sábado, 11 de junho de 2011

Bim bom, bim mau

As melhores e piores gravações de João Gilberto

 

O gênio excêntrico João Gilberto tem encantado os audiófilos do mundo todo nos últimos 53 anos, desde que lançou, em 1958, o disco de 78 rotações Odeon com as canções “Chega de saudade” (Tom Jobim-Vinicius de Moraes) e “Bim bom”, de sua autoria, produto que veio a se tornar o marco inicial da Bossa Nova. Nos 62 anos de carreira - ele a iniciou em Salvador em 1949, aos 18 anos, quando trocou Juazeiro pela capital baiana, e ali atuou na Rádio Sociedade da Bahia –, foi cantor de rádio, crooner de grupos vocais (de 1950 a 1952, nos Garotos da Lua; de 1953, nos Quitandinha Serenaders de Nilo Ruschel e em 1954 como substituto de Léo Vilar nos Anjos do Inferno), acompanhador ao violão da cantora Elizeth Cardoso em duas faixas do LP Canção do amor demais (selo Festa, 1957), Chega de saudade e Outra vez (Tom Jobim) e, finalmente, revolucionário da canção brasileira. Mas sua grande proeza foi ter criado um estilo de cantar e tocar o samba, com voz sussurrada e violão com acordes de jazz e ponteios sincopados. Um estilo que viria a ser chamado de Bossa Nova pelos jovens que passaram a seguir João Gilberto como se ele fosse um deus. Seu biógrafo, Ruy Castro, afirma que João criou a “batida” da bossa nova no ano de 1955, quando se afastou do público. Foi nesse período, no “exílio” em Porto Alegre e Diamantina, que João teria inventado o novo som. Alguns detratores dizem que ele teria tido um problema de nódulo vocal e, por isso, teria renunciado ao canto impostado de barítono que mostrara nos Quitandinha Serenedars e passado a cantar baixinho. Dois fatos são documentados: aí por 1955, João começou a curtir os LPs do trompetista e cantor (nesta ordem) americano Chet Baker; e, em 1956, de volta ao Rio, frequentou a boate Plaza, onde se apresentava o revolucionário Johnny Alf, que naquele ano de 1956 criava o samba-jazz com a gravação de “Rapaz de bem”, samba moderno que Johnny vinha mostrando na noite carioca desde 1953.

Mesmo os gênios precisam se inspirar naqueles que os precederam. Um dos pecados de João, a meu ver, foi ter ocultado a influência do canto do carioca Mario Reis (1907-1981), cujos 30 anos da morte precisam ser lembrados neste ano. Mario lançou o samba moderno em 1928, três anos antes do nascimento de João, e é claro que João se inspirou nele no início da carreira: o canto suave, a palavra doce, a síncope, a divisão do samba, todas criações de Mario. Foi o canto de Mario que afetou o de Léo Vilar, dos Anjos do Inferno, antecessor de João. Mas João jamais deu crédito a Mario Reis. Talvez João quisesse ocultar a fonte direta. O que me leva a pensar que ele não tenha sentido angústia da influência – e, sim, inveja da influência. O próprio Mario ironizou em 1971: “Nada a ver. Eu é que sou seguidor de João Gilberto!” Minhas faixas joão-gilbertianas favoritas são aquelas em que ele lembra Mario Reis. As gravações que detesto são as que João gravou por gravar – e que nada acrescentam à sua glória. Minha eleição, portanto, é viciada e suspeita. Vamos a ela.

 

Os cinco clássicos:

 

“Bim bom” (João Gilberto) - Disco 78 rpm (Odeon, 1958)

Este transbaião está no Lado B do disco que traz “Chega de Saudade”. A letra é um mantra de dois versos: “É só isso o meu baião/ E não tem mais nada não”. Como se o cantor reduzisse ao grau zero o manifesto “Baião”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, lançado pelo grupo 4 Azes e um Coringa, em 1946. É João Gilberto no auge de sua cintilância e tônus rítmico. É também a prova de que a Bossa Nova começou influenciada pelo mambo cubano.

 

“Samba de uma nota só” (Tom Jobim-Newton Mendonça) – LP O amor, o sorriso e a flor (Odeon, 1960)

No seu segundo LP, o cantor-violonista apresenta a primeira e melhor versão do samba metalinguístico de Tom Jobim em parceria com o boêmio e pianista Newton Mendonça. A música serviu como iniciação às aulas de violão e canto de várias gerações de emepebistas. João se mostra perfeito na emissão, no uso variado dos acordes em clusters ao violão e na ironia. Divisão de samba precisa e minimalista.

