sábado, 17 de março de 2012

Alberto Giacometti, o escultor de sombras

Chega ao Brasil a obra do artista que destruiu a maior parte de suas peças - e fez a fama com as que sobraram
 
            O artista suíço Alberto Giacometti (1901-1966) ficou famoso pelas esculturas desproporcionais, seres humanos minúsculos ou tão finos e altos que parecem se desfazer no tempo e espaço como vislumbres ou vagas lembranças. Ele produziu centenas de obras que se tornaram modelos para a arte e a forma de ver do nosso tempo. Ainda assim, destruiu milhares delas que às vezes considerava melhores do que as versões acabadas – embora não definitivas. “Ao fazer uma coisa muito rapidamente e ela ficar boa, eu acabo desconfiando da própria velocidade”, disse em 1964 entrevista ao crítico londrino David Sylvester, transcrita em seu livro Um olhar sobre Giacometti (CosacNaify, 272 páginas, R$ 46,00). “Vou querer começar de novo para ver se vou me sair bem uma segunda vez. Na segunda vez nunca fica tão bom, a peça começa a degringolar. Assim, a original é a melhor.” Nessa altura, a peça original já estava reduzida a barro. Sylvester apelidou Giacometti, de quem se tornou amigo, de “um cego na escuridão”, um artista solitário que se recusou a aderir a escolas de vanguarda e destruiu suas criações em nome de um ideal que jamais alcançou.

            A maior amostra dessa “desobra” será exibida pela primeira vez na América do Sul na retrospectiva Alberto Giacometti: Coleção da Fondation Alberto e Annette Giacometti, Paris. A exposição começa nesta semana e fica em cartaz até 17 de junho na Pinacoteca do Estado de São Paulo, para depois seguir para o Rio de Janeiro e Buenos Aires. São 280 itens. O centro da mostra está nas 80 esculturas de materiais e tamanhos diversos, de miniaturas a gigantes. Elas são acompanhadas de trabalhos em outros suportes que ajudam a explicar o trabalho de Giacometti, como 40 pinturas e 80 esboços sobre papel, além de fotografias, ilustrações de livros e objetos decorativos, como vasos e luminárias.

            A historiadora da arte francesa Véronique Wiesinger, curadora e diretora da fundação do artista, afirma que a obra de Giacometti é mais difícil de ser racionalizada do que percebida pelos sentidos. Ela organizou a retrospectiva em ordem cronológica e temática, convidando o visitante a um passeio metafísico. “Quero mostrar que Giacometti foi tanto um artista completo como um pensador da arte”, diz. “Ele lidou com problemas como o de representar a natureza e lidar com o espaço e o ponto de vista. Mas, acima de tudo, encarou a criação artística como uma experiência filosófica. Sua obra funciona como um buraco negro em que o espectador é leva consigo todas as suas lembranças, experiências e emoções.”

            Na Pinacoteca, as obras ocupam todo o primeiro andar, com doze salas e o octógono, na parte central do prédio. A primeira sala expõe os anos de aprendizado no ateliê do pai, o pintor impressionista Giovanni Giacometti, na cidade de Stampa, na Suíça italiana. De 1901 a 1921, ele aprendeu a desenhar, pintar e esculpir a partir da observação da natureza e de modelos-vivos. Em 1922, mudou-se para Paris para estudar escultura. No final de 1926, instalou seu ateliê na rua Hyppolyte-Maindron, 46, em Montparnasse, e de lá saiu em raras ocasiões, para visitar a família na Suíça ou para viagens de trabalho. Trabalhou nele até a morte. O prédio seria demolido em 1972 e seu conteúdo formou o primeiro acervo da Fundação Giacometti, criada em 2003.

            No espaço reduzido do ateliê, ele viveu suas aventuras mais inquietantes. Ali se apaixonou pela arte “primitiva” da África e Oceania, e inspirado nela esculpiu Casal. Foram suas primeiras peças expostas em 1927 em Paris – e se encontram na sala 2. De 1929 a 1935,  abandonou o figurativismo e os modelos. O grupo surrealista, liderado pelo escritor André Breton, convidou-o a o fazer parte do movimento. Quando fez sua primeira mostra individual, em 1932, Breton celebrou a escultura Bola suspensa como protótipo do Surrealismo. Mas Giacometti foi expulso em 1935 porque voltou a trabalhar com modelos, pecado mortal para os surrealistas, que retiravam o material de suas obras dos sonhos e alucinações. Giacometti não se importou muito. Quando ficou manco ao ser atropelado por um carro em 1938, enfurnou-se ainda mais. Durante a ocupação nazista, foi obrigado a fugir à Suíça. Retornou ao ateliê depois da guerra. Ali se envolveu com suas modelos e se casou em 1949 com uma delas, Annette Arm (1923-1993). E nele recebeu autores famosos que escreveram sobre sua obra, como Jean-Paul Sartre e Jean Genet. Ambos o chamavam de existencialista. No artigo “O ateliê de Giacometti”, publicado em 1957, Genet anuncia que descobriu o segredo da arte do amigo: “Giacometti parece querer descobrir e desnudar essa ferida secreta que existe em tudo e em todos”.

            Uma ferida que fez gosto de nunca cicatrizar e nem comentar. Suas preocupações pareciam ser de ordem estética. “O problema é encontrar o real por meio das aparências externas”, dizia. Giacometti se atormentava com a forma clássica de representação, que respeitava as medidas exatas do volume do modelo.Via arte clássica como falsificação da realidade, já que esta só se apresenta por meio da percepção. “Hoje mesmo de tarde do British Museum, enquanto estava olhando as esculturas gregas, senti que elas eram enormes blocos de pedra, mas blocos mortos”, disse a David Sylvester. “Quando vejo alguém olhando para elas, essa pessoa não tem espessura e dá a impressão de ser uma aparição quase transparente – e leve. O próprio peso da massa é falso. O que faz um ser parecer vivo é o fato de ele, mesmo sendo muito gordo, pode ficar levemente na ponta de um pé, ele até ode dançar num pé só, não pode? Uma das razões por que fiz figuras em tamanho natural que se tornaram extremamente finas deve ser que, para serem reais, elas tinham de ser leves o suficiente para eu erguê-las, carregá-las com uma mão só e coloca-las num táxi junto de mim.”

            Dedicou seus últimos anos a desbastar as peças que criava. À medida que suprimia a matéria, descobria que as figuras se tornavam maiores: “Quanto mais desbasto maior a peça fica. Mas por que isso acontece, ainda não sei. Veja, no busto que estou fazendo agora, não paro de desbastar; no entanto, ele é tão grande que tenho a impressão de que sempre volta a ficar duas vezes mais espesso do que na realidade é. Por isso, tenho de continuar desgastando, desbastando. E depois, bom, simplesmente não sei. É nesse ponto em que realmente me perco. É como se o material real estivesse se tornando ilusório.”

            O professor Teixeira Coelho compara-o aos pintores Lucian Freud e Francis Bacon, que buscaram distorcer a  figura humana para ressaltar a ferida. “Há uma mudança de escala, um colapso da percepção espacial dele”, afirma Coelho. “É diferente de Michelangelo ou Rodin, que podiam apresentar esculturas inacabadas, mas o corpo era proporcional ao espaço que ele ocupava.”Giacometti declarou a derrota da representação, diz o crítico Rodrito Naves: “É como se disesse que, em nosso tempo, não é mais possível encontrar a completude, nem do lado do artista, nem do lado do retratado. É uma somatória de erros, como se fosse o elogio do fracasso.”     

