Eu queria nadar, correr, malhar, ler, ouvir música, namorar, beber, mas não consigo. Não posso, e não se trata de preguiça. Culpo esta vida trepidante que leva a lugar nenhum. Às vezes tenho a impressão de estar sendo puxado pelos dois braços, impelido para trás e para cima, como enganchado à fatalidade. Outras vezes a sensação é de uma reprise incansável das mesmas ações em nome do dinheiro. Trabalhar cansa, já dizia o poeta italiano Cesare Pavese. Viver esfalfa, escreveu o Conselheiro Aires.
Pensando bem, não importa o movimento que faça – se para frente, para o lado ou para trás – ou para onde me dirija, pois estou sempre aos círculos, apegado à circunvolução terrestre e ao destino de sua natureza, do ar que tenho de respirar, da água obrigado a beber.
As cidades se repetem como patos no carrossel. As populações globalizaram a tal ponto que sou incapaz de distinguir um país de outro, quase uma língua de outra. Não adianta sair da agitação de São Paulo, ir para, digamos, Londres – e lá encontrar os mesmos problemas e a mesma programaçao de cinema. Sei que por lá existe mais opção de cultura. Mas e daí, se não quero mais gastar outro dia de minha existência na National Gallery ou no Museu Britânico? Arte em excesso causa estresse.
O leitor me dirá que ainda resta a natureza como consolo e devaneio. Sim, eu sei, mas ela me leva às lágrimas. E embota os sentidos. Antigamente eu via uma árvore e isso servia para todas as outras. A regra se aplicava às praias, às montanhas e aos campos. Agora enxergo em cada uma dessas paisagens o germe de sua própria extinção. A visão embaça e fecho os olhos para não pensar mais nisso, como quando impeço que lembranças antigas e queridas me assaltem com sua tristeza parada no tempo.
Este planeta me dá claustrofobia. E pensar que o aquilo que há para além dele é pouco mais que o gelo seco de Marte, as tempestades de metano de Júpiter e Saturno, uma cratera de água rançosa no polo sul da Lua talvez... A ausência de gravidade e de oxigênio do universo me soa ainda mais angustiante que este lugar giratório e irritante que é a Terra.
Enquanto penso em tais bobagens, continuo a fazer aquilo que me sobrou e dá razão até mesmo a esta crônica. Ando por estas ruas e calçadas esburacadas atrás de um sentido para tudo, no encalço de mim mesmo escondido em algum ponto de fuga que eu possa achar na próxima esquina. Eis-me ali, tentando rir...
quarta-feira, 22 de julho de 2009
segunda-feira, 22 de junho de 2009
Encolheram o passado
Andam me chamando de saudosista por causa das reminiscências que derramo neste espaço. Onde já se viu um andarilho da cidade, atento ao trânsito, que vive de se equilibrar entre a calçada e a rua, comportar-se como um ser nostálgico, lamentando o fim de prédios, obras de arte e pessoas?
Aos críticos respondo que é isto mesmo: sinto falta de uma cidade que desaparece aos poucos, sim, e adoro lançar jeremiadas sobre o que perdi. Vivo de retratar paisagens e sentimentos atropelados pelo avanço catastrófico de um falso progresso, que devasta a natureza e derruba casas em benefício de torres apocalípticas. O resultado é a desfiguração do espaço urbano e, pior, a morte de valores humanos que até pouco trempo eram fundamentais.
A crônica, então, existe para desmascarar o presente pelo passado. O saudoso (lá venho eu de novo...) Rubem Braga foi o mestre da crônica, criador de um gênero que passou a ser seguido no Brasil. Pois o velho Braga ensinava que a nostalgia constitui o objeto da crônica. Cronista e saudosista são sinônimos.
Crônica é um fenômeno recente. Ela surgiu nos jornais no início do século XVIII na Europa. Chamava-se folhetim, espaço no qual se comentavam eventos da cidade, em especial óperas, teatro e circo. O folhetim chegou nesse formato ao Brasil em 1826. Depois derivou para a ficção, a política e o comportamento. O jovem provinciano capixaba Rubem Braga tinha quase nada à disposição. Na ausência de óperas e outros programas culturais nas cidades onde morou, teve de reinventar a crônica. Por necessidade, substituiu a crítica de eventos pelo flagrante do passado. O objeto da crônica é algo que já não está mais aqui. Crônica é a resenha do que não existe mais. A ausência que preenche uma lacuna.
