sábado, 11 de junho de 2011

Os instantes finais das filmagens de Harry Potter

Os dias derradeiros de Daniel Radcliffe e elenco nos estúdios que abrigaram por 10 anos as filmagens da saga

 

A imagem do adolescente Harry Potter (Daniel Radcliffe) correndo com os amigos Hermione (Emma Thompson) e Rony (Rupert Grint) de uma ameaça bem conhecida está espalhada pelo mundo em todos os cartazes do filme Harry Potter e as relíquias da morte – parte 1. Outros pôsteres mostram o bruxinho com um olhar de medo e a expressão estafada. Harry parece farto de uma aventura que durou dez anos de filmagens – e o público também se prepara para se despedir dele. A imagem-símbolo de uma geração começa a sair de cena. Também já era hora: o simbolismo resultou em um empreendimento lucrativo. O que a varinha de Harry toca se transformou em ouro. Os filmes e o livro já movimentaram mais de 5 bilhões de dólares e deram origem a parques temáticos. Ainda em ação, os personagens de Harry Potter já estão congelados na própria lenda, figuras de cera antes de deixarem as telas.

Será que todos cansamos de Harry Potter? Mesmo em caso positivo, vamos sentir falta da companhia dos personagens. Nos arredores de Londres no final do ano passado, em uma set visita que fiz aos Leavesden Studios – onde a série foi rodada desde o primeiro filme, no ano 2000 -, pude conversar com Daniel Radcliffe, a personificação de Harry, sobre a sensação de despedida. Com os olhos marejados, o jovem ator disse: "Este lugar fez parte da minha vida, aliás eu pensava que aqui era a minha casa, porque comecei a vida aqui. Então será duro e triste para mim dar adeus a tudo isso."

A atmosfera melancólica pervade as tomadas dos dois últimos filmes, produzidos ao mesmo tempo entre 2008 e 20 de agosto de 2010, quando foram feitas as últimas tomadas. A divulgação do penúltimo filme da "saga" de Harry e amigos (não sei por que tudo hoje vira "saga", mesmo que seja um romance ou, como no caso da história de J.K. Rowling, uma aventura de fantasia e horror em sete partes) antecipa o que vemos no cinema: uma fuga desesperada com música insistente e imagens que se sucedem ao modo de um videoclipe, como se o filme inteiro fosse um trailer cheio de efeitos visuais e versões da sensação de pavor. O filme que começou infantil evoluiu para uma aventura adolescente e, por fim, em um thriller de ação que envolve jovens adultos com os hormônios prontos para explodir. O próprio público do filme acompanhou a passagem e as metamorfose dos tempos. As crianças de dez anos atrás hoje entram no mercado de trabalho, como mostramos na reportagem em ÉPOCA: as transformações dos personagens e do público correspondem à dos gêneros da superprodução: de fábula infantil a suspense de terror, passando por policial, a fantasia, o romance adolescente...

De acordo com a trama imaginada pela autora inglesa, a primeira parte do sétimo e último romance da série de J.K. Rowling trata da fuga de Harry de a sanha assassina Lorde Voldemort. O bruxinho do bem, "o Eleito" que irá salvar o mundo da maldade e restaurar a moralidade no mundo dos mágicos, acaba de escapar da escola de magia de Hogwarts. Ele precisa se esconder dos Comensais da Morte, liderados por Voldemort, o bruxo rival de Alvo Dumbledore, mestre de Harry recém assassinado na escola. A primeira parte de HP e as relíquias da morte narra a história de um fugitivo que, ao completar 17 anos, perde a proteção das forças mágicas. Harry é um criatura que remete aos tipos patéticos dos romances vitorianos de Charles Dickens. À maneira do protagonista de David Copperfield (1850) e de Pip, de Grandes Esperanças (1861), criações de Dickens, Harry perdeu os pais muito cedo, foi criado pelos tios e, no entanto, possui uma marca que o levará à glória.

O achado de J.K. Rowling foi acoplar uma aventura dickseniana de superação do órfão a uma história de fantasia e horror ao gosto da belle-époque. Na trajetória da formação e da transformação de Harry, as entidades sobrenaturais se intrometem na vida cotidiana. E assim, feito um Oliver Twist-Parsifal do fim do século XX, o feiticeiro enfrenta a um só tempo as misérias sentimentais da orfandade e os perigos do Mal. Quem for ver o filme pela primeira vez talvez não entenda nada disso e pense tratar-se de uma aventura de ação, porque é preciso estar familiarizado com o destino de Harry para ter a experiência completa do filme. Nesse sentido, a adaptação para as telas se escravizou em parte aos ditames do romance (para mim, o romance é superior ao filme). O diretor David Yates aplicou um combustível extra na poção, encenando sequências quase eróticas entre Harry e Hermione. Os dois chegam a aparecer nuns em uma visão monstruosa, aos olhos do ciumento Rony. O filme tem um quê de outra saga, Crepúsculo. Mas, no geral, é fiel à narrativa original.

