O livro de Tamvaco acompanha os espetáculos de balé e bel canto na Ópera de Paris e publica, pela primeira vez, em edição crítica, o manuscrito anônimo "Le Journal d'une Habilleuse, 1836-1848", relato do trepidante período anterior à revolução de 1848. A obra de Corvisieri, lançada em 1998 na Itália e agora no Brasil, aborda a mesma atmosfera de rebelião e inventividade que reinava no norte da Itália, oprimido pelo exército de ocupação austríaco. Corvisieri traz um ingrediente interessante em seu livro: trata também do ambiente cultural do Brasil nos primeiros anos do Segundo Império: o papel dos jornais na cobertura dos eventos, da ópera e do balé, numa nação que ansiava por transpor aos trópicos a civilização européia, de preferência francesa e italiana, e cujos escritores e músicos mergulhavam na construção de um Romantismo com cor local. No pano de fundo, epidemias letais de febre amarela e cólera, incêndios do teatro e atitudes truculentas da polícia e dos empresários.
Nem por isso Gentil deixou de coletar episódios picantes. Exemplo: a brincadeira inventada pelos figurinistas e costureiras do teatro. Em 1836, eles criaram um "sudorímetro", escala pela qual começaram a medir "o grau das emanações odoríferas" das cantoras e bailarinas em ação. A suposta "habilleuse" informa que poucas damas ultrapassam o décimo grau e a diferença entre elas é de um grau ou mesmo uma fração. Havia casos excepcionais, como Mlle. Noblet, que atingia 16 graus e até além no instante em que se despia depois de sua aparição em cena. O placar do sudorímetro era maldosamente divulgado entre os "amateurs" da platéia. Um deles se chamava Malençon, "homem polido e generoso", casado com uma rica dona de butique no Brasil. Ele, que gastava rios de francos com as cocottes, voltava periodicamente ao Rio para "recompletar seu capital". Outro caso diz respeito às dançarinas da Academia Real de Música, Anna Saulnier e Eulalie Gaucher, ambas amigas de 13 anos. Na temporada de 1837, distribuíram um folheto entre os cavalheiros no foyer. Nele, descreviam a si próprias como bem-humoradas e "de agradável figura" e anunciavam a abertura de sua mansarda, na rua Pinon, à visitação dos interessados, "em todos os momentos do dia e da noite, exceto nas horas de classes de ensaios e representações".
Gentil escancarou a caixa da Ópera aos "voyeurs" da posteridade: num verdadeiro "reality show", mostrou pontos desesperados, cantoras colocadas à prova dos insultos em cena aberta, o mecanismo das claques, capazes de transformar reputações em farinha, as paixões, o arrebatamento do público diante de Fanny Elssler na cachucha, número do balé "Le Diable Boîteux" no qual ela se acompanhava com castanholas. "É um charme! É um delírio. É sobre-humano!", exclama Gentil. Vigorava a moda das danças espanholas. Gentil se animava com o sucesso de Sofia Fuoco e os destemperos da mezzo Rosina Stoltz, rodeada de "todas as lésbicas em exercício em Paris". As "inclinações sáficas" de Stoltz, segundo Corvisieri, não cessaram quando a diva partiu para o Brasil, em 1852. Lá, chegou a assediar Maria Baderna. A bailarina a repeliu. Resultado: sofreu retaliações da cantora.
Baderna foi uma azarada, apesar da boa formação e do talento. Foi colega de Sofia Fuoco e rival de Fanny Elssler. Mas seu infortúnio se devia a um só nome: Brasil. Corvisieri como que fornece a continuação do diário de Gentil, relatando as peripécias e o "brusco crepúsculo" de Baderna no período posterior ao abordado pelo fofoqueiro parisiense. Em 1848, Baderna vivia um clima semelhante ao da rua Le Peletier. E só não foi objeto da pena maldosa da "habilleuse" porque nunca esteve em Paris. Trocou a Milão sublevada pelo conservador Rio de dom Pedro II. No Brasil, magnetizou a mocidade romântica da corte com requebrados da cachucha (moda lançada por Fanny) e se tornou musa do Ultra-romantismo local, de linhagem byroniana. Só que sumiu, sem deixar pegada das sapatilhas de seda, tão celebradas em verso e prosa pelos admiradores, que formaram uma seita para defendê-la, o Partido Badernista.