O saudosismo também muda com o tempo. Machado de Assis, na maturidade, evocava sua juventude nos tempos do rei. Braga amargava a ausência de um mundo lírico do início do século XX. O cronista atual sente a nostalgia do que ocorreu há um minuto.
Por isso, os cronistas têm um passado brilhante pela frente. O ontem se afigura tão tumultuado quanto o agora – e logo o fato entra para o rol daquilo que foi urgente um dia. Então peço licença ao leitor para sentir saudade. A rua serve como palco. A vida cotidiana é o meu espetáculo, e este sempre já passou. Daí a melancolia que tinge minhas andanças/lembranças. Porque o espetáculo desta cidade é turbulento: um drama, no qual tanto o passado como o presente... encolheram!
Aos críticos respondo que é isto mesmo: sinto falta de uma cidade que desaparece aos poucos, sim, e adoro lançar jeremiadas sobre o que perdi. Vivo de retratar paisagens e sentimentos atropelados pelo avanço catastrófico de um falso progresso, que devasta a natureza e derruba casas em benefício de torres apocalípticas. O resultado é a desfiguração do espaço urbano e, pior, a morte de valores humanos que até pouco trempo eram fundamentais.
A crônica, então, existe para desmascarar o presente pelo passado. O saudoso (lá venho eu de novo...) Rubem Braga foi o mestre da crônica, criador de um gênero que passou a ser seguido no Brasil. Pois o velho Braga ensinava que a nostalgia constitui o objeto da crônica. Cronista e saudosista são sinônimos.
Crônica é um fenômeno recente. Ela surgiu nos jornais no início do século XVIII na Europa. Chamava-se folhetim, espaço no qual se comentavam eventos da cidade, em especial óperas, teatro e circo. O folhetim chegou nesse formato ao Brasil em 1826. Depois derivou para a ficção, a política e o comportamento. O jovem provinciano capixaba Rubem Braga tinha quase nada à disposição. Na ausência de óperas e outros programas culturais nas cidades onde morou, teve de reinventar a crônica. Por necessidade, substituiu a crítica de eventos pelo flagrante do passado. O objeto da crônica é algo que já não está mais aqui. Crônica é a resenha do que não existe mais. A ausência que preenche uma lacuna.
O saudosismo também muda com o tempo. Machado de Assis, na maturidade, evocava sua juventude nos tempos do rei. Braga amargava a ausência de um mundo lírico do início do século XX. O cronista atual sente a nostalgia do que ocorreu há um minuto.
Por isso, os cronistas têm um passado brilhante pela frente. O ontem se afigura tão tumultuado quanto o agora – e logo o fato entra para o rol daquilo que foi urgente um dia. Então peço licença ao leitor para sentir saudade. A rua serve como palco. A vida cotidiana é o meu espetáculo, e este sempre já passou. Daí a melancolia que tinge minhas andanças/lembranças. Porque o espetáculo desta cidade é turbulento: um drama, no qual tanto o passado como o presente... encolheram!
Como decifrar um bairro
O cronista trabalha como um construtor de diques imateriais. Em seu texto, ele quer represar a passagem do tempo, segurar uma visão e a palavra fugidia no tubilhão das metamorfoses. Com a passagem das coisas, a crônica termina por virar documento e, às vezes, com sorte, obra de arte. O sonho do cronista é, no fim, conservar fatos pela memória. Ando comparando certos lugares descritos por cronistas do passado e a situação em que esses espaços se encontram hoje. Os cenários se alteram e os textos retratam algo que já não pode ser verificado. Não vou cair em lamentos em torno da devastação da paisagem urbana. O que me interessa é descobrir restos dos que os mestres da língua retrataram nas ruínas que toda evolução urbana provoca.
