sexta-feira, 23 de março de 2012

A menina do poema

 A menina do poema

 

            Eu mal conheci Isadora, mas fazer o quê, se Manuel Bandeira lhe deu um poema ao nascer? Foi meu amigo Ernesto, primo dela, quem me contou. Não acreditei. Para provar, ele trouxe um livro da casa deo seu tio Ely, um médico importante, e me apontou bem direitinho onde ficava o texto. Era cara de verdade. Lá nas últimas páginas da edição Aguilar em papel-bíblia das Obras completas do Manuel Bandeira. Quando soube da história e li o poema, devia ter 10 anos. Isadora ia pelos 6. Eu não passava de um quase, e aquela menina gorducha espevitada já tinha um poema só seu, e nem sabia ler. 

            Em “Isadora”, o poeta graceja com a menina pela menção a Isadora Duncan, a dançarina da Belle Époque que inspirou os pais da menina no batismo. Um nome que sugeria em português um anagrana para as palavras “dançarina” e “dançar”. Dizia assim, em redondilha menor: “Pois que és Isadora,/ Dança, dança, dança/ Não direi agora/ Que ainda és criança/ A idade da trança,/ Dança, dança, dança/ Dança até cansares/ Dança, dança, dança/ Como na Ásia dançam/ As moças de Java./ Pois que és Isadora/ Dança como outrora,/ Como linda outrora/ Dançava, dançava/ Isadora Duncan.” Em seguida o poeta se foi, Ernesto me disse; morreu ainda matutando a elegia. Talvez a derradeira entre tantas que dedicou a meninas como Rosalina, Leda Letícia, Joanita, Isá. A folha manuscrita da poesia chegou às mãos do pai de Isadora feito um atestado de além-óbito. 

            Eu nem quis saber de Isadora, mas tudo concorreu pelo avesso. Ali estava eu, adolescente, tomado por ela, pelo ritmo que Bandeira imprimia ao nome e um corpo futuro de dançarina que eu imaginava numa volúpia depois do amanhã. O poema queria ser uma cartinha para o instante em que Isadora pudesse compreender tudo. E então, empurrada pela melopeia dos versos, escolheria dançar como dançasse a Duncan, ficaria famosa. E contaria a um repórter de revista (eu) que tudo vinha daqueles 16 versos, que ela toda só tinha existido para saltar do poema ao palco. Previ tudo, mas me esqueci. Ainda bem, porque não se cumpriu, como quase todas as profecias (salvo a parte do repórter).

            Anos depois meu irmão namorou Giselle, a irmã mais nova de Isadora – que também ganhou um poema de Bandeira. De sorte que cheguei mais perto do poema, pois quase virei concunhado da musa... Estava mais magra e bonita aos 17 anos. Mal e mal falamos. Eu a via só de longe, esperando ainda que o poema ganhasse músculo. Mas nada. Isadora cursou Letras, fez plástica no nariz, casou-se e teve uma filha. 

            Não me lembrava mais dela até me contarem de sua morte, em uma mesa de cirurgia de lipoaspiração, aos 35 anos. O poema “Isadora” sai agora de novo em livro. Só ele evoca, sem quase ninguém saber, a linda outrora que jamais dançou.

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