Até morrer do coração em 11 de janeiro de 1966, Giacometti exaltou a precariedade como a única expressão possível da realidade. Nos seus últimos anos, dedicou-se a três atividades: representar a figura feminina, petrificar aparições de movimentos e moldar cabeças em argila ou terracota sem trair a verdade delas. Essas obsessões comparecem no octógono da Pinacoteca, que abriga o monumento projetado em 1958 a ser instalado na praça diante do edifício do banco Chase Manhattan em Nova York: são figuras  longas e gigantescas em bronze – uma mulher em pé um homem caminhando – ao lado de uma cabeça colocada o chão. O projeto nunca foi concretizado, para alívio do artista sempre insatisfeito. “Um fracasso me interessa tanto quanto um sucesso”, disse. “E devíamos expor as obras que não são boas em vez das melhores.”

            Ele gostava desse tipo de frase de efeito, e talvez as inventasse para se proteger. Apegava-se a suas peças enquanto as fazia. Depois as abandonava, sem terminá-las. “Quando sinto que não estou querendo largar a obra, volto para ela. E quando paro, não é para achá-la mais completa, ou melhor; é porque, naquele momento, ela deixou de ser necessária para mim. Isso quer dizer que eu sempre paro exatamente no dia em que o trabalho estaria apenas começando.” Para Giacometti, a arte verdadeira ainda está por ser feita.


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terça-feira, 13 de março de 2012

Chico pode parar

Em um dos melhores shows de sua carreira, o compositor parece se despedir a cada noite. Não devia

               

                O show se intitula Chico, o que dá a entender que o compositor carioca Chico Buarque de Holanda nunca foi tão pessoal e tão intimista quanto desta vez. Em duas horas de um espetáculo que já percorreu várias cidades brasileiras e agora está em longa temporada em São Paulo, ele canta velhos sucessos e as canções de seu último CD, que dá título ao recital, o primeiro depois de um interregno de cinco anos de atividade literária. Trata-se de seu último e talvez derradeiro espetáculo.

                É isso o que o público sussurra à entrada do HSBC Brasil. As pessoas que vão ver Chico em pessoa parecem mais exaltadas do que o normal. Na noite de sábado passado, além da habitual presença de mulheres que declararam seu amor ao ídolo, um senhor sentado a uma mesa ao fundo gritava o tempo todo: “Bonitíssimo!” No final, Chico faz algo inédito em sua carreira de 48 anos: vem até à beira do palco e cumprimenta as pessoas. Assim como pela primeira vez dá uma de cantor e se desloca pelo tablado com um microfone. Ele, que sempre sofreu de um incurável pânico de palco, agora bate papo e interage fisicamente com sua plateia. Não se comporta apenas como o totem fixo à espera de veneração, como o fez no passado.

                A descontração tem influência em sua forma de interpretar, pois raras vezes ele se mostrou tão pouco desafinado. Em uma sequência de voz e violão, o músico de 67 anos logra até mesmo exibir algum mérito como intérprete – logo ele, o cantautor que meio que desprezava a interpretação exata, logo ele que fazia da imperfeição de seu canto uma forma de valorizar a perfeição de seus versos e de sua mensagem. Assim, no ápice de sua autoestima e segurança, cercado de músicos de alta qualidade como o violonista e maestro Luiz Claudio Ramos, os bateristas Wilson das Neves e Chico Batera e o baixista Jorge Helder, ele parece dar adeus. Talvez seja mero coquetismo de um ídolo eternamente sedento de culto. Mas, se a intenção for verdadeira, será lamentável para a horda de fanáticos e pior ainda para a MPB, o gênero que ele ajudou a fundar em 1965, com a moda dos festivais da canção. Hoje a MPB seria chamada de “samba universitário”, porque representava uma interpretação que a juventude universitária fazia do samba de morro e de malandragem. Era o samba sobre o samba.

                Quando apareceu, ele foi saudado como o salvador do samba em um momento em que o gênero estava se transformando em instrumento de protesto político, com o movimento dos Centro Populares de Cultura. Quando o samba se tornava panfletário, surgia Chico Buarque e sua alta cultura poética, capaz de imprimir sofisticação, metalinguagem e uma visão de mundo universalista empolgante, um conteúdo de crítica social mais denso do que o praticado até então pelos músicos populares. Ele foi uma espécie de Arthur Rimbaud no samba. Tal qual o jovem poeta francês, ele espantava pelos achados poéticos e o refinamento experimental. Era um poeta maldito que sambava.

                Chico elevou a canção popular de um modo peculiar. Em vez de assumir a própria voz, desde o início da carreira, quando, em 1965, musicou para o Tuca (o teatro da Pontifícia Universidade de São Paulo) o poema dramático Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, ele trabalhou como uma espécie de dramaturgo, pois abriu espaço à voz dos outros, em especial a dos oprimidos, os derrotados pela História e as mulheres desamadas. Provavelmente porque sempre foi muito tímido, preferiu atuar no palco como o boneco de ventríloquo do “povo”, ou daquilo que ele e seu grupo entendiam por povo. Viveu um impasse criativo nos anos 80, mas recuperou o tônus em  com os discos e shows Paratodos (1993), As cidades (1998), Carioca (2006) e agora Chico, de 2011. Ele sempre agiu como um músico amador capaz de transcender as limitações técnicas (sua voz e seu violão continuam sendo “universitários”) por meio da alta inspiração poética e dramática. Aos poucos, foi abandonando o drama pelo lirismo, e passou a contar sobre si mesmo, em músicas crescentemente confessionais e introspectivas. O fato interessante é que ultimamente ele assumiu a própria voz, e com isso melhorou sua forma de cantar. Quando examinada em perspectiva, sua carreira como compositor popular se revela racional, linear e coerente. O jovem indignado dos anos 60 expressou as utopias de seu tempo, o homem dos anos 70 e 80 retratou a revolução sexual e a subsequente ressaca de todos os sonhos e desejos. Agora, no século XXI, o escritor adentra a terceira-idade em uma espécie de zona de conforto em que a observação crítica e a ironia são filtradas pela função emotiva. Assistir a um show de Chico é como repassar a história dos brasileiros nos últimos 50 anos. É emocionante, até porque a plateia se vê refletida em todas aquelas canções. E porque essas canções são ouro se comparadas às que são feitas hoje.