 

“O grande amor” (Tom Jobim-Vinicius de Moraes) – LP Getz/Gilberto (Verve, 1964)

Muitas vezes, ao longo de sua carreira, o cantor traiu suas influências. É o caso da gravação do samba lento “O grande amor”. Na verdade, trata-se de uma regravação do sucesso lançado por Mario Reis no LP Mário Reis canta suas criações em hi-fi (Odeon, 1960). A façanha de João no registro com Stan Getz ao sax e Tom Jobim ao piano foi compactar ou condensar os achados do arranjo original de Lindolpho Gaya para o LP de Mario Reis. E imitar Mario Reis com enorme talento. Afinal, João é um seguidor inconfesso do Bacharel do Samba.

 

“Guacyra” (Hekel Tavares-Joracy Camargo) – CD João Gilberto Ao Vivo (EPIC, 1994)

João sopra vida no belo samba lançado em 1933 na Victor pelo cantor e galã Raul Roulien. Influenciado por Mario Reis, Raul Roulien já usava o canto solto, coloquial, o jeito brasileiro de cantar inaugurado por Mario. Mas há uma melancolia típica de Roulien, que João recobra no registro feito no antigo Palace em São Paulo. O som é impuro, a mixagem ruim. Mesmo assim, o talento de João em metamorfosear enquanto recupera clássico é notável.

 

“Desde que o samba é samba” (Caetano Veloso-Gilberto Gil), CD João voz e violão (Universal, 1999)

A homenagem da dupla Caetano e Gil ao gênero surgido no Recôncavo Baiano ganha uma abordagem definitiva na gravação de João Gilberto. Já com voz de baixo-barítono, pois o registro ficou mais grave com a idade, o músico transfigura a canção em um hino quase-religioso à baianidade.

 

 

Os cinco deslizes:

 

“Amar é bom” (Zé Keti-Jorge Abdala) – Disco 78 rpm (Todamérica, 1951)

O jovem crooner do grupo vocal Garotos da Lua se esforça por imitar Lúcio Alves nesta que é a primeira gravação da carreira de João Gilberto. O resultado é patético, pomposo, sem graça. João investe nos glissandos e nos vibratos, tornando a audição hoje quase insuportável. Não por outro motivo, o cantor cortou de seu cânone as participações nos Garotos da Lua.

 

“Besame mucho” (Consuelo Velazquez), LP João Gilberto em Mexico (Orpheon, 1970)

Esta faixa pode ser definida como um triunfo às avessas. Até em seus piores momentos, João Gilberto se destaca. Pois se trata, talvez, da pior gravação entre todas jamais realizadas do bolero da compositora cubana Consuelo Velazquez. O sotaque baiano aplicado ao castelhano empastela qualquer enlevo da parte do ouvinte. E a voz de João se mostra melosa no mais alto grau.

 

“Undiú” (João Gilberto), LP João Gilberto (Polydor, 1973)

Até hoje não entendo por que João cometeu esta canção de uma palavra só, que nada significa, não serviria nem mesmo com “palavra-valise” dos poetas concretos. Ele se limita a cantar “undiú, undiú, undiú”, uma churumela insuportável só piorada pela melodia monocórdica. O cantor deveria cortar essa faixa do disco de 1973, aquele que traz “Avarandado”, de Caetano. Mas João tem razões que só a razão desconhece...

 

“Estate” (Bruno Martino-Bruno Brighetti), LP Amoroso, (Warner Bros, 1977)

Bom, se João é péssimo em espanhol, que dirá em italiano. É um desastre completo, quase chego a ouvir uma desafinação a certa altura da gravação. Eu sempre pulo esta faixa do ótimo LP Amoroso, que traz arranjos e regência do maestro alemão Claus Ogerman. O consolo é que a música italiana do século XX e do Festival de San Remo merece esta anti-homenagem. Seis minutos e trinta segundos de tortura!

 

“Me chama” (Lobão)

A certa altura da desastrosa década de 90 – desastrosa para ele e para a música brasileira -, João resolveu fazer uma homenagem ao que de pior se produziu no BRock dos anos 80. A baladinha de Lobão, que já era sem graça, ficou ainda pior no grunhido grave e rouco de um João Gilberto fora de forma àquela altura. Foram duas as consequências: João nunca incluiu a música em seus discos de carreira, nem o próprio Lobão gosta do que o cantor fez com ela. Com razão.

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