Corvisieri, de 63 anos, freqüentador do Brasil, compreende português e ajudou na revisão da tradução do livro. Mesmo assim, o texto se revela macarrônico. Isso não chega a prejudicar o livro, de leitura irresistível, ainda que não possua um índice remissivo. O autor não é historiador da cultura e só se interessou por Baderna por causa de uma premissa falsa. Julgava que a dançarina fosse, como ele, militante revolucionária. Saiu em busca da alma gêmea e encontrou algo bem diferente da sonhada identidade. Baderna não passava de uma artista que se viu obrigada a emigrar para o Brasil devido a circunstâncias políticas. "Não vestia o figurino revolucionário", diz, em entrevista a este jornal. "Foi apenas uma artista engajada."
Corvisieri militou no Partido Comunista Italiano. Nascido em Ponzia, ilha do sul da Itália, onde mora, trabalhou como jornalista em periódicos esquerdistas, como "La Sinistra" e "Quotidiano dei Lavoratori". Por três mandatos, foi deputado pelo PCI. Entre seus livros, destacam-se "Trotskij e il Comunismo Italiano" (1968) e "Il mio Viaggio nella Sinistra" (1979). Seu novo título sai em setembro: "Il Mago dei Generali - Poteri Oculti nella Crisi del Fascismo e della Monarchia" (O Mago dos Generais - Poderes Ocultos na Crise do Fascismo e da Monarquia). Nele, persegue a sombra "de um singular personagem que fui uma espécie de "santarrão" de uma seita esotérica, agente de três serviços secretos e conspirador profissional." O homem participou da tentativa de golpe dos ricos italianos, que queriam expelir Mussolini sem que o regime mudasse. "Há no livro um capítulo brasileiro, pois o sujeito emigrou para São Paulo depois da Segunda Guerra Mundial".
Em meio a devaneios e pesquisas, Corvisieri visitava o Brasil em 1987. Então se deparou com um artigo, em "O Globo", de Otto Lara Resende. Lembra que o país vivia dias de cólera popular contra o aumento de preços; a cidade se abarrotava de barricadas, correrias e atos de vandalismo. O artigo de Resende versava sobre uma certa bailarina, Maria Baderna, que teria vindo ao Rio em 1851 e cujo sobrenome deu origem a um termo usado pela ditadura de 1964 e ainda na ordem do dia em 1987: "baderna". Otto perguntava-se por que o nome de uma bailarina graciosa teria gerado, exclusivamente no Brasil, sinônimos de pândega, pagode, súcia, cambada, pancadaria, orgia, conflito, bagunça, confusão. Os desvios semânticos proporcionados pelo nome da conterrânea excitaram Corvisier. Ainda lendo o artigo, constatou que o sentido original da palavra era o mesmo que se mantinha no italiano, inglês ou francês, "trança de fios de cânhamo" usada em navios. "Os dicionários de Portugal também repetiam o significado", explica. "Somente no francês havia um campo semântico pejorativo, na expressão 'vieille baderne', a indicar uma pessoa acabada, imprestável." Percebeu que, no Brasil, o termo era utilizado em dois filões: "O primeiro se refere a qualquer tipo de desordem pública, de confronto violento de rixa; o segundo tem a ver com qualquer tipo de transgressão grupal (orgia, pândega, pagode)." Mas o que incendiou a imaginação do italiano foi o artigo do também jornalista e militante Moacir Werneck de Castro, publicado em 11 de julho de 1987 no "Jornal do Brasil", pouco antes do de Otto Lara Resende. Nele, o autor prometia contar "a verdadeira história de Maria Baderna". Desfiou uma série de episódios, descrevendo a dançarina como seguidora do revolucionário Giuseppe Mazzini. Ela se exilou no Brasil e foi perseguida pelos austríacos como "agente da subversão internacional". Apresentou-se no Rio, conquistou multidões de fãs que provocavam batalhas campais. Estas passaram a ser chamadas de "badernas". Em 1852, associou-se então ao carbonário Fiametta, abandonou a dança e passou para a clandestinidade. Trocou, nos dizeres de Moacir, "a arte pelo amor e pela revolução, atingindo as culminâncias sofredoras de uma heroína de Manzoni, Byron, Schiller ou Stendhal". No Nordeste, organizou comunidades inspiradas em Palmares de Zumbi. Foi "agit-prop" em Santa Catarina. Morreu na década de 1870, de tuberculose, desiludida com a derrota da Comuna de Paris. "Seu fantasma - o tempestuoso fantasma da baderna - permaneceu suspenso nos céus do Rio de Janeiro e ainda hoje nos persegue, excitando uns e aterrorizando outros."