Vagueei pela velha Lapa de Baixo. Passei por suas ruelas, seus muquifos e armazéns abandonados. Espiei pelas portarias de prédios prestes a ser demolidos, um deles com a placa da Escola de Datilografia Itamarati. Visitei a sede fechada há seis anos do lendário Lapeaninho, um clube de carteado. Enveredei por lojas em subsolos que um dia abrigaram bordéis e salões de sinuca.
Foi ali que João Antônio (1937-1999) ambientou suas crônicas e contos. Esse escritor nascido em Osasco passou a juventude na Lapa – e converteu o então submundo local em narrativas maravilhosas, repletas de sujeira e malandragem. É o caso do conto Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963. Conta a história de três vagabundos que vivem pela Lapa de dar golpes em salões de sinuca, tentando enganar os rivais com todo tipo de lorota e armadilha - e só se dão mal.
Talvez a Lapa de João Antônio possa ser melhor vista na sua obra literária. É resultado da filtragem imaginosa do cronista. Mas resquícios da obra do autor também se encontram na Lapa de agora. E aqui a coisa ganha curiosidade, porque ruas, prédios e objetos são de certa forma contaminados pelo texto do autor. O mundo real se enche da imaginação que lhe foi aplicada.
Não há mais aquela Lapa do início dos anos 60. Nem mesmo a sujeira é a mesma. Não há mais clube de carteado, mesmo que o jogo ainda corra às escondidas. Escolas de datilografia fecharam, mas foram substituídas pelos cursos de informática. Ainda assim, consegui entrever desvãos e quebradas em que as sombras dos personagens do escritor puderam ter se esgueirado e ainda podem passar. Sobraram o caos, um certo sofrimento do povo que se acotovela nas ruas, espera na estação de trem e bebe nos muquifos. O passeio compensou, porque li o bairro nas entrelinhas de seu ontem - e assim nasceu esta crônica.
Vagueei pela velha Lapa de Baixo. Passei por suas ruelas, seus muquifos e armazéns abandonados. Espiei pelas portarias de prédios prestes a ser demolidos, um deles com a placa da Escola de Datilografia Itamarati. Visitei a sede fechada há seis anos do lendário Lapeaninho, um clube de carteado. Enveredei por lojas em subsolos que um dia abrigaram bordéis e salões de sinuca.
Foi ali que João Antônio (1937-1999) ambientou suas crônicas e contos. Esse escritor nascido em Osasco passou a juventude na Lapa – e converteu o então submundo local em narrativas maravilhosas, repletas de sujeira e malandragem. É o caso do conto Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963. Conta a história de três vagabundos que vivem pela Lapa de dar golpes em salões de sinuca, tentando enganar os rivais com todo tipo de lorota e armadilha - e só se dão mal.
Talvez a Lapa de João Antônio possa ser melhor vista na sua obra literária. É resultado da filtragem imaginosa do cronista. Mas resquícios da obra do autor também se encontram na Lapa de agora. E aqui a coisa ganha curiosidade, porque ruas, prédios e objetos são de certa forma contaminados pelo texto do autor. O mundo real se enche da imaginação que lhe foi aplicada.
Não há mais aquela Lapa do início dos anos 60. Nem mesmo a sujeira é a mesma. Não há mais clube de carteado, mesmo que o jogo ainda corra às escondidas. Escolas de datilografia fecharam, mas foram substituídas pelos cursos de informática. Ainda assim, consegui entrever desvãos e quebradas em que as sombras dos personagens do escritor puderam ter se esgueirado e ainda podem passar. Sobraram o caos, um certo sofrimento do povo que se acotovela nas ruas, espera na estação de trem e bebe nos muquifos. O passeio compensou, porque li o bairro nas entrelinhas de seu ontem - e assim nasceu esta crônica.
terça-feira, 19 de maio de 2009
Cidade macabra
Quando esteve por aqui, semanas atrás, o diretor de cinema inglês Peter Greenaway contou que, na vez anterior em que estivera na cidade, em 2001, tinha observado urubus voando nas alamedas.A visão o inspirou a fazer um filme de vampiros na Paulicéia, um longa-metragem que retratasse a cidade.