                Chico tem dito que música popular “é coisa de jovem” e que ele está mais interessado na carreira literária. Tem lá seus motivos. De 1991 até 2009, produziu quatro romances de sucesso, mesmo com rejeição de parte da crítica literária. É bom lembrar que ele já havia feito sucesso como dramaturgo. São dele as peças Roda Viva (1967), Ópera do malandro (1978) e O Grande Circo Místico (1983), que marcaram época. Mas também vale observar que ele sempre obteve mais êxito como compositor e intérprete popular. Foi com suas músicas que ele se tornou o trompete da revolta dos brasileiros às indignidades cometidas pelo regime militar, o tradutor dos sentimentos femininos, o poeta dos desvalidos. Atualmente ele prefere aos trabalhos de palco os idílios na praia do Leblon e os prazeres de seu apartamento em Paris, onde se dá o luxo de inventar histórias – e, quando ocupado, flanar como anônimo pela cidade. Pode ser um epílogo glorioso para quem fez tanto à cultura brasileira. Mas talvez o público não o perdoe por isso.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Sertanejos universais

 
O que Michel Teló, Gusttavo Lima e você ensinam sobre cultura popular

            A reportagem sobre o cantor, compositor e acordeonista Michel Teló, publicada em Época, causou repercussão. Houve manifestações ufanistas, mas muitos leitores escreveram à Redação para questionar a abordagem do texto, que afirmava que a música de Teló reflete os valores da cultura popular brasileira. Na revista e no resto da realidade, as reações ao som a um tempo dançante e sertanejo do cantor  têm sido conflitantes. O público se divide entre um suposto coro dos contentes e a parcela crítica e intelectual dos consumidores de cultura. De um lado, exulta o público que frequenta festas e baladas, rebola e se diverte com músicas de Teló como “Ai, se eu te pego (assim você me mata)”. De outro, bradam com indignação os eternos baluartes do bom gosto, que gostariam de ouvir o mundo povoado de sambas, clássicos e a boa música popular brasileira – a tal MPB, termo que agora seria apropriadamente trocado por “samba universitário”.  Trata-se do retorno meio burlesco do antigo debate em torno de cultura de massa, popular e erudita. Burlesco porque essa era uma discussão da década de 60 do século passado. Tais divisões caíram por terra, e tudo se converteu neste século em mercado e estratificação de gosto. Vou tentar demonstrar que o sertanejo universitário de Teló, Luan Santana e Gustavo Lima possui tanta legitimidade quanto a congada paulista, a chula gaúcha, o choro e o samba de morro carioca, entre outras manifestações musicais... quer gostemos ou nem tanto.

            A recepção negativa daquilo que chamávamos antigamente de “intelligenstia” (ninguém mais usa o datado termo russo) me remete a  meados da década de 90, quando apareceu o grupo É o Tchan – e, com ele, vários outros artistas do pagode baiano. As pessoas de gosto refinado viravam a cara para os requebrados de Carla Peres, e fechavam os ouvidos para o samba de roda praticado por É o Tchan. Examinados em perspectiva, percebemos que esses músicos praticavam cultura popular brasileira. Ou não era cultura?

            Entendo o que o público sofisticado quer dizer. Como tantos outros, sou saudosista. Gosto de escrever em Times New Roman, como se fosse uma caligrafia minha, vício decorrente de minha teimosia em continuar a escrever à mão. Escrevo em Times New Roman assim como adoro povoar o meu jardim com sambas de Cartola, Chico Buarque, Brancura e Marçal. No dicionário da música, ainda estou na letra B: ouço Bach, Brahms, Berg, Beethoven. Bem entendido, é apenas o meu jardim. Por vezes ele é invadido por ruídos de máquinas e hits das baladas sertanejas hoje em moda, como foi antes tomado pelo funk, o pagode, o tecnobrega, o rock e o pop mais desqualificado. Não raro, essas músicas entram no meu quintal e acabo me divertindo com elas. Às vezes tudo o que eu sou obrigado a ouvir é “Eu te amo e open bar”, o novo sucesso de Michel de Teló. Eu não sou surdo. Não sou de aço.

            Minha própria condição de jardineiro infiel me leva à dedução de que aquilo que o público sofisticado quer dizer não se coaduna com a realidade. Estamos na segunda década do século XXI. A expressão popular se alterou profundamente com a imensa quantidade de informação trazida pelas novas tecnologias, como a interconexão planetária imposta pela internet. O brega se juntou ao tecno, o samba ao funk, o forró ao eletrônico – e assim ad nauseam, numa inevitável corrente de acasalamentos artísticos, ideológicos (opa, mais uma palavra banida) e culturais. Vamos nos cingir ao caso do Brasil: uma nova classe média se alevanta, e com elas, seus valores mais queridos. A nova classe média antes respondia pelo gosto popular. Mas agora ela dá as cartas, tornou-se determinante (“mainstream” é o termo em voga) em ditar gosto, modos de vida e comportamento. Atitudes e palavras que talvez repugnem a elite, mas que nunca deixaram de fazer parte dos valores populares, e agora penetram insidiosamente nos hábitos e folguedos da classe dominante globalizada.

            Essa promiscuidade do imaginário é o que músicos como Teló, Luan e Gusttavo Lima refletem e trazem à tona com força transformadora. Refrãos como o de “Balada boa”, gravada por Gusttavo Lima já são sucesso do verão e traduzem os vocabulário dos jovens nas baladas sertanejas, que viraram arenas de liberdade e sexo: "Gata, me liga, mais tarde tem balada, quero curtir com você na madrugada: dançar, pular, que hoje vai rolar o 'tchê tcherere tchê tchê’”. Gestos obscenos como os de “Ai, se eu te pego” são repetidos mundialmente, em versões as mais inusitadas. É repugnante - e irresistível.

            Se examinadas mais a fundo, as escatologias dançantes e sonoras contêm elementos tradicionais e veneráveis. São emanações da cultura dos sertões brasileiros, agora compartilhadas pelo mundo todo. Luan Santana é mato-grossense. Assim também Michel Teló, paranaense criado em Campo Grande. Gusttavo Lima é mineiro educado em Goiás. Paula Fernandes, mineira de Sete Lagoas radicada em São Paulo. Cada um deles a seu jeito e intensidade mistura folclore, música universitária e pop. Luan vem da tradição caipira. Gusttavo é fortemente influenciado pela axé-music da Bahia – por sua vez fundada nas batidas dos blocos afros de Salvador.

            Michel Teló merece mais atenção. Ele filho de gaúchos, começou a tocar gaita de 80 baixos aos 7 anos, fez parte durante oito anos do Grupo Tradição, de Campo Grande, e se notabilizou como virtuose da gaita – ou sanfona, como se diz em São Paulo. Ele elaborou um estilo peculiar de executar ritmos semifolclóricos, como o vanerão e o xote gaúchos (de “scottish”, dança escocesa comum nos fandangos sul-riograndenses do século XVIII, que mais tarde passaram a ser tocados no Nordeste brasileiro), fundindo-os com o baião e outros ritmos nordestinos. Teló me disse que gosta de chamar seu estilo de “pancadão sertanejo”. Dessa forma, ele realizou uma síntese das danças do Sul e do Nordeste do Brasil. E avança para novas ousadias. Seu último sucesso, “Eu te amo e open bar” introduz, de forma inusitada, a sanfona na música dançante eletrônica do século XXI. Basta reparar como Teló se vale de refrãos de sanfona em meio ao batidão. Teló traz uma cadência mais sulista ao cabedal de síncope brasileira – e isso talvez seja o motivo de sua música ter pegado tanto no plano internacional. Por ser mais “dura”, mais marcada, sem abdicar da dançabilidade (acabo de forjar o termo, inspirado no vocabulário de videogame), ela é facilmente compreendida pelos estrangeiros. Acho que o excesso de síncope da música brasileira afasta os gringos, incapazes de compreender os contratempos de forma integral, coisa que os brasileiros fazem de modo natural.

