quarta-feira, 9 de novembro de 2011

João Gilberto está gripado ou quebrado?

Estou cansado das frescuras do João Gilberto. Completou 80 anos em 10 de junho, mas parece não estar nem aí para pedestais e homenagens, pois se comporta como um menino mimado. Nas últimas semanas, o cantor e violonista baiano tem protagonizado um festival de hesitações e antiprofissionalismo: anunciou uma turnê para comemorar seu aniversário, intitulada Uma vida bossa nova, mas depois tratou de cancelar datas, alegando motivos de saúde. João disse que está com gripe, o que o impediria de se apresentar no Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre e São Paulo. Agora voltou atrás mais uma vez, o que não o impede de mudar de ideia daqui a pouco. Os observadores afirmam que a razão é outra: os empresários do artista não conseguiram vender os ingressos, e agora estão com dificuldade para produzir o espetáculo, já que ele não conta com patrocínios ou incentivos fiscais. Muitos fãs dizem que não vão ao show porque os ingressos são extorsivos: vão de R$ 400 a R$ 1.200.
Trata-se de um motivo forte, e talvez o ídolo não conte no Brasil com um público suficiente para faturar o que espera – diferentemente de astros como Britney Spears e Justin Bieber, que cobram mais ou menos o mesmo preço pelos ingressos, e ninguém reclama de estar sendo assaltado. A produção do espetáculo também é mais modesta, já que João costuma se apresentar sozinho, ao violão.
Talvez João Gilberto valha menos em termos monetários do que queira pensar. Ora, isso não é nenhum desdouro. Obviamente seu valor artístico é incalculável. É um gênio da canção contemporânea, ninguém questiona isso. No entanto, no Brasil, os preços dos espetáculos vivem um momento de bolha inflacionária. Cobra-se demais por um ingresso porque existe uma demanda reprimida do público, que pela primeira vez está se sentindo no centro das turnês internacionais. O público está sendo explorado na sua fome de espetáculos, e parece gostar disso. Mas chega uma hora em que as multidões se cansam. Nos últimos shows de massa, ingressos eram vendidos abaixo do preço na última hora pelos cambistas. O público está percebendo a extorsão. Além do que no Brasil, santo de casa não faz milagre, mesmo que esse santo atenda pelo nome de São João Gilberto.
Com ingressos altos ou não, o fato é que assistir a uma apresentação dessa entidade divina implica um alto grau de tensão. João Gilberto é a manifestação brasílica do totalitarismo artístico. Ninguém pode questionar as decisões e as transgressões de um homem como ele, detentor que é do fogo dos deuses. João exige que o sistema de refrigeração seja desligado e o som, perfeito de acordo com seus padrões. Nada impede que ele interrompa o espetáculo no meio, se achar por bem que nada está de acordo com seus pedidos. Não sei se ele já ouviu falar de um procedimento técnico bastante comum entre os músicos: a passagem de som. João não costuma verificar as condições dos lugares em que atua. Quer passar o som por telepatia, ou que sua equipe adivinhe o que deseja. Exige também que o público o escute de joelhos, em silêncio devocional absoluto.
O último episódio da turnê deixou seus admiradores chateados, mas não surpresos. João parece ter nascido desse jeito, e não vai ser agora, na idade provecta, que irá se emendar. Ele parece ter fundado a bossa nova em 1958 por acaso, em uma pausa de seus caprichos e excentricidades. Ou talvez a bossa nova tenha sido a maior das suas bizarrices, inventada em um período de retiro entre Porto Alegre e Diamantina entre os anos de 1954 e 1956. Um especialista no assunto amigo meu, já falecido, costumava dizer que João criara o novo estilo de cantar baixinho, acompanhando-se aos acordes em clusters do violão, porque havia tido um problema nas cordas vocais e perdido a voz. Dizia esse meu amigo mais: que João não havia construído suas síncopes de uma forma racional; na verdade, essas defasagens entre o ritmo e o acompanhamento derivavam de uma peculiaridade do cérebro do músico, de uma impaciência dele para seguir a métrica e o compasso. Assim, a genialidade de João cantada por todos nós não passaria de um fato do acaso biológico. Ele seria um ser excepcional – daí o artista fora do comum. Por isso, temos de perdoá-lo...
O cantor João Gilberto (Foto: Arquivo /Revista Época)
Será mesmo? Ando questionando essa intangibilidade inquestionável do artista, mesmo que tenha a envergadura de um João Gilberto. Adoro ouvi-lo cantar e não perco seus shows. Toda vez que o escuto tenho a impressão de que ele canta só para mim. No fim do século passado, achei graça em um show que fez com Caetano Veloso, ele respondeu a um sujeito que o vaiava no Credicard Hall, porque ele dizia que ventava no palco. "Vaia de bêbado não vale!", disse João, para a gargalhada geral. Mas talvez o bêbado tivesse razão. Quem sabe tenha sido a primeira manifestação racional em muitos anos de cegueira do público de João Gilberto.
Por longos anos, ele se alimentou do folclore. Os dengos, as recusas, o gato que pulava da janela de seu apartamento porque não aguentava a repetição dos ensaios, os telefonemas à noite para conversar com seres confiáveis ou nem tanto, as manias, as retiradas à francesa, os não-comparecimentos, as exigências. Esse tipo de coisa já não causa tanta impressão quanto antes. Para boa parte do público, as bobeiras de João Gilberto não significam nada. Pois a era do amadorismo já vai longe... ou já deveria ter ido.
Do jeito que ele tem conduzido a carreira nos últimos 50 anos mostra que pagar por alguns de seus shows pode ser um desperdício. O público de João Gilberto, na verdade, deveria receber para fazer figuração no show. Deveria haver uma modalidade de patrocínio que considerasse as necessidades da plateia. Um banco, por exemplo, poderia fechar o teatro e enchê-lo de convidados felizes e animados. Aí todo mundo aplaude qualquer coisa, até mesmo a grande arte de João. Eu me pergunto por que ele não se limita a fazer uma apresentação inesquecível, e pronto? João, pare com esse estrelismo e vem pro samba sambar!

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