Fiquei admirado com a intuição de Greenaway. Porque São Paulo é e sempre sempre foi lugar inspirador de histórias de terror - e ligado ao macabro. É curioso que os paulistanos não assumam a faceta lúgubre, coisa que os londrinos já fizeram. Comentei isso com a escritora Lygia Fagundes Telles, ao entrevistá-la sobre seu último livro, Conspiração de Nuvens. Um dos relatos da obra me transportou à São Paulo horrenda e fantástica. E ousei sugerir à grande dama das letras: “Lygia, por que você não escreve um romance sobre a São Paulo byroniana do século XIX?”. Ela sorriu enigmática.
O livro de Lygia me fez pensar na cerração e na garoa gelada que tornavam a cidade dos estudantes de Direito de 1830, 1850, um lugar de devaneios fúnebres e até satânicos. Os poetas ultra-românticos, que têm bustos nos arcos da faculdade do Largo de São Francisco, fizeram época com suas cerimônias iniciáticas em cemitérios, orgias, banquetes em pensões de reputação duvidosa e tertúlias embaladas a ópio e álcool.
Conta-se que Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo passavam as noites em festas dissolutas na Ilha do Amor, como era conhecida uma ilhota no meio do Rio Tamanduateí. Ali, Bernardo tocava lundus pornográficos ao violão, enquanto Maneco – o apelido de Álvares de Azevedo – se embebedava com aguardente e poesia satânica. Noites na Taverna, livro de Álvares de Azevedo, é ambientado numa São Paulo alegórica. Sua peça Macário é a versão caipira do pacto com o Diabo. Dessa fase, Bernardo Guimarães deixou a “Orgia dos duendes”. É fácil imaginar a cerimônia de bruxaria num matagal paulistano de 1850, mulheres de mantilha no transe do cateretê bestial: “Já ressoam timbales e rufos, / Ferve a dança do cateretê;/ Taturana, batendo os adufos, / Sapateia cantando — o le rê!”. Eram textos inspirados em Lorde Byron, o modelo daquela geração, que tratou de dar cor local ao niilismo do poeta irlandês.
A São Paulo sombria gerou infinitas histórias desse tipo: o túmulo do professor Julius Frank no pátio da São Francisco, excomungado por ter fundado uma sociedade secreta; os incêndios dos edifícios Andraus e Joelma em 1972 e 1974 e a mitologia espectral que resultou dos sinistros; os enterrados vivos da Via Amarela; os filmes aracnídeos de Zé do Caixão... É a vocação de uma cidade.
Torço para que um romance futuro de Lygia Fagundes Telles aborde os poetas lúgubres e obscenos do Romantismo. Também espero ver Peter Greenaway tirando vampiros das bocas-de-lobo locais.
Fiquei admirado com a intuição de Greenaway. Porque São Paulo é e sempre sempre foi lugar inspirador de histórias de terror - e ligado ao macabro. É curioso que os paulistanos não assumam a faceta lúgubre, coisa que os londrinos já fizeram. Comentei isso com a escritora Lygia Fagundes Telles, ao entrevistá-la sobre seu último livro, Conspiração de Nuvens. Um dos relatos da obra me transportou à São Paulo horrenda e fantástica. E ousei sugerir à grande dama das letras: “Lygia, por que você não escreve um romance sobre a São Paulo byroniana do século XIX?”. Ela sorriu enigmática.
O livro de Lygia me fez pensar na cerração e na garoa gelada que tornavam a cidade dos estudantes de Direito de 1830, 1850, um lugar de devaneios fúnebres e até satânicos. Os poetas ultra-românticos, que têm bustos nos arcos da faculdade do Largo de São Francisco, fizeram época com suas cerimônias iniciáticas em cemitérios, orgias, banquetes em pensões de reputação duvidosa e tertúlias embaladas a ópio e álcool.