             Os sons distantes das baladas do sertão chegaram até o centro e os bairros sofisticados das grandes capitais do Brasil e agora conquistam o mundo. Agora não adianta evitar: somos todos sertanejos, somos todos universitários e mundializados. E como tudo está cada vez mais igual a tudo, não surpreende que o batidão de “Ai, se eu te pego” e sua coreografia simiesca tenha se transformado na nova “Macarena”, o sucesso da dupla espanhola Los del Río de 1996. O Brasil figura como uma das sete maiores economias do mundo, e sua música deve se impor como referência. Que seja via esses sertanejos que se revelam universais. O resto é preconceito.

Os dilemas da fama, segundo Jennifer Egan

               

            A escritora e jornalista Jennifer Egan tomou um susto em 2011 quando foi avisada de que havia recebido o prêmio mais importante da ficção americana, o Pulitzer, por seu romance A visita do tempo cruel. “Como não divulgam os candidatos, o prêmio veio do nada”, diz ela. “Passei a sentir o peso da responsabilidade dos autores consagrados, e isso por uma obra que muitos críticos nem consideram romance, tão cheia é de vaivéns e mudanças de planos narrativos.”

            Jennifer teve razão em se espantar. Histórias como a dela, organizada de forma descontínua, com várias vozes contando suas versões e avanços e recuos no tempo, costumam amargar o desprezo dos prêmios literários. Isso quando alguma editora concorda em publicá-las. O romance e o conto experimentais caíram em desgraça ainda nos anos 1980 em benefício da narrativa linear tradicional. O último autor americano desse tipo a ter tido repercussão suicidou-se há quatro anos: David Foster Wallace (1962-12008), autor da ficção hiperfragmentária Infinite Jest, de 1996, enforcou-se em meio a dilemas enquanto escrevia um livro ainda mais instável, The pale king, cujos fragmentos foram lançados em volume em 2010. Algo muito diferente, por exemplo, de dois romances hoje em moda: o realista Liberdade, do americano Jonathan Franzen, e o fantástico 1Q84, do japonês Haruki Murakami. Um e outro seguem os preceitos consagrados da linearidade – e vendem milhões de exemplares pelo mundo.

            Nada credenciava A visita do tempo cruel à fama. Mas, surpreendentemente, ele vendeu 300 mil exemplares nos Estados Unidos, está sendo adaptado para uma série de televisão pela rede HBO e sai nesta semana no Brasil pela editora Intrínseca ( 336 páginas, R$ , tradução de Fernanda Abreu). Trata-se do quinto livro de Jennifer Egan em 19 anos de carreira. Jennifer diz que, aos 49 anos, já experimentou todas as formas, inclusive a tradicional. Foi o caso de seu segundo romance, Amor a três, o circo invisível, de 1995, uma história de amor adaptada para o cinema e estrelada pela atriz Cameron Diaz. “Não tenho estilo nem ideias definidos antes de começar a escrever uma história”, diz Jennifer. “Gosto de escrever à mão porque assim é como se eu sonhasse aos poucos o enredo, que vai aparecendo à medida que jogo as ideias no papel.”

            O impacto da obra junto à crítica foi positivo. Mesmo assim, alguns resenhistas o chamaram de fora de moda por abordar irregularmente o tema clássico da passagem do tempo e por cometer ousadias que consideraram ingênua. Uma delas é compor um capítulo inteiro em PowerPoint, o software de apresentação que justapõe textos, gráficos e imagens.

            O livro se revela tão irresistível com seu humor e tom satírico quanto difícil de resumir, já que uma parcela da experiência de construir a história fica a cargo do leitor. O romance se divide em 13 capítulos – cada um deles em formatos e narradores diferentes, O pano de fundo é a decadência da indústria da música, incapaz de se adaptar às novas tecnologias. Quem encarna o drama é Bennie Salazar, roqueiro da cena punk de San Francisco dos anos 1970. Ele abandona os palcos, torna-se executivo de uma grande gravadora em Nova York e, por fim, é despedido aos 50 anos. Diante de Bennie transitam personagens excêntricos como o guitarrista Scottie, o astro do rock Bosco e o repórter de celebridades Jules Jones. De todos se destaca Sasha Blake, a secretária cleptomaníaca de Bennie, que parece ter sido prostituta em Nápoles – e, em um futuro próximo, mora no deserto da Califórnia com seu filho Alison, de 11 anos, autista e obcecado por pesquisar a função da pausa na história das canções do rock’n’roll. Alison monta seu projeto em PowerPoint.

            “A história determina a forma”, diz Jennifer. “Adotei o PowerPoint porque Alison está obcecado em buscar as pausas musicais e expressa sua obsessão na apresentação que monta no computador. O PowerPoint tem uma descontinuidade interessante e ingênua. Se Laurence Sterne vivesse hoje, escreveria seu romance Tristram Shandy em PowerPoint.” O irlandês Sterne (1713-1768) inovou com seu livro, publicado em 1759, que influenciou, entre outros, Machado de Assis em suas Memórias póstumas de Brás Cubas (1881).

            Além de se inspirar nas obras Sterne e Cervantes, Jennifer Egan criou sua história baseada em dois produtos culturais aparentemente opostos: o ciclo de romances Em busca do tempo perdido (1909-1922), de Marcel Proust, e a série de televisão Família Soprano (1999-2006). “Levei seis anos para ler Proust em inglês, no mesmo período em que vi Família Soprano pela TV”, diz. “Os livros e a série abordam a questão do tempo de uma forma densa. Só depois descobri que o criador dos Sopranos, David Chase, é um admirador de Proust. Tentei transportar o problema do tempo para os dias de hoje, quando a tecnologia apaga nossa memória e nos empurra para o desconhecido. Nada melhor que a cena do rock e a indústria da música para expor o que acontece com todos nós hoje.”

            Jennifer viveu seus tempos de estudante em San Francisco às voltas com bandas de punk e, ao se tornar jornalista, fez reportagens sobre bandas pop. Tudo lhe serviu como material para A visita cruel do tempo. Hoje ela mora com o marido e dois filhos – meninos de 9 e 11 anos – no bairro do Brooklyn em Nova York. “É complicado fazer as crianças se interessarem em leitura, porque elas só querem saber de videogame. Mas continuo tentando.” No momento, prepara um romance histórico, em formato tradicional, sobre as mulheres que trabalharam na construção de navios no porto de Manhattan durante a Segunda Guerra Mundial. “Estou entusiasmada com a história, e espero que o público tenha o mesmo prazer.” Diz que o grande desafio do escritor de ficção é continuar a atrair o leitor. “O romance ainda vai continuar, porque é uma forma livre, flexível e adaptável aos novos tempos. Se as pessoas estão deixando de ler livros, não é culpa da tecnologia. É nossa, porque não estamos escrevendo histórias interessantes.”

A amante de Machado de Assis?

Em cartas, o escritor maduro revela afeto incomum por uma jovem casada

               

                Machado de Assis (1839-1908) teria tido uma amante?

