segunda-feira, 22 de junho de 2009

Como decifrar um bairro

O cronista trabalha como um construtor de diques imateriais. Em seu texto, ele quer represar a passagem do tempo, segurar uma visão e a palavra fugidia no tubilhão das metamorfoses. Com a passagem das coisas, a crônica termina por virar documento e, às vezes, com sorte, obra de arte. O sonho do cronista é, no fim, conservar fatos pela memória. Ando comparando certos lugares descritos por cronistas do passado e a situação em que esses espaços se encontram hoje. Os cenários se alteram e os textos retratam algo que já não pode ser verificado. Não vou cair em lamentos em torno da devastação da paisagem urbana. O que me interessa é descobrir restos dos que os mestres da língua retrataram nas ruínas que toda evolução urbana provoca.
Vagueei pela velha Lapa de Baixo. Passei por suas ruelas, seus muquifos e armazéns abandonados. Espiei pelas portarias de prédios prestes a ser demolidos, um deles com a placa da Escola de Datilografia Itamarati. Visitei a sede fechada há seis anos do lendário Lapeaninho, um clube de carteado. Enveredei por lojas em subsolos que um dia abrigaram bordéis e salões de sinuca.
Foi ali que João Antônio (1937-1999) ambientou suas crônicas e contos. Esse escritor nascido em Osasco passou a juventude na Lapa – e converteu o então submundo local em narrativas maravilhosas, repletas de sujeira e malandragem. É o caso do conto Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963. Conta a história de três vagabundos que vivem pela Lapa de dar golpes em salões de sinuca, tentando enganar os rivais com todo tipo de lorota e armadilha - e só se dão mal.
Talvez a Lapa de João Antônio possa ser melhor vista na sua obra literária. É resultado da filtragem imaginosa do cronista. Mas resquícios da obra do autor também se encontram na Lapa de agora. E aqui a coisa ganha curiosidade, porque ruas, prédios e objetos são de certa forma contaminados pelo texto do autor. O mundo real se enche da imaginação que lhe foi aplicada.
Não há mais aquela Lapa do início dos anos 60. Nem mesmo a sujeira é a mesma. Não há mais clube de carteado, mesmo que o jogo ainda corra às escondidas. Escolas de datilografia fecharam, mas foram substituídas pelos cursos de informática. Ainda assim, consegui entrever desvãos e quebradas em que as sombras dos personagens do escritor puderam ter se esgueirado e ainda podem passar. Sobraram o caos, um certo sofrimento do povo que se acotovela nas ruas, espera na estação de trem e bebe nos muquifos. O passeio compensou, porque li o bairro nas entrelinhas de seu ontem - e assim nasceu esta crônica.

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