Desacostumado à verve dos colunistas cariocas, Corvisieri acreditou na história "cheia de enxofre" de Moacir. Tudo se encaixava, e realmente o fracasso da luta pela independência na Itália precipitou um êxodo de artistas. Decidiu iniciar uma pesquisa sobre essa versão à esquerda de Anita Garibaldi. No "Dizionario Biografico", de Francesco Regli, encontrou um verbete sobre a bailarina. Informava que Baderna "havia içado velas com destino ao Rio" devido às "vicissitudes políticas de 1848". Tudo se encaixava, até que o pesquisador escreveu a Moacir para se informar sobre as fontes que o jornalista usara no artigo. Ele respondeu, em carta de janeiro de 1988, que a história de Baderna não passava de brincadeira. "Tudo fábula, tudo inventado", escreveu. "Errei por não ter deixado clara minha intenção, eu que não sou habituado ao gênero humorístico." Mas, concluiu, "o mistério de Maria Baderna permanece. Agora sou eu quem pergunta: o que foi feito dela?" O italiano se irritou. Mas assumiu o desafio de varrer o destino da Baderna.
Corvisieri pesquisou em arquivos na Itália, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e França. "No Itamaraty, encontrei o contrato entre o maestro Giannini e o capitão do navio Andrea Doria, que, em 1849, trouxe a companhia italiana ao Rio, inclusive Baderna". O contrato trazia detalhes como horários e cardápio.
Aportou no Rio em companhia do pai. Feliz, este reencontrou amigos mazzinianos exilados. No Teatro São Pedro de Alcântara, ela se tornou a rainha da dança. Estreou em 29 de setembro de 1849, no balé "Il Ballo delle Fate". Êxito total. Sucederam-se ovações. Era anunciada como gênio juvenil de 18 anos, embora contasse 21. No palco, dividia o prestígio com a prima-dona Ida Edelvira. Um ponto, de nome Montanha, fundou o Partido Badernista. O progressista "Correio Mercantil" exaltava-a: "É uma fada, uma huri, um portento." Cultuada como huri, vamp do paraíso muçulmano, recebia as manifestações as mais eletrizantes. Na época, os partidos teatrais, fomentados pelos empresários, incendiavam literalmente os teatros. No Rio, trocavam pateadas, flores, patacas de cobre e gritos em cena aberta. Baderna encontrou seu público e faria tudo para agradá-lo. Aprendeu a dançar o lundu e o batuque, assistindo a exibições de escravos no Largo da Carioca. E tratou de levar os movimentos de baixo ventre ao palco imperial, para horror dos retrógrados, reunidos em torno de Paranhos, o folhetinista do "Jornal do Commercio". Baderna se tornava "estrela popular da juventude romântica", síntese da libido de uma geração alimentada no culto ao nativismo e à transgressão. Os jornais conjugavam o verbo "badernar" como dançar com elegância; tratavam seus fãs como "badernistas". Com suas umbigadas, Baderna insuflava torneios violentos, no fim dos quais era carregada em triunfo pelas ruas. "Poetas malditos do romantismo tropical" fumavam charutos de Havana e se regalavam com a nudez entrevista sob a malha da sílfide.