                É a questão que o diplomata e crítico literário Sergio Paulo Rouanet deixa entrever, com extrema discrição, no recém-lançado volume III da Correspondência de Machado de Assis, publicado pela Academia Brasileira de Letras, que abrange o período que vai de 1890 a 1900, dos 51 aos 61 anos do escritor. Na condição de jornalista abelhudo que não tem mais uma reputação a perder (se é que teve um dia), eu tomo a liberdade e cometo a indiscrição de levantar mais abertamente a suspeita – ou, como prefere denominar Rouanet, “bisbilhotice póstuma”. Trata-se de um  sentimento indigno, porém próprio ao cético Bentinho sobre a fidelidade de Capitu em Dom Casmurro, romance que Machado escreveu ao longo de quatro anos e a editora Garnier fez imprimir em Paris no final de 1899 e só lançado no início do ano seguinte. É apenas um detalhe aparentemente sem importância, trazido à tona pelo trabalho monumental de Rouanet, que traz não só informações importantes sobre a trajetória de Machado, como corrige muitos erros e omissões.

                As cartas, bilhetes e cartões a ser distribuídas em cinco volumes (a ser publicados até o fim de 2013, o quarto neste ano) ajudam a compreender o papel de Machado de Assis como fundador da Academia de Letras, correspondente ativo e passivo de ficcionistas como Magalhães de Azeredo e de críticos como José Veríssimo, cidadão discreto, avesso à política e afeito às questões estéticas. No entanto, sob a barba já branca do “Bruxo do Cosme Velho” (detesto esse apelido popularizado pelo poema “A um bruxo, com amor”, de Carlos Drummond de Andrade, mas vá lá), batia um coração quem sabe não raro inconstante,  dado, talvez, a devaneios amorosos, e certamente atento à alma feminina, que retratou em várias personagens, como a intrigante Capitu, a doce Helena e a sorrateira Sofia, de Quincas Borba. Na juventude, convém lembrar, ele dedicou seu primeiro poema publicado à soprano italiana Anette Casaloni, por quem teria se apaixonado. Teve algumas aventuras quando jovem. Uma carta, de 30 de outubro de 1899,  seu colega maranhense Graça Aranha cometia várias indiscrições que devem ter enfurecido Machado. Uma delas foi contar, por imagens canhestras, que havia lido Dom Casmurro em primeira mão em Paris, sem a devida permissão do autor (e tinha certeza de que Capitu era adúltera). Outra foi fazer a seguinte declaração meio como desculpa: “Se em alguma coisa alguma evocação de figura amada, em tocar em certas reminiscências lhe causei qualquer inquietação ou sobressalto perdoe-me porque, meu bom amigo, entre os homens ninguém o ama mais. Entre homens, por que entre as mulheres...”

                Para alimentar a suspeita sobre o caso de Machado, inspiro-me nesse tipo de declaração de Graça Aranha e nas entrelinhas das duas cartas que Machado enviou à jovem aspirante a escritora paulistana Rafaelina de Barros (1878-1943) em 1896, quando Machado, no ápice da fama, funcionário público exemplar e casado havia 26 anos com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Morais, contava 56 anos e Rafaelina, apenas 18. Isso segundo as datas oficiais, sobre as quais Rouanet e suas duas escudeiras no projeto de organizar a correspondência completa do autor, as pesquisadoras-detetives Irene Moutinho e Sílvia Eleutério, lançam dúvidas. Afinal, a intrépida Rafaelina já era casada  com um comerciante quando escreveu a Machado. Além disso, começava a iniciar uma relação com o poeta paranaense Emílio de Meneses (1866-1918), também casado, bem como excêntrico e conhecido boêmio do Rio de Janeiro.

                Rafaelina e Emílio viveriam uma paixão arrebatadora em meados da década de 1890. O caso provocou escândalo na Capital Federal. Emílio levou uma surra do marido ultrajado, e Rafaelina abandonou o lar tornando-se companheira e musa para a vida inteira do escritor. Ela estreou na ficção como volume de contos Almanara (192) e, em 1923, publicou o livro de poemas Bíblicas. Quando enviuvou, tornou-se zeladora e organizadora da correspondência de Emílio (hoje desaparecida) e ajudou com dinheiro ao escritor Lima Barreto, que vivia praticamente como mendigo no fim da vida. 

                Rafaelina era apaixonada por amar escritores (se vivesse hoje, faria networking nas várias festas literárias espalhadas pelo país). Ela já morava com Emílio quando escreveu duas cartas a Machado.  “O que é surpreendente nessas duas cartas de Machado é o tom misterioso, cheio de subentendidos”, afirma Rouanet. A primeira, datada de 6 de abril de  1896, solicitando que ele lhe enviasse uma cópia da tradução do poema “Corvo”, de Edgar Allan Poe, que Machado havia feito  e ainda era inédita em livro. As cartas se perderam (ou teria sido eliminada pelo pudor do próprio destinatário?). Segundo Rouanet, é provável que Rafaelina atendesse a um pedido do companheiro Emílio, que também estava preparando uma tradução do poema. Em 20 de abril, Machado envia uma carta à “prezada Senhora Dona Rafaelina de Barros”. Ele cumpria uma das duas promessas que fizera a ela, enviando incluso o poema de Poe. Quanto à segunda, escreve Machado, “pesa-me confessá-lo, há razão que só à vista lhe poderei dizer, e que me impede de a cumprir, como deseja cordialmente.  Creio que o meu pesar é maior que o seu, por mais amável que seja da sua parte sentir algum.”

                A segunda carta, datada de 25 de maio de 1896, responde à de Rafaelina, que deve ter declarado que a leitura da tradução do poema de Poe a fez se alegrar, em uma espécie de alteração do efeito da ave, agora tropical e alegre. Traz comentários de Machado sobre a tradução: “Que o Corvo tivesse produzido nessas sertanias, o efeito da ave alegre e feliz, é notícia que me lisonjeia muito, mas não atribua só a mim este grande regalo. É principalmente do poeta americano. Sem a beleza original da concepção, é certo que eu não chegaria a fazer coisa que prestasse. Como, porém servi de intermediário à inspiração original, fico satisfeito pela parte que tive nas suas comoções.”        Rafaelina parece ter se encontrado com Machado, e falado sobre lágrimas antigas. A isso, Machado respondeu, com alguma indiscrição: “Sobre as lágrimas de tempos idos não lhe digo mais nada, além do que falamos sábado. É memória que nunca perdi, e pode imaginar-se se me haverá penalizado tamanha dor sem culpas de uma por causa involuntária de outro”.

                Rafaelina certamente havia trocado confidências com o escritor três dias antes, no sábado, 23 de maio de 1896. Onde teriam se encontrado? Certamente não no Cosme Velho nº 18, onde o escritor vivia aparentemente em harmonia com Carolina. Será lícito desconfiar de que  Rafaelina seduziu definitivamente Machado de Assis naquela ocasião? Será que falaram de seus respectivos cônjuges – e talvez dessa palestra adúltera tenha surgido a inspiração para construir a personagem da adúltera (ou não) Capitu? Leram juntos “Corvo”? Ou juraram não se encontrar, feito o corvo, “nunca mais”, e assim potencializar a paixão? Pois, conforme escreveu Machado, "A ausência diminui as paixões medíocres e aumenta as grandes, como o vento apaga as velas e atiça as fogueiras.”

                A suposição mais racional é de que houve simplesmente um encantamento, uma simpatia de Machado pela moça e vice-versa, e nada mais. Talvez uma paixonite que um e outro tratou de sarar. Daí a prudência dos organizadores do volume em não extrapolar os limites da pesquisa. Mas, para um reles jornalista – e que me perdoem Rouanet, Irene e Sílvia – , não deixa de ser tentador imaginar a queda do autor de meia-idade por uma jovem de 18 anos, no esplendor da curiosidade, inclusive literária. Toda esta fantasia já me inspira um conto...