Em As relíquias da morte – parte 2, será travada a batalha entre o exército de Dumbledore, capitaneado por Harry, e os Comensais da Morte, de Voldemort. Um epílogo com cara de épico, mas que encobre a verdadeira intenção da escritora: contar a história de formação de um menino que, enfrentando as dificuldades e sundo o narcisismo infantil, conquista a cidadania. Nada mais politicamente correto. Mesmo assim, J.K. Rowling chegou a ser perseguida pela Santa inquisição...

Em julho de 2011, entra em cartaz a derradeira sequência. Mas o filme já está todo feito. Comprados pela Warner Brothers, os Leavesden Studios fecharam as portas depois de 15 anos de produções e vão dar origem ao Museu Harry Potter, um parque temático com turnês pelo verdadeiro mundo em que Harry Potter foi gerado. Quando estive lá, no final de setembro de 2009, a metamorfose já estava se processando. Localizada na vila de Hertfordshire, a 29 quilômetros do centro de Londres, local onde anteriormente a Rolls-Royce instalou sua fábrica de automóveis, a sede dos estúdios conta com prédios e equipamentos distribuídos por uma área de 320 mil metros quadrados. O enorme barracão em que a maior parte do filme foi realizada conta com os cenários originais da superprodução, quase todos desativados quando os vi, cobertos de penumbra: o refeitório de Hogwarts, a sala de conferência, a biblioteca de Dumbledore, o laboratório do professor Snape, repleto de tubos de ensaios e retortas. Emma Watson (Hermione) filmava sobre uma enorme tela verde (green screen), montada na vassoura de bruxa, mantida por uma grua. Emma sorria e se divertia com a repetição da cena, e acenou para os jornalistas, muito animada. É como se estivesse pilotando uma vassoura pelos céus. Logo adiante, a rua de casinhas modestas em que viveu Harry Potter ainda se encontra erguida. O departamento de criação de objetos de cena se localiza ao lado do barracão principal. Ali foram moldados as esculturas em papel mâché dos monstros, da Fênix, da aranha gigantesca, além dos objetos de cena, como as varinhas de condão, as perucas, as roupas e máscaras.


Considero as visitas a locações de filmagens, a convite dos estúdios, a experiência mais interessante para um jornalista que cobre cinema. Minha excursão às filmagens das duas partes de Harry Potter e as relíquias da morte, com um grupo de jornalistas internacionais, não poderia ser mais significativa. Quando entramos no estúdio principal, Emma Watson nos cumprimentou de sua bicicleta. Desde pequena ela se acostumou a se locomover pelo local em uma bicicleta, bem como seus amigos. Apesar do sorriso espontâneo de Emma, a melancolia pairava no ar. Em um determinado estúdio, os restos de uma festa de casamento rodada na noite anterior pareciam o dia seguinte de uma festa real, com toalhas e copos amarfanhados. Fomos convidados a almoçar na cantina. O sujeito que estava à minha frente na fila do bandejão era o ator Alan Rickman, o insidioso professor Severo Snape. Foi engraçado vê-lo se servindo de frango e purê, em meio a risadas e papo descontraído. Depois, tive o privilégio de assistir a uma sequência mil vezes repetida em que Daniel Radcliffe (Harry) beija Bonnie Wright (a Gina, sua grande paixão). Bonnie foi a primeira a vir conversar com os jornalistas. "Tenho planos de continuar a atuar", disse. "Mas ainda não me acostumei com a ideia de que este aqui não é meu mundo!"

Despojado de uma possível máscara de celebridade, Daniel Radcliffe respondeu nossas perguntas com a inteligência que ele mostra desde menino, apesar de muito cansado. Sentou-se em meio à roda de jornalistas, suspirou e não conteve as lágrimas. Ele havia sido informado que a nossa era a última das centenas de visitas que os repórteres fizeram aos estúdios nos últimos dez anos. "Esta é a visita final, não é?", perguntou. "Pois é. Estou sentindo o clima de despedida mais do que ninguém. Muitos dos meus velhos colegas de elenco já não estão por aqui, e estamos nos aproximando das últimas sequências. Não posso deixar de me comover. Estes estúdios fazem parte da minha vida. Eu nem sabia que era ator e que estava trabalhando quando entrei aqui para filmar Harry Potter. Um pouco de todos nós será deixado aqui. Somos todos amigos e tenho certeza de que vamos todos sentir falta desses tempos que já estão indo embora." Daniel cumprimentou todo mundo e, mais controlado, voltou a suas cenas de beijo.

Quando embarcamos no ônibus, contemplei os prédios e a paisagem plana que iam se afastando. Então me veio a seguinte sensação: as ações reais que se desenrolaram por uma década naquele espaço podiam se encerrar, mas o cinema se encarregava de eternizá-las nas telas e nos monitores. Qual é, então, a realidade mais real, a que vemos pelas películas dos filmes ou o trabalho em grupo entre artistas, cineastas, técnicos e operários que abarca uma vida? O que vale mais, o produto ou o processo de sua construção? No caso da turma de Harry Potter, a vida e a arte parecem ter se plasmado para sempre. Só não sei se teria gostado tanto de acompanhar a "saga" se não tivesse conhecido ao elenco e a equipe tão de perto esses anos todos.

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