Mas o Brasil, conforme Corvisieri, era um "país tartúfico" e, de uma hora para outra, o empresário do teatro deixava de pagar os artistas, sem explicações. Baderna e colegas fizeram greve, mas sem efeito, já que não podiam retornar à Europa sem dinheiro, numa viagem que durava dois meses. Isso para não falar da eminência de epidemias de febre amarela, que dizimavam o elenco, principalmente os cenógrafos - cinco deles pereceram em menos de dois anos. Mas Baderna sobrevivia. Quando seu pai morreu do vômito negro, ela chamou para sua casa o bailarino francês Jean Tupinet. O casal viveu em aberto concubinato, para pânico da elite moralista, que podia aceitar o conluio, caso permanecesse às ocultas.
Em agosto de 1851, o São Pedro se incendiou. Sem contrato, Baderna desapareceu. Seu biógrafo perde seus rastros para reencontrá-los em 1863. Na época, tentou retomar a carreira num teatro em Bordeaux. Atingida por intermináveis rajadas de apupos, foi convidada a se retirar da cidade, acusada de alcoolismo. Jornais milaneses, como o "Fama", noticiaram o fiasco, atribuindo-o à emigração para a América: "O Brasil foi o túmulo do seu talento."
E provavelmente túmulo real. Ali, tentou uma derradeira "rentrée" na companhia da velha colega, Celestina Thierry, no Lírico Fluminense. Seu papel era secundário.
O ano de 1865, segundo o biógrafo, representou o canto do cisne de Baderna. Ela se resignou a fazer números em vaudevilles patéticos.
A partir de então, seus passos não deixaram pistas. O biógrafo supõe que ela optou pela autodestruição, como tantas outras. A atriz Eugênia Câmara, por exemplo, depois da morte de Castro Alves, embriagou-se de absinto e perfume até rastejar pelas ruas. "A hipótese de uma decadência física precoce, ocasionada pela vida bohémienne, ao uso excessivo do álcool (e talvez do absinto) encontram abrigo em uma miríada de indícios", jura Corvisieri.
Marietta, nos estertores, talvez fizesse jus aos badernistas byronianos, e tenha se entregado ao vício e à dissolução. O biógrafo aponta um fato essencial que concorreu para a eliminação de Baderna da cena: o surgimento das bailarinas francesas que introduziram, no Alcazar Lyrique, o cancã e outras danças eróticas. Justamente o cancã, surgido nos anos 1830 nos bas-fonds de Paris e Milão, que Maria aprendera a abominar. Aturdidos pelas pernadas explícitas, os dândis brasileiros não distinguiam mais entre Baderna e Aimée, o "demoniozinho louro", bailarina que seduziu Machado de Assis. As novas divas não tinham nada a ver com erudita rival. Não passavam de cortesãs bem pagas. Marietta degenerou em uma "vieille baderne", traste romântico que todos desejavam ver enterrado. Seu exílio foi o do inominável, cogita o biógrafo. A tal ponto que "hoje os brasileiros, à exceção de uma minoria que pode ter a curiosidade de consultar um dicionário, não sabem absolutamente nada sobre a origem de uma palavra que eles próprios usam em muitas ocasiões". A origem está na heroína romântica que teve o sobrenome "humilhantemente expropriado".
Alcóolatra e desajustada, Baderna se escondeu da história. Há quem afirme que ela morreu no fausto, como cafetina de um lupanar fluminense. Mas a hipótese não é confirmada. Há os que a vêem no espectro que paira sobre o Brasil e se materializa em periódica da desordem ou como símbolo de um país que costuma ser crematório dos sonhos da arte. Quem sabe ela não tivesse sorte melhor se houvesse voltado à Europa, onde muitas colegas suas padeceram em circunstâncias tenebrosas. Teria servido à maledicência da pseudo-camareira em seu detestável "journal". De qualquer forma, porém, a "habilleuse" a teria seguido até a morte. E a história saberia que fatalidade carregou Baderna.
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