No coração de Machado de Assis

O volume III da correspondência machadiana traz amores secretos, polêmicas, doença e o processo criativo do escritor

            O que as cartas, os bilhetes e outros textos menores dizem de um artista? Às vezes muito, às vezes escondem quase tudo. No caso de José Maria Machado de Assis (1839-1908), sua correspondência completa, publicada pela Academia Brasileira de Letras (ABL), tem trazido a público aspectos desconhecidos ou não muito abordados da carreira, das ideias e da personalidade do escritor considerado unanimemente o mais importante do Brasil – e, por conseguinte, o mais estudado de todos. Cartas, bilhetes, cartões etc. igualmente ocultam detalhes que excitam a curiosidade do leitor. Como em seus contos e romances, na correspondência Machado mais insinua do que afirma.

            O trabalho de organização das cartas enviadas a Machado e respondidas por ele, sob o título de Correspondência de Machado de Assis, tem sido empreendido desde 2008 pelo crítico e pensador Sergio Paulo Rouanet e de suas duas assistentes, as entusiasmadas pesquisadoras-detetives Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Cada volume lançado provoca enorme alvoroço nos meios literários e acadêmicos. O tomo I abrangia o período de 1860 a 1869. O tomo II – 1870 1889, saiu em 2009. O terceiro volume foi concluído no fim do ano passado Curiosamente, o número da cartas aumenta de tomo a tomo, à medida que os pesquisadores vasculham o material. No fim deste ano, será lançado o quarto volume da, abordando o período de 1901 a 1904. O plano inicial era perfazer quatro tomos, mas o número de cartas no período final do escritor obrigou os organizadores a aumentarem um volume, o último, que deverá ir de 1904 a 1908, a ser editado no final de 2013. “Quanto mais pesquisamos, mais nos surpreendemos”, diz Rouanet. “Em relação a Machado, há sempre algo a descobrir.”

            Há muito a descobrir na correspondência que vai de 1890 a 1900, reunida no terceiro volume. As 292 missivas mostram Machado no ápice da carreira. Entre os 51 e 61 anos, ele redigiu e fez publicar dois de seus romances mais importantes – Quincas Borba e Dom Casmurro –, e trabalhou para fundar e institucionalizar a ABL. Trocou ideias com críticos, colegas e personalidades da época, reagiu discretamente aos ataques de inimigos, deu conselhos a amigos jovens e até encontrou tempo para se envolver com uma mulher.

            A intimidade e o trabalho se entrelaçam nas cartas do escritor, que se confessa “spleenético” ao pupilo Magalhães de Azeredo – a quem aconselha o trabalho literário para curar a melancolia. Machado interrompe uma carta a Azeredo e justifica que tinha sido acometido pelo “mal” – numa rara menção à sua epilepsia.      Ao crítico José Verissimo, Machado narra o esforço para criar suas histórias. Quincas Borba, por exemplo, custou quatro anos de trabalho. A amizade com Verissimo não parecia tão clara quanto agora, pelo tom amistoso e descontraído que os dois mantêm. As cartas de Joaquim Nabuco e Graça Aranha a Machado revelam que os dois leram Dom Casmurro em outubro de 1899 em Paris, antes de o volume ter sido lançado no Brasil, no início de 1899. Graça Aranha mostra que já não gostava da ABL em 1897, apesar de instado por Machado de Assis a fazer parte da instituição. Ora, o que se sabia até agora era que Graça romperia com a Academia em 1924, quando se arvorou em líder do Modernismo. Outro detalhe é a forma como Graça se dirige a Machado, chamando-o de conquistador e fazendo gracejos – que fizeram com que Machado suspendesse a correspondência com ele por quatro anos.

            Machado evitava o tom informal. Gostava de manter a respeitabilidade. Tinha um cuidado especial para a ABL e se recusava a discutir política. Em bilhetes a várias autoridades, ele se esforça para aprovar a lei  Eduardo Ramos, que colocava a Academia Brasileira de Letras como instituição federal Esse esforço do escritor não é citado pelos seus principais biógrafos. Outro erro histórico que a correspondência corrige diz respeito à primeira sessão solene de posse de João Ribeiro, para ocupar a primeira vaga de um imortal morto, Guimarães Jr. Diferentemente do que informam os historiadores, ela não aconteceu em 30 de novembro de 1898, mas em 17 de novembro.

            Mesmo ciente de seu papel de liderança no campo literário, Machado deixou escapar seus sentimentos. Nesse sentido, a parcela mais saborosa do volume está nas duas cartas que Machado envia à escritora paulistana Rafaelina de Barros (1878-1943) em abril e maio de 1896. Rafaelina havia se separado de um marido comerciante para viver com o escritor Emílio de Meneses. Em uma carta não encontrada, ela fez dois pedidos ao escritor: o envio da tradução do poema “Corvo”, de Edgar Allan Poe, feita por Machado, e um favor não revelado. Machado atendeu ao primeiro pedido, mas não ao segundo: “pesa-me confessá-lo, há razão que só à vista lhe poderei dizer, e que me impede de a cumprir, como deseja cordialmente. Creio que o meu pesar é maior que o seu, por mais amável que seja da sua parte sentir algum.” Na segunda carta, de 25 de maio de 1896, Machado se refere ao encontro que os dois tiveram: “Sobre as lágrimas de tempos idos não lhe digo mais nada, além do que falamos sábado. É memória que nunca perdi, e pode imaginar-se se me haverá penalizado tamanha dor sem culpas de uma por causa involuntária de outro”. Essas passagens densas de subentendidos sugerem que houve no mínimo uma simpatia encantada do velho escritor para com a moça. Teria sido Rafaelina a mulher que inspirou a personagem Capitu?

            Esse tipo de pergunta não pode ser respondida pela leitura da correspondência machadiana, já que as cartas mais lançam dúvidas do que esclarecem. Elas mostram apenas parcialmente o que se passava no coração do escritor. Mesmo assim, ajudam a redefinir a imagem do mito mais cultuado das letras brasileiras. 

Luís Antônio Giron

Nássara, o chargista da canção

Luís Antônio Giron

            Existem compositores que vivem de parcerias, e passam pela história da música como figuras secundárias. Este poderia ter o caso do carioca Antonio Nássara. Não fosse ele um artista refinado, capaz de desenhar como escrever cenas e perfis em versos cômicos, ele talvez tivesse passado em branco na história da época de ouro da música brasileira, que foi dos anos 20 aos 40. No entanto, Nássara emprestou seu talento aos parceiros e marcou seu tempo com grandes sucessos carnavalescos, nas vozes dos maiores cantores daquela época áurea à qual os historiógrafos se referem com nostalgia. Nássara se destacou entre os nomes de maior renome de um tempo em que não era fácil brilhar. Pois ele fez amizade e obteve sucessos por meio de cantores como Carmen Miranda, Francisco Alves, Mário Reis, Déo, Silvio Caldas, Orlando Silva, Carlos Galhardo, a dupla Joel & Gaúcho, gente que fazia sucesso no carnaval.