Conta-se que Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo passavam as noites em festas dissolutas na Ilha do Amor, como era conhecida uma ilhota no meio do Rio Tamanduateí. Ali, Bernardo tocava lundus pornográficos ao violão, enquanto Maneco – o apelido de Álvares de Azevedo – se embebedava com aguardente e poesia satânica. Noites na Taverna, livro de Álvares de Azevedo, é ambientado numa São Paulo alegórica. Sua peça Macário é a versão caipira do pacto com o Diabo. Dessa fase, Bernardo Guimarães deixou a “Orgia dos duendes”. É fácil imaginar a cerimônia de bruxaria num matagal paulistano de 1850, mulheres de mantilha no transe do cateretê bestial: “Já ressoam timbales e rufos, / Ferve a dança do cateretê;/ Taturana, batendo os adufos, / Sapateia cantando — o le rê!”. Eram textos inspirados em Lorde Byron, o modelo daquela geração, que tratou de dar cor local ao niilismo do poeta irlandês.
A São Paulo sombria gerou infinitas histórias desse tipo: o túmulo do professor Julius Frank no pátio da São Francisco, excomungado por ter fundado uma sociedade secreta; os incêndios dos edifícios Andraus e Joelma em 1972 e 1974 e a mitologia espectral que resultou dos sinistros; os enterrados vivos da Via Amarela; os filmes aracnídeos de Zé do Caixão... É a vocação de uma cidade.
Torço para que um romance futuro de Lygia Fagundes Telles aborde os poetas lúgubres e obscenos do Romantismo. Também espero ver Peter Greenaway tirando vampiros das bocas-de-lobo locais.
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quarta-feira, 22 de abril de 2009
As cores e o tempo
Enquanto eu fazia teste de equilíbiro na guia da calçada, admirando pela rua as roupas, cabelos, maquiagens, cartazes, prédios e carros, passei a refletir sobre o poder das cores. Imaginei um filme que mostrasse o passado colorido e o presente preto-e-branco, para captar como a cidade e a vida alteram suas tonalidades. Queria assim inverter um lugar-comum no cinema: aquele tipo de cena monocromática que representa o passado, em contraposição às seqüências coloridas do presente. É como se o passado se esmaecesse na memória, até virar sépia. O chavão deve ter sido criado na época da popularização do cinema a cores – e aí talvez o preto-e-branco tivesse um sentido de inovação tecnológica, ainda vibrante na cabeça do público.
No meu novo esquema, fantasiei uma história ambientada em São Paulo na virada dos anos 70 para os 80, quando os hippies sumiram em nome das sombras do punk e do gótico. Um momento que testemunhei. Os resquícios da cultura florida e exuberante dos anos 60 se apagou aos poucos, até que triunfaram os trajes negros dos roqueiros de várias tribos. De repente, tudo escureceu. Os cidadãos adotaram a moda e passaram a se vestir com os mesmos cinzas e pretos. A mudança de modelo poderia ser representada pelo branco-e-preto do presente e o arco-iris do passado. Não é uma idéia original, devo tê-la visto em algum longa-metragem.
Então pensei em ir além, em outra cena, passada no século XXI. O filme teria de exibir o presente com supercolorido, e o passado em cores básicas. O que aconteceu nas últimas décadas foi a explosão das cores, nuanças e tons jamais vistas antes. Apesar do cinza reinante nas ruas, surge uma cor a cada dia.
Há 30 anos a gradação dos pigmentos era mais restrita. Nas roupas e nas artes, nos carros e paredes, havia um espectro menor de verdes, azuis, laranjas. Predominavam as cores básicas. A gente saía da cidade para caçar tons diferentes do rosa, o cromatismo do amarelo nas areias. As flores e as borboletas tinham mais imaginação que os artistas. A natureza aquarelava o mundo.
Agora as variantes são aos milhões, ao gosto do freguês. Basta ir a uma loja de tintas para escolher uma cor para pintar a parede de casa. Até o branco tem centenas de opções. É como se as pessoas tentassem encobrir a destruição da natureza – cada vez mais cinzenta e sombria - com um ambiente imprevisível de tons artificiais. Diante de tamanha proliferação de matizes, eu, pelo menos, perdi a noção das cores originais do mundo. Quase cambaleio ao perguntar aos meus cadarços cítricos: o que era o vermelho da minha infância? Jamais vou reencontrá-lo. Perdeu-se no vasto catálogo das tintas.
..
