quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Abaixo a dublagem

Ela está matando as legendas e a possibilidade de leitura

LUÍS ANTÔNIO GIRON

Basta agora mesmo ligar a televisão ou tentar assistir a um filme em um multiplex qualquer para verificar o óbvio: a maior parte dos filmes em cartaz é dublada. Não se trata de desenhos para crianças. É filme adulto mesmo. Foi o que aconteceu com um casal de amigos no último fim de semana em Osasco. Ao procurar a versão legendada do filme Homens de preto 3, percebeu que só tinha uma opção de horário, e ele já havia passado. Eis aí um novo inédito. Quem quiser hoje ver um filme na versão original terá de achá-lo no circuito de arte ou apertar a tecla SAP da TV. E se resignar em ser considerado parte de uma minoria metida a besta. O novo fenômeno de consumo cultural demonstra que a regressão da leitura se dissemina trágica e velozmente no Brasil. O fim das legendas colabora com a perda da capacidade de entender um texto por parte do grande público.

As razões são de mercado; portanto, insofismáveis. Os estúdios e distribuidoras chegaram à constatação de que as audiências brasileiras estão ficando mais parecidas com as dos Estados Unidos e Europa, preferindo as versões dubladas às legendadas. Em reportagem publicada em ÉPOCA, intitulada A dublagem venceu as legendas, os especialistas concluíram que a plateia tem horror a ler uma média de 30 páginas de texto enquanto vê um filme de ação como Vingadores. Inimaginável encarar um filme francês como Um verão escaldante, de Philippe Garrel, que, só de legenda, corresponde a quase 100 páginas de livro – fora o que não é dito, o que fica nas entrelinhas. Ler é chato, especialmente o que não está escrito (por isso tanta gente odeia Machado de Assis e Samuel Beckett). Ver um filme não pode ser chato, nada pode ser oculto do espectador, salvo um mistério de cada vez, uma virada final para acompanhar o gole de refrigerante. Logo, a solução encontrada foi eliminar o desconforto da vida dos consumidores, e dublar tudo o que for possível, em escala industrial. Cada vez mais seremos forçados a seguir a maioria preguiçosa e emergente do novo Brasil, onde o analfabetismo funcional tornou-se um escândalo tamanho que o governo deveria lançar uma campanha de vacinação contra a ignorância. Mas aqui tudo regride, até mesmo características que pareciam mais evoluídas do que em países de primeiro mundo, como a antiga preferência nacional de ver filmes legendados.

Sinto asco de ir a um shopping center de luxo e observar que ali o público seleto só cobiça pipoca, soda e besteiras dubladas. Mais nojo me dá perceber que não há outra opção. Quem quer legenda que leve um DVD para casa, ou – no caso de São Paulo – vá à Reserva Cultural, um dos raros espaços de exibição de filmes que projeta filmes de arte com som original.

É curioso como está acontecendo uma quebra de hábito centenária no Brasil. Desde os primeiros filmes mudos apresentados em território nacional, nos anos 1900, o público se acostumou a acompanhar a trama com legendas. Com o cinema falado, a prática continuou, mesmo que em outros países isso tenha se alterado. Ouvi muitas histórias de pessoas que aprenderam idiomas estrangeiros apenas assistindo a filmes legendados, ouvindo e lendo ao mesmo tempo. E escutar a voz original dos atores e os sons do ambiente em que o filme foi rodado é uma experiência sensorial única. A combinação de som e legenda é pedagógica. Ensina que assistir a um filme implica um ato de leitura e, em seguida, interpretação.  

Vou cometer um truísmo: ver é ler, e conhecer. Daí as versões dubladas não servirem senão às plateias limítrofes – e aos deficientes visuais, naturalmente. Por isso, não acho que os dubladores devam ser banidos. Ao contrário, o serviço deles é útil e, não raro, artístico. Muitos desenhos animados da Disney ficaram melhores na versão brasileira, mas talvez isso seja menos uma afirmação racional que nostalgia. Atualmente, os dubladores gozam de status parecido com o dos astros que dublam. O público de multiplex consegue reconhecer nas ruas o Brad Pitt, a Angelina Jolie e o Justin Bieber brasileiros. É inútil dizer que os dubladores são coadjuvantes, papagaios da manutenção de um idioma nacional, como o foram os radioatores do século passado. Eles deveriam permanecer à sombra das imagens em movimento, mas hoje se sobrepõem a elas e adquirem uma glória a que não fazem jus. Eles andam cada vez mais criativos e estridentes em suas “interpretações” das falas originais. São em sua maioria cariocas, o que provoca um gostoso estranhamento junto ao público que está além do Leblon. Por que os dubladores cariocas têm o direito de ditar o padrão do idioma nacional falado se o Brasil compreende tantos e tão variados idioletos, pronúncias e cantos? Não deve ter lógica em nada disso. Seria preciso simplesmente refrear o ímpeto dos dubladores dos dois cantos do país em que eles atuam, Rio e São Paulo. Mas o sindicato intervém em benefício da formatação do imaginário.

A moda da dublagem deve ser seguida pela dos audiolivros. Acontece também na Alemanha e nos Estados Unidos o público gostar mais de ouvir história do que lê-las. Daqui a pouco, as grandes cadeias de livrarias – ou o que restar delas, com a concorrência da internet - estarão lotadas de versões sonoras acariocadas e paulistanas de livros os mais cretinos possíveis. Claro que há utilidade nelas. Mas dublagem de livros, como filmes, não substitui a experiência original da leitura. Daqui a pouco será obrigatória a dublagem de óperas (e isso acontece em Londres e Budapeste, por exemplo) e até de concertos. Onde iremos parar? Em lugar algum. Trata-se da convicção dos povos, e contra ela não há nada a fazer. Só resta lutar pelo mínimo de qualidade nos produtos de artes e espetáculos.

Não me confundam com um elitista. Também não quero ganhar popularidade fazendo o gênero bom samaritano e citar os deficientes auditivos, como mencionei os visuais, que precisam das legendas, e que agora estão sendo excluídos de forma injusta e estúpida. Estou falando do público tradicional, comum, que gosta de cultura e de ouvir o som original dos filmes e das séries. Essa parcela antes significativa se reduziu a uma fração irrelevante do consumidor de cinema e televisão. Se agora nós, surdos e cultos, formamos uma patética minoria, precisamos nos juntar sem mágoa para conter a marcha ré das multidões nos teatros que ruidosamente mastigam pipoca, arrotam e manifestam ódio a tudo o que é belo. E correr o risco de linchamento ao dizer: gente, que tal ler de vez em quando uma legendinha que seja?

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