A personalidade dupla do artista causou um problema à posteridade. Isso porque a especialização dos seus biógrafos resultou em perfis limitados e redutores de Nássara. As biografias de Cassio Loredano e de Isabel Lustosa se centraram em explicar o caricaturista. O legado musical ficou de lado. O músico e pesquisador carioca Carlos Didier preenche o vazio com Nássara passado a limpo (José Olympio Editora, 252 páginas), abordando o artista em sua multiplicidade de aspectos: o desenhista, o diagramador, o letrista de Carnaval, o cantor de um disco só, o locutor, o boêmio irônico e escorregadio. O fio condutor do texto está no nexo entre o artista genial do traço e o compositor de canções que se tornaram clássicas. O livro se baseia nas dezenas de depoimentos e conversas que Didier e Nássara mantiveram ao longo de 20 anos de amizade. É dividido em 65 capítulos curtos – na verdade, crônicas fragmentárias que montam um quadro completo ao final - e traz a musicografia completa de Nássara. Pela primeira vez, é possível entender sua herança artística.  

            Isso me leva a dizer algo  pode soar lugar comum; mas, no caso de Nássara, vale a pena arriscar: o  artista transferiu o seu traço mínimo à música. Ele fundou uma escola que alguns denominam “minimalista”. É uma tarja um tanto simplista. Talvez um termo mais preciso seria “esquemática”, mas também incorre em generalização, já que toda charge e toda caricatura se fazem no esquematismo do aspecto físico de uma pessoa conhecida. Nássara foi além, elaborando uma abstração do indivíduo, como se pudesse captar a superfície reveladora de sua essência. E seu futuro. Um exemplo: aos vinte e poucos anos, ele caricaturizou o cantor Almirante, líder do Bando de Tangarás, como uma águia de olhar maligno. Na época, no início dos anos 30, Nássara e Almirante se davam até que razoavelmente bem. Com o passar do tempo e a importância crescente da pesquisa de música popular, Almirante passou a organizar um acervo sonoro e de partituras. Nos anos 60, sua coleção serviria como base para o Museu da Imagem e do Som (MIS), do Rio de Janeiro. Havia pelo menos dois lados no ímpeto organizador: sistematizar o conhecimento da música popular para as futuras gerações, mas também dominá-la. Almirante era não apenas ciosos, como excessivamente apegado a seu acervo. Ele próprio encarnou o acervo, quando parou de cantar. Nássara, um tipo boêmio e desinteressado em posses, desentendeu-se por algum motivo não revelado com Almirante, provavelmente um assunto referente ao famoso acervo, e, na idade madura, passou a enxergar no arquivista aquela águia que ele havia desenhado quando jovem. Foi um profeta do traço, vamos dizer assim. Ele definia seu método como “mentalização”: quando queria retratar um personagem, não se baseava em uma fotografia. Fechava os olhos e fazia uma imagem mental de seu modelo. Atingia, assim, em traços muito simples, a estrutura da personalidade do retratado. Como definiu seu colega Millôr Fernandes, Nássara foi o “Mondrian do portrait-charge”. Assim como foi o grande caricaturista do seu tempo, Nássara pode ser considerado o mestre da charge sonora. Chegou mais fundo na experiência visual, com suas radiografias em preto e branco da alma das pessoas e das situações. Mas na música não deixou de fazer também história. Se no desenho ele captava a estrutura, na música ele recuava ao método mais pueril da paródia. Ora, ser “pueril” não é exatamente um defeito em música popular. Antes pelo contrário...

Antônio Gabriel Nássara nasceu em 12/11/1909 no Rio de Janeiro, filho dos libaneses Gabriel Jorge Nássara e Uahyba Dahio. A família mantinha um armarinho em São Cristóvão. Eram em sete irmãos. Antonio fazia entrega de artigos e tomava conta do caixa da empresa. A família se mudou para o bairro de Vila Isabel, reduto da boêmia carioca, quando Antonio tinha 12 anos. Morava quase na frente da casa de Noel Rosa, de quem se tornaria amigo. Ainda criança, mostrou talento para o desenho e a folia. Estudou na Escola Nacional de Belas Artes e estreou no jornalismo gráfico e na composição carnavalesca praticamente ao mesmo tempo: em 1929. Como informa Didier, três caricaturas de sua autoria foram publicadas em O Globo: as de três políticos da revolução de 1930: o deputado gaúcho João Neves da Fontoura, o líder paraibano Epitácio Pessoa e do mineiro Francisco de Mello Viana, vice-presidente da República. Ao mesmo tempo, formou o grupo da ENB, a Escola Nacional de Belas Artes. Os colegas que formaram o grupo, além de Nássara eram Manuelino Xavier, Barata e Jaime Ruy Martinez, o J. Rui.  Nássara entrava com as composições, a voz e a percussão. O grupo logo se associou ao cantor Luiz Barbosa.

Em 1931, Nássara se empregou como locutor do Programa Casé, da rádio Philips, e gravou um disco pela Parlophon, com as músicas “Mal de fome”, e “O sem trabalho”, ambas paródias com o acompanhamento ao piano de Henrique Vogeler. Ele adotou o pseudônimo de Luiz Antonio em homenagem ao avô Antonio e ao amigo e ídolo Luiz Barbosa, o rei do breque e da bossa. “Mal de fome”, parceria com o amigo de infância e companheiro do bloco Faz Vergonha, Armando Reis, ou, como seria conhecido nacionalmente, Cristóvão de Alencar, era um paródia de “Mon ideal”, um sucesso do cantor francês Maurice Chevalier. “Mal de fome”, de acordo com Carlos Didier,  foi uma composição de Noel Rosa, cantada por Nássara, ou melhor, Luiz Antonio.

Ainda em 1931, uma composição de sua autoria estreou na voz de seu futuro desafeto Almirante, à frente do Bando de Tangarás. Era “Para o samba entrar no céu”, uma parceria com J. Ruy. A música foi lançada em 16 de outubro daquele ano e marcava a estreia de Nássara no método que lhe daria fama: o de usar trechos de canções famosas para criar paródias. Tratava-se de uma colagem do samba “Batucada”, de Eduardo Souto e Braguinha, e outras canções de carnaval.  Confortável no terreno da paródia, não foi difícil a Nássara fazer jingles. E jingles geniais, como “Caixa Econômica”. Esse grande samba de bossa, interpretado infernalmente por João Petra e Luiz Barbosa, no disco Victor lançado em 1933,  foi composto por Nássara e Orestes Barbosa para ser um jingle da Caixa Econômica Federal. No acompanhamento, o próprio Luiz tocava percussão no chapéu de palha, e Custódio Mesquita impunha mais síncopes ao piano. No dia seguinte da gravação, 26 de julho de 1933, Orestes Barbosa puxou a brasa para sua sardinha na coluna Rádio do jornal A Hora: “Luiz Barbosa e João Petra de Barros com Custódio Mesquita ao piano, gravaram, ontem, na Victor, o samba ‘Caixa Econômica’ de Orestes e Nássara. A prova revelou o esmero desses três aplaudidos vultos do disco nacional.” Assim falou Orestes. Pela música, ele e Nássara ganharam 5 mil réis. Custódio, que era rico, não quis receber nada. O prêmio de Custódio foi a glória eterna de uma gravação tão incrível que não parece nem de longe um jingle. Um “antijingle”, como definiu Didier. 