No meu novo esquema, fantasiei uma história ambientada em São Paulo na virada dos anos 70 para os 80, quando os hippies sumiram em nome das sombras do punk e do gótico. Um momento que testemunhei. Os resquícios da cultura florida e exuberante dos anos 60 se apagou aos poucos, até que triunfaram os trajes negros dos roqueiros de várias tribos. De repente, tudo escureceu. Os cidadãos adotaram a moda e passaram a se vestir com os mesmos cinzas e pretos. A mudança de modelo poderia ser representada pelo branco-e-preto do presente e o arco-iris do passado. Não é uma idéia original, devo tê-la visto em algum longa-metragem.
Então pensei em ir além, em outra cena, passada no século XXI. O filme teria de exibir o presente com supercolorido, e o passado em cores básicas. O que aconteceu nas últimas décadas foi a explosão das cores, nuanças e tons jamais vistas antes. Apesar do cinza reinante nas ruas, surge uma cor a cada dia.
Há 30 anos a gradação dos pigmentos era mais restrita. Nas roupas e nas artes, nos carros e paredes, havia um espectro menor de verdes, azuis, laranjas. Predominavam as cores básicas. A gente saía da cidade para caçar tons diferentes do rosa, o cromatismo do amarelo nas areias. As flores e as borboletas tinham mais imaginação que os artistas. A natureza aquarelava o mundo.
Agora as variantes são aos milhões, ao gosto do freguês. Basta ir a uma loja de tintas para escolher uma cor para pintar a parede de casa. Até o branco tem centenas de opções. É como se as pessoas tentassem encobrir a destruição da natureza – cada vez mais cinzenta e sombria - com um ambiente imprevisível de tons artificiais. Diante de tamanha proliferação de matizes, eu, pelo menos, perdi a noção das cores originais do mundo. Quase cambaleio ao perguntar aos meus cadarços cítricos: o que era o vermelho da minha infância? Jamais vou reencontrá-lo. Perdeu-se no vasto catálogo das tintas.
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domingo, 12 de abril de 2009
Lembranças de um hotel
Hotéis são paradoxais. Apesar de sólidos e construídos para durar, deixam ao mesmo tempo transparecer uma instabilidade, como se soubessem que passam. Eles cruzam por nossas vidas, surgem e somem ao sabor do acaso. Eles imitam o destino de seus hóspedes. Hotéis são hóspedes da História, também vão e vêm. Para quem mora nos arredores, evocam visitas, encontros, espetáculos, situações banais ou inusitadas. Por isso, me emociono tanto quando certo hotel some de repente.
O parágrafo que acabou é só uma desculpa para falar de um hotel fascinante, candidato à desaparição: o Maksoud Plaza. O luxuoso prédio com seu átrio de 22 andares, fundado em 1979, foi a leilão e não apareceu comprador. Continua a funcionar, mas ninguém sabe até quando. Outros grandes hotéis tombaram: Crowne Plaza, o Hilton do Centro, o Cesar Park. O Maksoud é o derradeiro representante do brilho dos anos 80.
Vou lá no sábado frio me despedir dos velhos tempos. Já não exibe a velha elegância. Na realidade, está meio às moscas. Sento-me no velho sofá de couro, peço um café e contemplo o lugar, entregando-me a devaneios.
Ainda “foca”, em 1984, entrei de gaiato numa das salas do mezzanino para ver a entrevista coletiva que o escritor Jorge Luis Borges concedeu e segui o ancião cego de bengala para dizer que era seu fã. Ele me olhou nos olhos, sorriu e estendeu a mão. Sim, naqueles corredores, tive a certeza de que Borges enxergava.
Ali perto, diante da sala de jogos, numa madrugada do início dos anos 90, o roqueiro Axl Rose lançou uma cadeira na direção dos repórteres. Adivinhe quem estava entre os alvos? Fomos parar na delegacia. Fiquei orgulhoso de fazer o Axl tocar o seu melhor solo de piano... imprimindo suas digitais no prontuário da polícia.
