sábado, 14 de abril de 2012

Sai da frente!

Quem grava shows pelo celular deve levar multa por piratear e perturbar a ordem pública

Compareci a muitos shows nos dois dias do festival Lollapalooza. Nunca vi no Brasil um evento desse gênero tão organizado, todos os horários observados com rigor (exceto o show dos Racionais), com som quase perfeito e sem tumulto. Até a chuva colaborou e apareceu por pouco tempo ao cair da tarde de domingo. Nem parecia festival de rock. O Brasil está ingressando no primeiro mundo - ou, pelo menos, no primeiro mundo do show business. Como tal, o país agora precisa se preocupar com pragas evoluídas. E não há praga mais terrível que a turba de espectadores munida de telefones celulares que invade alegremente os shows decidida a gravar tudo o que se passa no palco, a despeito de quem possa estar atrás ou por perto. Cerca de um terço da plateia do Lollapalooza estava fotografando com flash e gravando os espetáculos, para desespero daqueles que ainda tentavam assistir aos seus ídolos ao vivo.

Antigamente a gente se incomodava com as meninas que subiam nos ombros dos marmanjos para ver melhor o show, prejudicando quem estava atrás. A gente suplicava “desce!” e o imbróglio se resolvia pela pressão social. Havia fotógrafos, mas eram tão poucos que nem atrapalhavam. Afinal, eram atitudes irracionais, como continuam sendo. Agora os celulares se unem com espírito de corporação e iluminam os momentos mais emotivos dos shows. Tudo ficou muito brilhante nos shows de estádio. Eu me lembro do tempo que a banda Queen veio tocar no Morumbi – em 1980 – e não havia telões e nem isqueiros. O povo manifestou suas emoções acendendo... cigarros. Era um lume bruxuleante que deixa saudades. Vi o Freddie Mercury muito de longe, mas até conseguia divisar seus movimentos, porque só o palco era realmente iluminado. Hoje tudo estoura em luz. Paciência, não há nada a fazer além de ligar o próprio celular e acompanhar a massa em seus rituais totêmicos. Mas o que fazer com os cidadãos que se tomam por discretos e filmam o show com calma e controle racional sobre o processo? Será lícito gritar “sai da frente”?

Não acho que seja a solução correta para o problema. Eu próprio já me meti em arranca-rabos inúteis por causa disso. Uma noite dessas, no show do Chico Buarque, os scorseses do celular ignoraram o pedido da casa de espetáculos de desligar aparelhos e se postaram de pé, acocorados em cima das mesas, apoiados na cabeça da mulher ou em algum cantinho do palco para registrar cada suspiro e movimentos no palco de Chico – bem raros, aliás -, sem deixar de cantar todas as músicas em coro. Eu me irritei com um casal de “cineastas” que registrava tudo. Durante os aplausos, os dois ligavam para um amigo para quem haviam passado os arquivos, e assim comentar o desempenho do músico. “Você viu o Chico? Que bacana quando ele samba, nossa!” Eles não se contentavam em gravar, atrapalhando os outros. Queriam passar adiante a gravação, e bater papo ao mesmo tempo. Pedi que maneirassem, mas eles eram viajados, e começaram a esbravejar e fazer caretas amedrontadoras, tipo cerimônia maori da Nova Zelândia. Tive de me resignar com a pajelança. Até porque os seguranças do local se solidarizaram com os cineastas de araque. Absurdo.

No festival Lollapalooza, não foi diferente. Só que a horda era maior, mais concentrada e fanática. Todos parecem ter virado repórteres de um momento histórico que, de fato, não estavam presenciando diretamente, e sim pela lente dos celulares. Vi várias pessoas gravando e cantando o show inteiro dos Foo Fighters, duas horas e meia de gritaria e guitarras distorcidas, só para postar os vídeos no YouTube na mesma noite. Os cronômetros dos celulares marcavam 80, 90 minutos de gravação contínua. O fato mais bizarro era que os scorseses de plantão filmavam o telão, porque o palco estava muito longe deles. Assim, participavam de uma gravação duplamente indireta do show transmitido pelos telões. Eu tentei reclamar do sujeito que gravava tudo com os braços levantados à minha frente, mas ele riu porque não estava nem aí.

Isso me faz pensar que as pessoas perderam a noção daquilo que acontece de fato ao vivo, em carne e osso. Não existe mais a sensação da presença de fato. A experiência presencial deu lugar à representação da representação digitalizada. Não importa estar simplesmente lá. É preciso estar lá, registrar, enviar às redes sociais e se exibir tudo para os amigos. O público se transformou em atração. Agora o público-artista tem de estar, gritar mais alto que os artistas e registrar o momento sob a espécie de uma frágil eternidade. Vale menos a presença que a postagem. Mesmo assim, trata-se de um registro precário que provavelmente logo se apagará dos discos rígidos e escapará da memória de quem fez e de quem viu. O espetáculo real ficou para trás, esquecido porque nem mesmo foi vivenciado como arte.

Público no show do Foo Fighters no festival Lollapalooza em São Paulo (Foto: Sidinei Lopes/ÉPOCA)

Pior mesmo foi quem, como eu, tentou ver o show sem nada nas mãos – e foi bloqueado e interrompido pela atividade de registrar insana dos outros. Dá vontade de levar um celular bem poderoso da próxima vez, atrapalhar os celulares alheios, berrar e brilhar mais que eles nas transmissões para o Facebook e Twitter.

O fenômeno de agitação frenética do registro em rede se dá no mundo inteiro. Ele invade as esferas públicas e privadas. Ainda não foram criados mecanismos legais de coerção para a nova manifestação de barbárie tecnológica. A única solução seria criar uma lei para punir e multar a turma do celular por pirataria, utilização indevida da imagem e do trabalho dos artistas (afinal, eles são distribuídos e divulgados por todos os meios de informação disponíveis) e perturbação da ordem pública. Poderia ser uma saída para rechaçar os vândalos vetar o porte de celulares em eventos artísticos, revistar quem chega e confiscar os aparelhos. Só assim o mundo da música ficaria melhor. Mas, a contar com a marcha da humanidade rumo ao cretinismo, isso não deverá ocorrer. 

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