sexta-feira, 23 de março de 2012

Pão, circo e adolescentes

 


   Pão, circo e adolescentes

 

 

O que a trilogia "Jogos Vorazes" diz sobre a sociedade do espetáculo 

 

Ando meio farto de trilogias e franquias pueris feitas para atrair um público que parece ser de crianças e adolescentes, mas, na verdade, abarca todos, de crianças a velhos. Nós, adultos, estamos nos infantilizando a fórceps por meio do consumo popular planetário – ou, para os entusiastas, cultura pop. No começo era Batman, Polyana, Super-Homem, Homem-Aranha e Harry Potter. Agora nos vemos infestados de personagens e platitudes os mais variados, todos produtos tramados para conquistar uma fatia da ansiedade juvenil – a nossa ansiedade. E assim abundam vampiros, anjos, zumbis e outros seres colecionáveis e suas histórias descartáveis (faz tempo que não escrevo esta palavra que deixou de marcar a diferença, já que o todo virou descartável, então não precisa ser dita).

O esquema se afigura sempre igual: um livro dá início a uma trilogia (ou tetralogia, no caso da “saga” Crepúsculo, que de saga só tem o apelido), faz sucesso, é adaptado para o cinema, vira brinquedo, depois vai para o DVD, então para a internet, e assim povoa milhões de inconsciências. Os ficcionistas trabalham com uma espécie de revenda de mitos arcaicos já conhecidos, mas que certamente foram esquecidos. Os autores refilmam arquétipos. Isso mesmo, refilmam, porque já pensam no filme que o livro vai se tornar em breve se tudo der certo. Eis a razão de tantos romances hoje se parecerem com roteiros de cinema. E, como o escapismo está na ordem do dia, os mitos redramatizados servem para gerar distração, e não para causar horror ou compaixão, como queria Aristóteles em sua Poética. Percy Jackson é um Ulisses “teen” de San Francisco, à caça de monstros homéricos. Bella, que não é Lugosi, beija seu imortal Edward e dá à luz um vampiro dócil à domesticação. Anjos se metem em batalhas sem sentido pela conquista de um céu tão inverossímil quanto o Papai Noel inventado pela Coca-Cola. A Guerra das Rosas, da Inglaterra do século XV, é convertida em Guerra dos tronos, uma matança carnavalesca, repleta de seres os mais risíveis e improváveis. Afinal, todos queremos sonhar e, desse modo, esquecer que a realidade dói.  

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  • Diante do panorama de fuga, a trilogia Jogos vorazes, agora iniciando a carreira no cinema estrelado por Jennifer Lawrence, parece trazer um pouco do princípio de realidade a um mundo mergulhado na busca de um escape fácil. A história é uma distopia que lembra os romances1984, de George Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, as três grandes distopias produzidas no século XX. Só que com pitadas de idílio piegas e baseada em uma premissa inconsistente. A autora americana Suzanne Collins se vale dos esquemas de sucesso para, diz ela, chamar a atenção dos jovens para sua forma de viver atual, em uma sociedade espetacularizada e em crescente degradação da natureza e dos costumes. Para isso, baseou-se no mito grego de Teseu e o Minotauro. 

     

     

