quarta-feira, 11 de julho de 2012

A vez da Maria Caneta

A Flip não reúne apenas autores, como também personagens em busca de autores. É o caso das tietes literárias

            Não tente procurá-las nas redes sociais nem nos blogs. Não conseguiriam sobreviver sem manter a discrição absoluta do mundo offline. Elas como que põem em prática a Oração de São Francisco de Assis: leem mais do que escrevem, ouvem mais do que falam, admiram mais do que são admiradas, dão mais que recebem. Desprovidas de qualquer ambição material, elas só desejam avançar sobre seus ídolos. Como diria Tim Maia, não querem dinheiro, só querem amar. Exemplos de “groupies” literárias abundam em todo canto, de Oxford a Passo Fundo. Não foi uma delas que conseguiu pegar o Machado de Assis? É o que dão a entender as cartas do escritor. Louise Collet venceu as resistências do ermitão Gustave Flaubert, louvando-lhe o estilo. Eu não ficaria surpreso se Beatrice Portinari fosse a real perseguidora de Dante Alighieri ao contrário do que o “altissimo poeta” cantou – e talvez por isso tenha inventado os círculos do Inferno para escapar ao assédio dela. Fãs de escritores que não se contentam em somente admirar o ídolo sempre existiram. Mas só com a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, elas encontraram seu hábitat e adquiriram uma denominação de origem controlada: Maria Caneta.

            Vou discorrer adiante sobre quem são, em que nuances se dividem, como operam e adquiriram uma personalidade definida. Mas antes um pouco de etimologia pop. Quem disseminou o termo foi meu amigo e colega Rafael de Pino, repórter de Época que vem cobrindo a Flip por longos anos e acabou por se tornar um conhecedor crescencentemente preciosista dessas figuras típicas da paisagem do Norte fluminense  - como, de resto, típicas da geografia humana. A expressão provém de antigos apelidos derrisórios e machistas, como “Maria Gasolina”, que designa a jovem interessada em namorar proprietários de carros novos, e “Maria Chuteira”, a mulher que namora jogadores de futebol. A vantagem da expressão “Maria Caneta” é que ela não é pejorativa. Daí a inovação, pois se trata quase de um título nobiliárquico. Marias Canetas se orgulham de ser chamadas assim. Até porque agora elas já têm uma história para narrar, ainda que oralmente.

            O fato de elas namorarem escritores demonstra serem mais evoluídas que suas contrapartes populares. Ao contrário das Chuteiras e Gasolinas, as Marias Canetas colam em homens de gostos refinados que praticam a literatura, contam piadas inteligentes e se mostram liberais em seus hábitos amorosos. Desde que o escritor angolano José Eduardo Agualusa surgiu em Paraty, em 2003, distribuindo charme e interesse pelo sexo oposto, a Maria Caneta aumentou sua autoestima, descobriu seu potencial e se consolidou na paisagem lítero-turística da região. Hoje Agualusa atraca seu barco-casa no cais do porto, provocando um alvoroço que só fez crescer nos últimos anos. Ele inspirou a aparição de rivais. Foram aportando mais autores quase tão bons na pena quanto na exibição de suas graças físicas: o carioca João Paulo Cuenca, o português José Luiz Peixoto, o portenho Alan Pauls, o mexicano Guillermo Arriaga – e, claro, Chico Buarque de Holanda, que, sempre que vai à festa, desencadeia notáveis arranca-rabos entre suas seguidoras.

            O aspirante a galã da presente edição é o jovem chileno Alejandro Zambra, cuja novela, Bonsai (CosacNaify), conta as travessuras de um amor que se desdobra entre livros e perversões bel-letrísticas – tudo rapidinho e sem complicações. Dessa forma, Bonsai passou a ser o guia de bolso das pegadoras cultas e Zambra, o autor-alvo. Mas não é preciso ser belo nem moço para conquistar o coração de uma admiradora: basta ser famoso e ter feito “o” romance de sua geração, mesmo que de uma geração remota. Se você é um desses, então vá a Paraty. Espere alguns minutos e você verá chover caneta.   

            Ora, e por que não há o Mário Caneta? Talvez por causa da escassez de oferta de autoras. Geralmente as intelectuais publicadas que dão as caras nos eventos literários são casadas e vêm acompanhadas dos parceiros, costumam ter filhos e ostentar uma faixa etária elevada demais para despertar paixões nos marmanjos. Literatura parece ter se tornado uma brincadeira dos rapazes. Com a rica plumagem de seus textos, eles se exibem para as leitoras de 10 a 100 anos.

