quarta-feira, 21 de março de 2012

A nova cara do imperador

Dom Pedro I ganha uma dimensão trágica e vira best-seller mundial com o romance O império é você
 
 
                Uma nação se faz de heróis e vilões, fundadores e traidores. Dom Pedro I (1798-1834) simboliza esses traços opostos ao mesmo tempo. Tanto historiadores como contadores de histórias brasileiros se encantam há gerações por suas façanhas, incoerências e deslizes. O romance O império é você (Planeta, 494 páginas, R$ 49,90), do espanhol Xavier Moro, conta mais uma vez a história de dom Pedro. Desta vez, não só para os brasileiros. A obra virou best-seller na Espanha desde que foi lançado, em novembro. Vendeu 200 mil exemplares em duas semanas, ganhou o prêmo Planeta, um dos maiores de língua espanhola, e já foi lançado em 10 países e está sendo traduzido para 17 idiomas. 

"Dom Pedro se presta à narrativa romanesca", diz o jornalista Laurentino Gomes, autor do livro de História 1822, um dos grandes sucessos de vendas de 2010. "A história dele dá impressão de se contar sozinha."

Ele foi um homem público contraditório. Declarou a independência do Brasil em 1822 para, em seguida, partir para a Europa para lutar e instaurar a monarquia constitucional em Portugal, onde nasceu. Foi liberal e romântico quando príncipe, mas como imperador do Brasil rasgou a constituição que ajudou a formular. Logo depois, seria coroado dom Pedro IV, o primeiro monarca constitucional português, morrendo como um poeta, de tuberculose, no quarto Dom Quixote – com afrescos que representam o personagem de Cervantes, do palácio de Queluz, no mesmo cômodo em que havia sido concebido e nascido. Sua vida privada foi tempestuosa e bárbara. Casou-se com a princesa austríaca dona Leopoldina, com quem teve quatro filhos, e a quem atribuiu algumas vezes funções de governo. Mesmo assim, manteve no palácio várias amantes, a mais famosa delas Domitila, a marquesa de Santos. Reconheceu como legítimos mais de 50 filhos. Era carinhoso com as mulheres, mas agrediu Leopoldina, provocando-lhe o aborto e a morte, em 1827. Sensível, era dado a compor música, embora manifestasse a maior crueldade ao ser contrariado. Era epiléptico, fato que podia explicar as famosas mudanças de comportamento. Seus hábitos de higiene incluíam defecar em público, durante uma parada, enquanto os soldados se mantinham em continência.

                A alteração de sua imagem e reputação acompanham a história do Brasil. Cada período representa dom Pedro a seu modo e segundo suas necessidades (leia quadro abaixo) Depois de ser sido ignorado durante o segundo reinado (1841-1889), de seu filho, dom Pedro II, tornou-se o saco de pancadas favorito dos ideólogos republicanos. "Para a construção simbólica da República, dom Pedro funcionava como o vilão monárquico ideal", diz Laurentino. "Os romancistas embarcaram na onda, e até hoje a gente assite a resquícios da estigmatização do personagem." 

Nos anos 1970, ápice do regime militar, o imperador recebeu uma promoção como soldado exemplar. Para comemorar o Sesquicentenário da Independência do Brasil – um tipo de data, 150 anos, pouco festejada - o presidente militar Emílio Garrastazu Médici usou o imperador como santo de caserna. O ator Tarcísio Meira incorporou o dom Pedro galante, que dava o grito do Ipiranga montado em um alazão – e não, como informam os historiadores, abotoando as calças, surpreendido por emissários quando se aliviava no riacho Ipiranga. Com a democracia plena, a paritr de 1989, ele se tornou alvo de mais pancada, tanto da parte dos intérpretes do Brasil vinculados ao marxismo como dos escritores, dramaturgos e cineastas. Surgiu um dom Pedro escrachado que encarnava a desordem econômica e institucional que o país experimentou na passagem dos anos 1980 para os 1990.