Tantas outras coisas sucederam lá. No restaurante, em meados dos 80, almocei com a cantora italiana Rita Pavone e encontrei as Supremes. No 150 Night Club, no subsolo do hotel, vi shows lendários, como o do cançonetista Bobby Short e da papisa do blues Alberta Hunter. E as entrevistas? Foram tantas: minha primeira em inglês, com a pianista de jazz Toshiko Akiyoshi, e conversas longas com os mestres Tom Jobim e Miles Davis e o teórico agitador Antonio Negri.
O ápice da minha carreia de freqüentador do hotel foi em 1994: hospedei-me no Maksoud para espionar a banda Rolling Stones: passei dias entrevistando copeiros e garçons, coletando hábitos bizarros de Mick Jagger. O resultado foi nulo, pois a única excentricidade de Mick era tomar coquetéis de vitamina. Era caretão...
O átrio descomunal guarda lembranças, e se esqueceu de tantas outras. Passo pela porta giratória, enquanto tento disfarçar com a garoa uma lágrima impertinente. Sinto que deixei muito de mim para trás.
O parágrafo que acabou é só uma desculpa para falar de um hotel fascinante, candidato à desaparição: o Maksoud Plaza. O luxuoso prédio com seu átrio de 22 andares, fundado em 1979, foi a leilão e não apareceu comprador. Continua a funcionar, mas ninguém sabe até quando. Outros grandes hotéis tombaram: Crowne Plaza, o Hilton do Centro, o Cesar Park. O Maksoud é o derradeiro representante do brilho dos anos 80.
Vou lá no sábado frio me despedir dos velhos tempos. Já não exibe a velha elegância. Na realidade, está meio às moscas. Sento-me no velho sofá de couro, peço um café e contemplo o lugar, entregando-me a devaneios.
Ainda “foca”, em 1984, entrei de gaiato numa das salas do mezzanino para ver a entrevista coletiva que o escritor Jorge Luis Borges concedeu e segui o ancião cego de bengala para dizer que era seu fã. Ele me olhou nos olhos, sorriu e estendeu a mão. Sim, naqueles corredores, tive a certeza de que Borges enxergava.
Ali perto, diante da sala de jogos, numa madrugada do início dos anos 90, o roqueiro Axl Rose lançou uma cadeira na direção dos repórteres. Adivinhe quem estava entre os alvos? Fomos parar na delegacia. Fiquei orgulhoso de fazer o Axl tocar o seu melhor solo de piano... imprimindo suas digitais no prontuário da polícia.
Tantas outras coisas sucederam lá. No restaurante, em meados dos 80, almocei com a cantora italiana Rita Pavone e encontrei as Supremes. No 150 Night Club, no subsolo do hotel, vi shows lendários, como o do cançonetista Bobby Short e da papisa do blues Alberta Hunter. E as entrevistas? Foram tantas: minha primeira em inglês, com a pianista de jazz Toshiko Akiyoshi, e conversas longas com os mestres Tom Jobim e Miles Davis e o teórico agitador Antonio Negri.
O ápice da minha carreia de freqüentador do hotel foi em 1994: hospedei-me no Maksoud para espionar a banda Rolling Stones: passei dias entrevistando copeiros e garçons, coletando hábitos bizarros de Mick Jagger. O resultado foi nulo, pois a única excentricidade de Mick era tomar coquetéis de vitamina. Era caretão...
O átrio descomunal guarda lembranças, e se esqueceu de tantas outras. Passo pela porta giratória, enquanto tento disfarçar com a garoa uma lágrima impertinente. Sinto que deixei muito de mim para trás.
O Tao da guia
Neste instante tento me equilibrar na guia entre a calçada e a rua, ao passso que espero o ônibus. Por segundos, fecho os olhos para testar meu senso de equilíbrio – ginástica cerebral, dizem. Ao abrir os olhos, satisfeito por me manter a prumo, vejo a lanchonete do outro lado da rua. Ela anuncia refrescos de frutas diferentes. Então me lembro da Mônica e, mesmo no frio, cogito em tomar um suco de, digamos, mangaba com cupuaçu. É perto, mas o trânsito é louco, o ônibus vem rápido. Mais uma vez vou desistir.