    Os três livros de Suzanne – Jogos vorazes, Em chamas e A esperança, publicados entre 2008 e 2010 – são ambientados em um futuro sombrio. Depois de uma guerra civil que destruiu a América, ela foi rebatizada de Panem e convertida em um regime totalitário. Panem (reminiscência do lema “panem et circenses”, pão e circo, dos imperadores romanos) pode ser descrito como um Estado privatizado cuja festa patriótica maior é um reality show. A Capital, dominada por uma elite de políticos, empresários e fashionistas que mudam a cor da pele – e formam 1 % da população - exige que cada um dos doze distritos do país, pobres e espoliados, envie anualmente, como tributo, um menino e uma menina de 12 a 18 anos para lutar até morrer em uma competição cívica intitulada Jogos Vorazes (da mesma forma que o rei Minos manda sete casais de jovens anualmente para o labirinto do Minotauro). Trata-se de um reality-show dentro de uma floresta supercontrolada, a que todos os habitantes de Panem são convidados a assistir pela televisão. A cada ano, 24 gladiadores mirins se matam das mais variadas formas nesse dédalo macabro, até que saia um vencedor. O espetáculo deve ser completo. Dois mestres-de-cerimônia apresentam o show, e comentam as escaramuças do princípio ao fim, com tiradas irônicas e até momentos de “conteúdo humano”, quando os contendores falam de suas vidas antes do início da carnificina. Tudo se inicia com uma parada de biga para a apresentação dos participantes e termina com a glorificação do vencedor. O jogo é viciado, e as regras se alteram ao sabor dos patrocinadores. É como se a crueldade de Roma Antiga se acoplasse ao voyeurismo dos atuais reality-shows em um Estado-Minotauro, a um tempo humano e bestial. Difícil crer que esse tipo de espetáculo possa apaziguar e dar exemplo aos povos dominados. Obviamente, não consegue cumprir a meta a longo prazo.

     

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    A heroína Katniss, interpretada pela atriz Jennifer Lawrence. (Foto: Divulgação)

     

    A heroína vai passar de colaboradora do regime a líder revolucionária. Ela se chama Katniss, uma jovem de 16 anos do Distrito 12, que aprendeu a caçar com arco e flecha, e se oferece para participar dos Jogos Vorazes no lugar da irmã, que foi sorteada. Ela é a narradora dos romances. Isso não é mostrado no filme, fato que obscurece o processo de educação de Katniss, pois, se no início ela conta sua história como uma personagem de chick lit, uma Polyana desprovida de massa cinzenta, ela vai exibindo estados de consciência mais agudos à medida que a história se desenvolve. O livro é muito superior ao que se produz hoje no gênero, embora não seja perfeito. Há um aspecto “Crepúsculo” na trama, pois Katniss se divide entre o amor do resignado Peeta e do revolucionário Gale. Eles lutam ao lado dela. Mas Katniss se revela a mais valente. Aos poucos, toma consciência da opressão e, no final de A esperança, ela se converte aos rebeldes para liderar uma campanha que resultará na redemocratização de Panem. De ser passivo, mero objeto de um reality show, ela se transforma em sujeito transformador da História, para usar outro termo surrado, marxista. O filme Jogos Vorazes traz a primeira parte do entrecho, quando Katniss e Peeta são jogados no inferno do show e ainda não entendem direito por que estão ali e têm de matar outras crianças. O diretor Gary Ross compõe um ambiente irreal e bruto que remete a O show de Trumane à ficção científica japonesa Battle Royale (também surgida de um livro, o romance homônimo de Koushun Takami, de 1999, que muitos dizem que inspirou Suzanne Collins). Até 2015 ou depois, o espectador que não gosta de ler saberá do resto. 

     

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    Katniss (Jennifer Lawrence) e Stanley Tucci, como mestre de cerimônias de "Jogoz Vorazes" (Foto: Divulgação)

     

    Toda ficção futurista, por mais fantástica, capta o espírito do tempo em que ela foi imaginada.Admirável mundo novo relata o nascimento da sociedade tecnológica e da manipulação genética. 1984 é a mais devastadora das críticas ao totalitarismo stalinista. Farhenheit 451 chama atenção para a degeneração da cultura, com o banimento dos livros em um Estado de perfeição. A distopia de Suzanne Collins apresenta a alegoria da recessão econômica americana. E vai além: denuncia as estratégias de ilusão usados para fazer a população se esquecer de sua precária realidade. Suzanne Collins dá a entender que os Estados Unidos não passam do fruto do coito danado entre a militarização à romana e a espetacularização da realidade. Talvez esteja errada.

    Tenho dúvida de que a intenção conscientizadora de Suzanne Collins resista à espetacularização de sua própria história. Talvez Jogos Vorazes corrobore os mecanismos vis da sociedade do espetáculo, apenas inovando na violência e na crueldade. Afinal, pão, circo e adolescentes estão vendendo como nunca.

    LAGiron 

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