sexta-feira, 9 de março de 2012

Sertanejos universais

 
O que Michel Teló, Gusttavo Lima e você ensinam sobre cultura popular

            A reportagem sobre o cantor, compositor e acordeonista Michel Teló, publicada em Época, causou repercussão. Houve manifestações ufanistas, mas muitos leitores escreveram à Redação para questionar a abordagem do texto, que afirmava que a música de Teló reflete os valores da cultura popular brasileira. Na revista e no resto da realidade, as reações ao som a um tempo dançante e sertanejo do cantor  têm sido conflitantes. O público se divide entre um suposto coro dos contentes e a parcela crítica e intelectual dos consumidores de cultura. De um lado, exulta o público que frequenta festas e baladas, rebola e se diverte com músicas de Teló como “Ai, se eu te pego (assim você me mata)”. De outro, bradam com indignação os eternos baluartes do bom gosto, que gostariam de ouvir o mundo povoado de sambas, clássicos e a boa música popular brasileira – a tal MPB, termo que agora seria apropriadamente trocado por “samba universitário”.  Trata-se do retorno meio burlesco do antigo debate em torno de cultura de massa, popular e erudita. Burlesco porque essa era uma discussão da década de 60 do século passado. Tais divisões caíram por terra, e tudo se converteu neste século em mercado e estratificação de gosto. Vou tentar demonstrar que o sertanejo universitário de Teló, Luan Santana e Gustavo Lima possui tanta legitimidade quanto a congada paulista, a chula gaúcha, o choro e o samba de morro carioca, entre outras manifestações musicais... quer gostemos ou nem tanto.

            A recepção negativa daquilo que chamávamos antigamente de “intelligenstia” (ninguém mais usa o datado termo russo) me remete a  meados da década de 90, quando apareceu o grupo É o Tchan – e, com ele, vários outros artistas do pagode baiano. As pessoas de gosto refinado viravam a cara para os requebrados de Carla Peres, e fechavam os ouvidos para o samba de roda praticado por É o Tchan. Examinados em perspectiva, percebemos que esses músicos praticavam cultura popular brasileira. Ou não era cultura?

            Entendo o que o público sofisticado quer dizer. Como tantos outros, sou saudosista. Gosto de escrever em Times New Roman, como se fosse uma caligrafia minha, vício decorrente de minha teimosia em continuar a escrever à mão. Escrevo em Times New Roman assim como adoro povoar o meu jardim com sambas de Cartola, Chico Buarque, Brancura e Marçal. No dicionário da música, ainda estou na letra B: ouço Bach, Brahms, Berg, Beethoven. Bem entendido, é apenas o meu jardim. Por vezes ele é invadido por ruídos de máquinas e hits das baladas sertanejas hoje em moda, como foi antes tomado pelo funk, o pagode, o tecnobrega, o rock e o pop mais desqualificado. Não raro, essas músicas entram no meu quintal e acabo me divertindo com elas. Às vezes tudo o que eu sou obrigado a ouvir é “Eu te amo e open bar”, o novo sucesso de Michel de Teló. Eu não sou surdo. Não sou de aço.

            Minha própria condição de jardineiro infiel me leva à dedução de que aquilo que o público sofisticado quer dizer não se coaduna com a realidade. Estamos na segunda década do século XXI. A expressão popular se alterou profundamente com a imensa quantidade de informação trazida pelas novas tecnologias, como a interconexão planetária imposta pela internet. O brega se juntou ao tecno, o samba ao funk, o forró ao eletrônico – e assim ad nauseam, numa inevitável corrente de acasalamentos artísticos, ideológicos (opa, mais uma palavra banida) e culturais. Vamos nos cingir ao caso do Brasil: uma nova classe média se alevanta, e com elas, seus valores mais queridos. A nova classe média antes respondia pelo gosto popular. Mas agora ela dá as cartas, tornou-se determinante (“mainstream” é o termo em voga) em ditar gosto, modos de vida e comportamento. Atitudes e palavras que talvez repugnem a elite, mas que nunca deixaram de fazer parte dos valores populares, e agora penetram insidiosamente nos hábitos e folguedos da classe dominante globalizada.

            Essa promiscuidade do imaginário é o que músicos como Teló, Luan e Gusttavo Lima refletem e trazem à tona com força transformadora. Refrãos como o de “Balada boa”, gravada por Gusttavo Lima já são sucesso do verão e traduzem os vocabulário dos jovens nas baladas sertanejas, que viraram arenas de liberdade e sexo: "Gata, me liga, mais tarde tem balada, quero curtir com você na madrugada: dançar, pular, que hoje vai rolar o 'tchê tcherere tchê tchê’”. Gestos obscenos como os de “Ai, se eu te pego” são repetidos mundialmente, em versões as mais inusitadas. É repugnante - e irresistível.

            Se examinadas mais a fundo, as escatologias dançantes e sonoras contêm elementos tradicionais e veneráveis. São emanações da cultura dos sertões brasileiros, agora compartilhadas pelo mundo todo. Luan Santana é mato-grossense. Assim também Michel Teló, paranaense criado em Campo Grande. Gusttavo Lima é mineiro educado em Goiás. Paula Fernandes, mineira de Sete Lagoas radicada em São Paulo. Cada um deles a seu jeito e intensidade mistura folclore, música universitária e pop. Luan vem da tradição caipira. Gusttavo é fortemente influenciado pela axé-music da Bahia – por sua vez fundada nas batidas dos blocos afros de Salvador.

            Michel Teló merece mais atenção. Ele filho de gaúchos, começou a tocar gaita de 80 baixos aos 7 anos, fez parte durante oito anos do Grupo Tradição, de Campo Grande, e se notabilizou como virtuose da gaita – ou sanfona, como se diz em São Paulo. Ele elaborou um estilo peculiar de executar ritmos semifolclóricos, como o vanerão e o xote gaúchos (de “scottish”, dança escocesa comum nos fandangos sul-riograndenses do século XVIII, que mais tarde passaram a ser tocados no Nordeste brasileiro), fundindo-os com o baião e outros ritmos nordestinos. Teló me disse que gosta de chamar seu estilo de “pancadão sertanejo”. Dessa forma, ele realizou uma síntese das danças do Sul e do Nordeste do Brasil. E avança para novas ousadias. Seu último sucesso, “Eu te amo e open bar” introduz, de forma inusitada, a sanfona na música dançante eletrônica do século XXI. Basta reparar como Teló se vale de refrãos de sanfona em meio ao batidão. Teló traz uma cadência mais sulista ao cabedal de síncope brasileira – e isso talvez seja o motivo de sua música ter pegado tanto no plano internacional. Por ser mais “dura”, mais marcada, sem abdicar da dançabilidade (acabo de forjar o termo, inspirado no vocabulário de videogame), ela é facilmente compreendida pelos estrangeiros. Acho que o excesso de síncope da música brasileira afasta os gringos, incapazes de compreender os contratempos de forma integral, coisa que os brasileiros fazem de modo natural.

             Os sons distantes das baladas do sertão chegaram até o centro e os bairros sofisticados das grandes capitais do Brasil e agora conquistam o mundo. Agora não adianta evitar: somos todos sertanejos, somos todos universitários e mundializados. E como tudo está cada vez mais igual a tudo, não surpreende que o batidão de “Ai, se eu te pego” e sua coreografia simiesca tenha se transformado na nova “Macarena”, o sucesso da dupla espanhola Los del Río de 1996. O Brasil figura como uma das sete maiores economias do mundo, e sua música deve se impor como referência. Que seja via esses sertanejos que se revelam universais. O resto é preconceito.

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