"Somente no século XXI ele passou a ser compreendido como ser humano e precursor do liberalismo", diz Iza Salles, autora do romance O coração do rei, de 2008. "No novo século, o Brasil se encontra mais ao centro, não há mais polarizações políticas", diz Laurentino. "Somente agora é possível enxergar dom Pedro de um modo realista, como um pai da pátria e um ser humano. Não existe história definitiva." A historiadora Mary del Priore, que publica daqui a dois meses o livro Carne e sangue (Rocco), com documentos inéditos sobre o triângulo Pedro-Leopoldina-Domitila, afirma que o público exige informações verdadeiras em vez de mitos. "Dom Pedro I sofreu uma derrota simbólica, foi um monarca à deriva", diz Mary. "Não podemos é continuar a acreditar em panteões de mitos, que não passam de construções de um período histórico."

              Dom Pedro, até então desconhecido mundialmente, agora começa a ser conhecido em toda parte por causa do romance O imperio é você. O livro chega ao Brasil em uma edição de 50 mil exemplares. Não que não tenham havido tentativas anteriores de internacionalizá-lo. Em 1941, o filme argentino Embrujo mostrava as aventuras amorosas do brasileiro, envolvido entre a imperatriz Leopoldina e Domitila, a marquesa de Santos. Um detalhe curioso: o famoso mnúsico cubano Bola de Nieve faz no filme o papel de escravo. Mas só agora com o best-seller ele começa a ficar famoso. "Talvez os brasileiros estivessem próximos demais do personagem para lhe dar a devida dimensão – e tenham perdido muito tempo pintando-o como um pícaro", diz Moro, de 56 anos, antropólogo de formação e autor de outros best-sellers, como Paixão índia, 2006 e O sari vermelho, de 2009. Ele teve a ideia do livro nas muitas viagens que fez à Amazônia nos anos 90, para escrever a história do líder seringueiro Chico Mendes. "Dom Pedro é único porque foi fundamental no velho e no novo mundo.", afirma. "É o responsável pelo Brasil ser hoje uma nação unida e poderosa, e serviu de exemplo a outras monarquias europeias, pelos avanços que fez em Portugal."

                Moro levou três anos pesquisando no Brasil e Portugal para concluir seu livro. "Dom Pedro é um personagem incômodo tanto para portugueses como para brasileiros. Os portugueses o odeiam porque ele jogou fora a colônia mais importante do império. Os brasileiros não o perdoam porque abandonou o país." Moro diz que tentou restaurar a humanidade de Pedro. Mesmo com sua pesquisa extensa, ele tem revoltado alguns historiadores pelas liberdades que tomou. "Só inventei alguns diálogos e cenas", diz. "Mas todos os peronsagens são reais." Moro se fascinou tanto pelo exotismo da figura que, no romance,  o jovem Pedro toca maracas com os escravos (maraca é um chocalho de origem maia e era rara no Brasil no início do século XOX) e mora em um barraco no morro com a bailarina francês Noémie – quando ainda não existiam favelas nos morros. Como se não bastasse, feito um enredo de escola de samba, dom Pedro I casa-se com Noémie em uma cerimônia de candomblé à beira da praia, organizado por seu fiel criado Chalaça. "Tudo isso seria impossível", diz a colega Iza Salles. "Dom Pedro vivia em uma sociedade católica e jamais se submeteria a um ritual afro."

Algumas passagens podem provocar risadas no leitor. A tradução também prejudica a leitura. Ela traz um texto cheio de espanholismos e imprecisões, como gravar o largo do Rocio de "Rócio", e chamar de San Carlos o teatro São Carlos de Lisboa.

                Nesta semana, Moro chega ao Brasil para uma turnê literária, por cinco cidades, começando por São Paulo. "Sei que vou causar polêmica e desagradar a muitos intérpretes do Brasil." Mesmo com todas as liberdades que tomou, seu romance apresenta uma versão empolgante de dom Pedro. Ele ressurge como um herói trágico e romântico, capaz de pecados hediondos e de gestos de martírio. "Ele é uma mistura de Don Juan e Dom Quixote", diz Moro, que visitou em Queluz o quarto de Dom Quixote. "Ele se escravizou a seus desejos, o que não o impediu de ser idealista. Ele nasceu e morreu sob a imagem do Cavaleiro da Tiste Figura.

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