ver o sucesso de Senhor dos anéis e de Harry Potter no cinema, e de Game of thrones na televisão.

O romance adulto de Rowling deverá conter esse tipo de reflexão sobre a contemporaneidade laica e ateísta, como o fez em Harry Potter. O dado mais extraordinário na heptalogia potteriana repousa na meditação às ocultas sobre a descrença com a decadência do cristianismo. Não por nada, a Igreja Católica condenou o livro. O bruxo protagonista experimenta um rito gnóstico de passagem para a idade adulta – e aprende que a fantasia pode ser passada adiante, apesar de todo mal e a descrença do mundo de hoje. Uma meditação espiritual que certamente ela transpõe para o âmbito político em A vaga ocasional. No mundo real, adulto e cruel, a imaginação da escritora deve se confrontar com outros mistérios, ou a falta absoluta deles, a luta pela sobrevivência e a disputa por um poder que se revela, também ele, risível. Nesse ponto, o romance é parente de um satirista italiano, também ele influencado pela sátira menipeia greco-romana e as de Fielding e Defoe: Govanni Guareschi (1908-1968). Entre 1950 e 1968, Guareschi criou uma série de romances satíricos, ambientados no piccolo mondo de Dom Camilo, o pároco local, sempre às turras com o líder comunista Dom Peppone. A briga dos dois, ainda que engraçada e cheia de frases de efeito, oculta uma terrível luta de poder. Em jogo, o destino da Itália nos anos 50, entre cair na cruz da Igreja Católica e se encantar pela caldeirinha do Partido Comunista.

Pelas informações que Rowling divulgou por meio de sua editora, a trama de A vaga ocasional gira em torno desse tipo de oposição, entre um poder estabelecido e uma ambição de substituí-lo. O que estará em jogo? Certamente o conservadorismo versus o trabalhismo, o liberalismo contra o socialismo, a crença contra a razão. Pagford, o piccolo mondo de J.K.Rowling, promete ferver, e cozinhar em fogo lento todas as vaidades.

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