             É difícill generalizar e atribuir uma identidade única entre as Marias Canetas.  Elas são diferentes entre si e fazem questão de manter a diferença – e talvez aí resida seu ponto em comum. Querem ser originais, únicas e indecifráveis. As Marias Canetas são personagens em busca de um autor que as explique ao mundo e a elas próprias. Anseiam, no fundo, virar personagens de um grande romance geracional. Muitas se contentariam em aparecer em um conto ou mesmo um poema qualquer. Logo que elas se sentam na tenda dos autores para ouvir a primeira leitura de um autor que adoram, tentam se controlar. Aos poucos, porém, vão revelando seu desejo. Elas agem como  musas que ainda não encontraram um inspirador.

            À medida que sua frustração cresce, tornam-se mais raivosas e inescrupulosas. Por isso, ao longo dos anos, elas desenvolveram técnicas de abordagem e sobrevivência na selva das letras. A primeira providência que tomam é ficar de tocaia diante do computador, à espera do momento em que os ingressos para as mesas são vendidos. Para economizar, não vão em todos painéis. Privilegiam os de seus prováveis príncipes-encantados. Com o ingresso na mão, tratam de reservar pousadas, enquanto decoram a programação oficial e não oficial. Durante o evento, fazem fila para o autógrafo antes mesmo de o autor terminar sua fala. Para que ouvi-lo, se elas já conhecem tudo dele de cor? Acontece o primeiro contato com o escritor, palavras trocadas e o autógrafo com dedicatória no livro. Na fila mesmo, elas se informam sobre os encontros privados, almoços, turnês pelos alambiques e principalmente sobre as festas que as editoras e a organização estão promovendo, e dão um jeito de se introduzir nelas, com uma roupa e uma maquiagem deslumbrantes. Passam a abordar os assistentes dos assistentes do editor do autor, para ir vencendo etapas até chegar ao objeto de sua busca. Nessas festas, comportam-se de modo mais saliente e disponível, entre goles, risadas e passos de dança, atraindo para si a atenção de escritores e aspirantes, bem como aspirantes a aspirantes. Não raro, estes últimos é que acabam levando-as para a cama. Mas as Marias Canetas não são facilmente impressionáveis. Exigentes, quando despertam da bebedeira, elas não disfarçam a repulsa de estar ao lado de um sub do sub do sub da literatura, e logo enxotam o sujeito para sempre. A única vantagem foi ter se informado do passeio de barco do autor dos sonhos. Zarpam, então, rumo ao mar, às praias e às abordagens mais atrevidas nas caminhadas trôpegas pela rua do Comércio.

            Marias Canetas são predadoras. Mas será que elas conseguem cumprir seu intento? Devido à concorrência, são poucas as que arrebatam um autor de primeiro nível. A maioria se contenta com o apresentador da mesa, os secretários dos autores, ou então assessores de imprensa ou de internet. Ambicionam em um dia chegar ao objetivo. Obviamente, quase todas veem seus sonhos destroçados ao final de todos as mesas e todas as noitadas. Derrotadas ou vitoriosas, todas disfarçam bem. As que conseguem não contam vantagem às rivais. Nos eventos literários, a solidariedade feminina é abolida. Resta o ano que vem.

            A Maria Caneta arfa por eternizar na escrita de um nome festejado – de preferência, na condição de heroína turbulenta, uma Bovary 4.0. E é curioso que, apesar dos avanços, ainda não tenha aparecido nenhuma obra literária sobre ela, nem sequer como vilã ou coadjuvante. Os autores parecem se interessar por outro tipo de personagem, mais complexo, articulado e brilhante: eles próprios. Ser Maria Caneta não é fácil. Talvez lhe esteja faltando a sensibilidade para perceber que o sujeito que espera o autógrafo na fila à sua frente seja finalmente o homem de sua vida. Na ânsia de atingir a alma de um escritor de fama, ela não se dá conta de que esse cara irá se tornar um escritor célebre em breve. Foi o que aconteceu anos atrás com um pacato e desconhecido participante de uma mesa tediosa sobre literatura fantástica oriental. Falando baixo e sempre sério, ele passou incólume pelas Marias Canetas. Era o turco Orhan Pahmuk, que em seguida ganharia o prêmio Nobel de Literatura. Maria Caneta só terá vez quando instalar antenas mais aguçadas Por enquanto, apesar de suas segundas intenções, ela dá com os burros n’água.

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