É que um dia dsses a minha amiga Mônica (e pelo nome você já identifica a idade que tem, porque até nome tem safra e a safra das Mônicas é de longos anos atrás) me sugeriu pelo messenger que eu tomasse um suco gelado. “É longe”, digitei. O dia suava, mas não tomei suco, não andei nem me distraí. Tudo longe e muito quente. Tomar suco em São Paulo pode ser uma das missões mais difíceis. Ou comprar um parafuso. Pão. Pensamento: eu culpei a Mônica, porque ela não me convidou para o suco, pois estava a passeio em Dublim, longe daqui, na Irlanda. Ela deu a idéia de eu me divertir, numa daquelas semanas em que começo a resmungar que gostaria de saltar de mim mesmo no próximo ponto... mas saltar para quê, e para onde?
Não, leitor, não venha me acusar de pânico social. Pelo contrário, vivo de excesso de gente. Minha família é grande, estou sempre às voltas com parentes, contraparentes e amigos de amigos. Além disso sou jornalista, em contato com centenas de pessoas diariamente na redação – e não conheço nada mais enxameado de seres coisas e para fazer que uma redação. Ando mesmo é ocupado.
Não tenho hora nem ocasião de jogar uma bola ou nadar. Quando leio, vejo filme ou vou a um espetáculo, é para alguma reportagem. Sou como o ginecologista, que trabalha onde os outros se divertem. Só me resta mesmo me divertir onde os outros trabalham... Vivo numa mistura esquisita de espírito aventureiro e ostracismo. Pode me chamar de taoísta, de seguidor de Lao Tsé na prática da não-ação, uma não-ação turbulenta, vamos definir assim.
Mas agora, andando pela beira da calçada, sou tomado de euforia. Não importa embarcar no ônibus sem ter saboreado o refresco. Afinal, ao menos uma vez, tudo estava à mão. Percebo que longe e perto não são mais que preconceitos, reles noções geográficas que dependem do estado do espírito. E o meu espírito erra pela distância. Ou pela preguiça. Vou beber um suco pelo messenger em Dublim.
É que um dia dsses a minha amiga Mônica (e pelo nome você já identifica a idade que tem, porque até nome tem safra e a safra das Mônicas é de longos anos atrás) me sugeriu pelo messenger que eu tomasse um suco gelado. “É longe”, digitei. O dia suava, mas não tomei suco, não andei nem me distraí. Tudo longe e muito quente. Tomar suco em São Paulo pode ser uma das missões mais difíceis. Ou comprar um parafuso. Pão. Pensamento: eu culpei a Mônica, porque ela não me convidou para o suco, pois estava a passeio em Dublim, longe daqui, na Irlanda. Ela deu a idéia de eu me divertir, numa daquelas semanas em que começo a resmungar que gostaria de saltar de mim mesmo no próximo ponto... mas saltar para quê, e para onde?
Não, leitor, não venha me acusar de pânico social. Pelo contrário, vivo de excesso de gente. Minha família é grande, estou sempre às voltas com parentes, contraparentes e amigos de amigos. Além disso sou jornalista, em contato com centenas de pessoas diariamente na redação – e não conheço nada mais enxameado de seres coisas e para fazer que uma redação. Ando mesmo é ocupado.
Não tenho hora nem ocasião de jogar uma bola ou nadar. Quando leio, vejo filme ou vou a um espetáculo, é para alguma reportagem. Sou como o ginecologista, que trabalha onde os outros se divertem. Só me resta mesmo me divertir onde os outros trabalham... Vivo numa mistura esquisita de espírito aventureiro e ostracismo. Pode me chamar de taoísta, de seguidor de Lao Tsé na prática da não-ação, uma não-ação turbulenta, vamos definir assim.
Mas agora, andando pela beira da calçada, sou tomado de euforia. Não importa embarcar no ônibus sem ter saboreado o refresco. Afinal, ao menos uma vez, tudo estava à mão. Percebo que longe e perto não são mais que preconceitos, reles noções geográficas que dependem do estado do espírito. E o meu espírito erra pela distância. Ou pela preguiça. Vou beber um suco pelo messenger em Dublim.
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