quarta-feira, 11 de julho de 2012

A horda dos ciclochatos

Os ciclistas irritam mais na internet do que nas ruas. O que fazer para se livrar deles?

         Sempre gostei de bicicleta, passei minha infância e adolescência em cima de uma, percorrendo longas distâncias e me arriscando. Mas agora eu tenho a impressão de que bandos de usurpadores me roubou o prazer de passear sobre duas rodas. Pior, e isto não é impressão, esses bárbaros que se apresentam como militantes não apenas me impedem de ser ciclista como me ameaçam. Se isso ocorresse só no mundo concreto, já seria horrível. Mas eles vão muito além, e atacam seus alvos pelas redes sociais, blogs e sites. Eles pedalam por todos os mundos possíveis. Os cicloativistas – que prefiro chamar de ciclochatos ou velochatos – tornaram-se uma ameaça à segurança e à dignidade do cidadão.

         São muitos os exemplos da situação extrema em que as pessoas estão medidas por causa das bicicletas. Vou começar pelo mundo propriamente dito, aquele feito de terra, pedra, osso e sangue. No domingo, eu caminhava distraidamente pelo parque Villa-Lobos em São Paulo quando fui atropelado por um ciclista em alta velocidade. Felizmente não me machuquei. Foi só um tombo sem ferimentos. O problema não foi encontrão, e sim o ciclista. O sujeito alto, esbelto de collant amarelo-limão, óculos de surfista e capacete - apetrechos que o faziam lembrar um alienígena recém-descido do futuro - esboçou uma cara de poucos amigos. Ao parar a bicicleta, não me ajudou. Preferiu chamar os colegas para vir em defesa dele. Uma dezena de ETs sobre rodas de ambos os sexos apeou de seus veículos em atitude de desafio. “Você sabia que agora temos o direito de multar o senhor?”, disse aquele que parecia ser o líder da matilha – que, tão logo pulou do selim, diminuiu de tamanho e pareceu mais velho e mais agressivo. “Você quase matou o nosso amigo aqui.” Eu, ainda sentado, caí para trás para dar uma gargalhada. “Era só o que faltava”, berrei. “Vocês me derrubam e eu ainda pago multa?” O sujeito que me atropelou sorriu zombeteiramente e se apresentou como “cicloativista, blogueiro e tuiteiro”, além de garoto-propaganda de uma marca de bike. Enquanto isso, outros cicloativista se juntavam à minha volta, como se formassem um tribunal inquisidor. Assim falou o líder: “O prefeito nos conferiu a autoridade de penalizar monetariamente aqueles que ameaçam a mobilidade urbana. Você feriu a lei.” Retruquei: “Eu não feri. Eu fui ferido, ou quase!” A pequena multidão vaiou-me e, eu ainda estatelado no chão, saiu em alta velocidade como se nada tivesse acontecido. Com isso, quis se mostrar magnânima, porque não me autuou em flagrante.

         Não vou mentir que eu estava com a razão. Na realidade, eu transitava sem saber em local exclusivo de bicicletas. Outro fator incriminatório é que eu andava alegremente ao mesmo tempo que enviava um torpedo pelo smart-phone (o mesmo que havia sofrido bullying tecnológico na semana anterior, lembram?). Então, quando fui colhido pelo ciclista, eu me encontrava a um só tempo em dois mundos: no conectado e no real. O pensamento voava online, mas o corpo desabava offline. O monitor do meu pobre celular sofreu alguns arranhões leves – cicatrizes que me fizeram naquele instante renovar os votos de fidelidade; não vou trocá-lo por outro smart algum do mercado. Depois do acidente, eu já não sabia em que universo andava. Onde eu estava com a cabeça quando aluguei uma bicicleta na entrada do parque? Foi só tentar correr pela pista exclusiva da avenida para ser outra vez abalroado por um novo e ainda mais aguerrido bando de velocistas uniformizados. Enquanto eu olhava perplexo para os agressores, a multidão que se acotovelava sobre duas rodas passava como se nada tivesse acontecido. Nem discuti. Concluí que nunca mais seria a mesma coisa andar de bicicleta. A partir de agora, ou eu faria parte de uma tribo e militaria por ela, ou estaria fora de tudo. Me incluam fora dessa. 

         Essa triste condição se prolonga e ganha dramaticidade pelo universo inextenso da internet. Os ciclochatos invadem sem pena a privacidade alheia: eles fazem a pregação em programa de rádio e televisão, enviam spam às caixas de correio eletrônico, espalham mensagens pelo Twitter e pelos serviços de SMS, postam fotos artísticas no Instagram e no Flickr e anexam qualquer usuário mais distraído aos grupos do Facebook. De repente, sem querer, lá está você agregado ao mundo dos ativistas de dois pedais e um neurônio. Para se livrar deles, seria preciso retirar o nome de todos esses serviços. Impossível. Eles vão pegar você em alguma esquina virtual.

         Por alguns minutos, vamos nos sentar no meio-fio e, enquanto a horda dos cicloativista passa correndo à nossa frente, tentar refletir sobre o que a ela deseja e obtém, e o que de fato provoca. Os ciclistas militantes anseiam  por segurança na cidade com maior número de veículos da América do Sul. Afinal, só em 2011, morreram atropelados 49 ciclistas em São Paulo. Eles também lutam pela garantia do uso de pistas exclusivas para ciclistas nas ruas e avenidas. Por fim, reivindicam e conseguiram o direito de multar motoristas que ameacem a sua segurança (os pedestres ainda não têm os mesmos direitos). Eles se cercam, assim, de um poder inaudito. Podem multar e levar à prisão qualquer motorista, quando não pedestre.

         No entanto, aquilo que parece uma coleção de gestos de cidadania se transformou em aberração. Em primeiro lugar, os ciclochatos não podem ser denominados ciclistas comuns. Isso porque formam torcidas organizadas que, sempre em bandos, zombam dos motoristas e atravessam na frente dos ônibus para desafiar as leis do trânsito e da física. Também trafegam pelas calçadas, ameaçando os pedestres e os ciclistas amadores. Da mesma forma, os velochatos se acham no direito de divulgar suas ideias pela internet. Agora mesmo, na sua caixa de e-mails, você pode encontrar uma daquelas mensagens de “cidadania” e “mobilidade”.

         A bem da verdade, a horda cicloativista lembra menos uma passeata por direitos civis que um exército de kamikazes urbanos, prontos a se sacrificar em nome de uma causa nada clara. São tão irresponsáveis como impotentes. Eles já assinaram o atestado de óbito do movimento pela internet, pois ninguém mais suporta receber nem ler o que eles têm a dizer, ou acham que têm a postar, tuitar, blogar e o diabo a quatro. É tudo tão irritante que cai no dogmatismo, na inconsistência e, mais grave, no mercenarismo – pois muitos deles são patrocinados por empresas. Só falta mesmo eles se arrebentarem nas ruas de verdade. Não vou sentir falta desses fanfarrões em pele de paladinos da cidadania. Sem os ciclochatos por perto, talvez o cidadão comum possa voltar a passear com tranquilidade. Seriam centenas de veículos perigosos a menos circulando pela cidade.

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