terça-feira, 13 de março de 2012

Chico pode parar

Em um dos melhores shows de sua carreira, o compositor parece se despedir a cada noite. Não devia

               

                O show se intitula Chico, o que dá a entender que o compositor carioca Chico Buarque de Holanda nunca foi tão pessoal e tão intimista quanto desta vez. Em duas horas de um espetáculo que já percorreu várias cidades brasileiras e agora está em longa temporada em São Paulo, ele canta velhos sucessos e as canções de seu último CD, que dá título ao recital, o primeiro depois de um interregno de cinco anos de atividade literária. Trata-se de seu último e talvez derradeiro espetáculo.

                É isso o que o público sussurra à entrada do HSBC Brasil. As pessoas que vão ver Chico em pessoa parecem mais exaltadas do que o normal. Na noite de sábado passado, além da habitual presença de mulheres que declararam seu amor ao ídolo, um senhor sentado a uma mesa ao fundo gritava o tempo todo: “Bonitíssimo!” No final, Chico faz algo inédito em sua carreira de 48 anos: vem até à beira do palco e cumprimenta as pessoas. Assim como pela primeira vez dá uma de cantor e se desloca pelo tablado com um microfone. Ele, que sempre sofreu de um incurável pânico de palco, agora bate papo e interage fisicamente com sua plateia. Não se comporta apenas como o totem fixo à espera de veneração, como o fez no passado.

                A descontração tem influência em sua forma de interpretar, pois raras vezes ele se mostrou tão pouco desafinado. Em uma sequência de voz e violão, o músico de 67 anos logra até mesmo exibir algum mérito como intérprete – logo ele, o cantautor que meio que desprezava a interpretação exata, logo ele que fazia da imperfeição de seu canto uma forma de valorizar a perfeição de seus versos e de sua mensagem. Assim, no ápice de sua autoestima e segurança, cercado de músicos de alta qualidade como o violonista e maestro Luiz Claudio Ramos, os bateristas Wilson das Neves e Chico Batera e o baixista Jorge Helder, ele parece dar adeus. Talvez seja mero coquetismo de um ídolo eternamente sedento de culto. Mas, se a intenção for verdadeira, será lamentável para a horda de fanáticos e pior ainda para a MPB, o gênero que ele ajudou a fundar em 1965, com a moda dos festivais da canção. Hoje a MPB seria chamada de “samba universitário”, porque representava uma interpretação que a juventude universitária fazia do samba de morro e de malandragem. Era o samba sobre o samba.

                Quando apareceu, ele foi saudado como o salvador do samba em um momento em que o gênero estava se transformando em instrumento de protesto político, com o movimento dos Centro Populares de Cultura. Quando o samba se tornava panfletário, surgia Chico Buarque e sua alta cultura poética, capaz de imprimir sofisticação, metalinguagem e uma visão de mundo universalista empolgante, um conteúdo de crítica social mais denso do que o praticado até então pelos músicos populares. Ele foi uma espécie de Arthur Rimbaud no samba. Tal qual o jovem poeta francês, ele espantava pelos achados poéticos e o refinamento experimental. Era um poeta maldito que sambava.

                Chico elevou a canção popular de um modo peculiar. Em vez de assumir a própria voz, desde o início da carreira, quando, em 1965, musicou para o Tuca (o teatro da Pontifícia Universidade de São Paulo) o poema dramático Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, ele trabalhou como uma espécie de dramaturgo, pois abriu espaço à voz dos outros, em especial a dos oprimidos, os derrotados pela História e as mulheres desamadas. Provavelmente porque sempre foi muito tímido, preferiu atuar no palco como o boneco de ventríloquo do “povo”, ou daquilo que ele e seu grupo entendiam por povo. Viveu um impasse criativo nos anos 80, mas recuperou o tônus em  com os discos e shows Paratodos (1993), As cidades (1998), Carioca (2006) e agora Chico, de 2011. Ele sempre agiu como um músico amador capaz de transcender as limitações técnicas (sua voz e seu violão continuam sendo “universitários”) por meio da alta inspiração poética e dramática. Aos poucos, foi abandonando o drama pelo lirismo, e passou a contar sobre si mesmo, em músicas crescentemente confessionais e introspectivas. O fato interessante é que ultimamente ele assumiu a própria voz, e com isso melhorou sua forma de cantar. Quando examinada em perspectiva, sua carreira como compositor popular se revela racional, linear e coerente. O jovem indignado dos anos 60 expressou as utopias de seu tempo, o homem dos anos 70 e 80 retratou a revolução sexual e a subsequente ressaca de todos os sonhos e desejos. Agora, no século XXI, o escritor adentra a terceira-idade em uma espécie de zona de conforto em que a observação crítica e a ironia são filtradas pela função emotiva. Assistir a um show de Chico é como repassar a história dos brasileiros nos últimos 50 anos. É emocionante, até porque a plateia se vê refletida em todas aquelas canções. E porque essas canções são ouro se comparadas às que são feitas hoje.

                Chico tem dito que música popular “é coisa de jovem” e que ele está mais interessado na carreira literária. Tem lá seus motivos. De 1991 até 2009, produziu quatro romances de sucesso, mesmo com rejeição de parte da crítica literária. É bom lembrar que ele já havia feito sucesso como dramaturgo. São dele as peças Roda Viva (1967), Ópera do malandro (1978) e O Grande Circo Místico (1983), que marcaram época. Mas também vale observar que ele sempre obteve mais êxito como compositor e intérprete popular. Foi com suas músicas que ele se tornou o trompete da revolta dos brasileiros às indignidades cometidas pelo regime militar, o tradutor dos sentimentos femininos, o poeta dos desvalidos. Atualmente ele prefere aos trabalhos de palco os idílios na praia do Leblon e os prazeres de seu apartamento em Paris, onde se dá o luxo de inventar histórias – e, quando ocupado, flanar como anônimo pela cidade. Pode ser um epílogo glorioso para quem fez tanto à cultura brasileira. Mas talvez o público não o perdoe por isso.

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