A arte sonora – em letra e melodia – de Nássara é sutil. O caricaturista não deixa de ser, no fundo, um retratista. E foi assim que, com a delicadeza de um pintor de miniaturas, que Nássara compôs a marcha “Formosa”, os eu primeiro grande sucesso carnavalesco.  A música brilhou no penúltimo disco dentre os 12 lançados pela dupla Francisco Alves e Mário Reis para a gravadora Odeon. O duo gravou de setembro de 1930 a dezembro de 1921. Foram 12 discos, com 24 músicas. “Formosa” saiu em disco com “Primeiro amor”, de Noel Rosa e Ernani Silva. Depois de “Formosa”, a dupla ainda lançaria uma bolacha de 78 rotações por minuto com os sambas “Mas como... outra vez?!” e “Primeiro amor”. “Formosa” foi composta como um samba para o conjunto ENBA, uma mais uma parceria com J. Ruy. Ela foi interpretada no rádio pelo amigo Luiz Barbosa. A gravação da música aconteceu por sugestão de Francisco Alves, em encontro com Nássara no Café Nice. Chico Alves também propôs que o samba fosse convertido em marcha. “Florisbela” é um retrato colorido de uma melindrosa tardia do início dos anos 30, presunçosa e bela.

Jornalista, chargista e boêmio, Nássara se caracterizou pela associação com  parceiros. Ouvidas em conjunto, as músicas que compôs em sociedade parecem imantadas com uma marca e um enorme poder de atração. Mesmo em canções que não fizeram sucesso, Nássara deixou sua assinatura. Foi o caso de “Garota colossal”, dele e Ary Barroso. A marcha foi gravada em outubro de 1934 pelo grande cantor do tempo, Francisco Alves, para ser lançada no carnaval de 1935. A censura getulista implicou com o verso “Você, você é meu hino nacional”. E proibiu a música na folia. Naqueles tempos nacionalistas, como em todos os tempos, era vedado brincar com um símbolo da pátria. O chefe da censura, Lauro Müller, passou um carão em Ary e Nássara. Os dois saíram da delegacia para rir do episódio.

A parceria era um gênero de arte para Nássara. E foi assim, em arte, que se deu o encontro entre os vizinhos Nássara e Noel Rosa começou na mesa de um bar do bairro. Noel também desenhava e fazia caricaturas. Até chegou a pedir emprego a Nássara, que lhe recomendou continuar naquilo que fazia ainda melhor: canções populares. Noel aceitou o conselho meio a contragosto. Quando morreu, aos 26 anos, em 1937, ainda alimentava o sonho de virar artista gráfico. Num certo dia de 1934, Noel estava no tal café. Tinha composto a melodia um estribilho de marcha rancho e pediu que Nássara concluísse os versos. Nássara terminou, mas Noel não contou os versos do amigo no Programa Casé. Quando já tinha retirado seu nome da parceria, Nássara foi chamado pela gravadora RCA Victor para assinar o contrato de gravação. Noel não apenas tinha incluído seu nome antes do seu como autor em “Retiro da saudade”, como chamado os dois maiores cartazes da época para gravar a marcha rancho: Francisco Alves e Carmen Miranda. A dupla ainda gravaria “Ninho deserto”, de Evaldo Ruy. Mas jamais voltaria a se reunir diante de um microfone. Outra parceria brilhante dos dois caricaturistas compositores, Noel Rosa e Nássara, foi o samba “Que baixo!”. Coube à amiga dos dois, a jovem cantora Aracy de Almeida, gravar a canção para a Victor em 17 de dezembro de 1935. Era só o começo da vida de artista de Nássara.  

Seu êxito não aconteceu nas páginas dos jornais: foi a marcha carnavalesca “Alá-la-ô”, sucesso do carnaval de 1941 e que nunca mais deixou de figurar na trilha sonora da folia. “Alá-la-ô” teve uma gênese curiosa, narrada por Carlos Didier. Começou com uma segunda parte de Haroldo Lobo, que dizia o seguinte: “Chegou, chegou/ A nossa caravana/ Viemos do deserto/ Sem pão e sem banana pra comer/ O sol estava de amargar/ Queimava nossa cara/ Fazia a gente suar”.  Os dois se encontraram no Café Belas-Artes no centro do Rio. Nássara pensou nos seus antepassados libaneses para dar um fecho à marcha. E Haroldo, talvez inspirado no esquematismo do parceiro, criou mais um refrão: “Alá-la=ô, ô, ô, ô, mas que calor, ô,ô,ô, ô.”  Os dois concluíram a marcha, cantarolando ali mesmo, no café, os seguintes versos: Atravessando o deserto de Saara/ O sol estava quente/ E queimou a nossa cara”. Nascia um clássico da fuzarca, que muito se beneficiou da interpretação humorística de Carlos Galhardo, antes de se tornar uma múmia da valsa brasileira.

Como era natural em seu espírito gregário, Nássara se aproximava ainda mais dos caricaturistas. O ganha-pão o aproximou de artistas  como J. Carlos, Raul Pederneiras, Figueroa e Guevara. O jovem Nássara aprendeu com eles, absorvendo suas técnicas para elaborar a sua arte. E não perdeu a oportunidade para caricaturizar os caricaturistas.  

Para o carnaval de 1938, Nássara se associou ao desenhista e revistógrafo baiano Sá Roriz para compor as marchas “A Arca de Noé” e  “Periquitinho verde”. Os dois parceiros cantavam “Periquitinho verde” na Cinelândia, diante do ventríloquo e comediante Batista Júnior. Ouvindo a música, Batista Junior disse: “Escuta, Nássara, você quer dar essa música pra uma garota que é a minha filha?” E foi assim que a menina Dircinha Batista brilhou no primeiro carnaval do Estado Novo, cantando “Periquitinho Verde”. Nássara considerava Dircinha a melhor intérprete de suas músicas. 

Ele fazia caricatura sobretudo quando compunha. Em muitas ocasiões, recorreu à paródia de músicas alheias, sobretudo em sua querida música clássica. Nássara se revelou um artista do traço até quando compunha . É o caso de “Nós queremos uma valsa”, uma paródia à célebre Valsa dos patinadores, de Waldteufel. Orestes Barbosa e seu velho amigo Erastótenes Frazão conseguiram um feito que até 1941 parecia impossível: emplacar uma valsa no carnaval. “Nós queremos uma valsa”, com Galhardo, se tornou um clássico do carnaval. Nássara citou a fonte, mencionando a valsados patinadores na letra e no refrão melódico.  Mais um exemplo de paródia de clássicos é a marcha “O Danúbio Azulou”, óbvia referência à valsa “Danúbio Azul”, de Johann Strauss Jr.. A interpretação de Joel & Gaúcho, Fon Fon e sua orquestra, foi brilhante. Resultado: fez sucesso no carnaval de 1942. E foi assim, de Carnaval em Carnaval, que emplacou sucessos. Isso até o início da década de 60.

Mas, afinal, quem foi Antonio Nássara? Como ele tinha a mania de se subestimar e de fazer ironia com a própria inspiração, o artista tanto fez sucesso como passou pela música popular como uma esfinge. Ele morreu no Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 1996, aos 77 anos, venerado como desenhista e reconhecido como autor de êxitos do Carnaval. É tão fácil perceber o seu traço nas caricaturas como difícil divisar o indivíduo autoral em seus versos para música. Isso porque Nássara tanto foi um caricaturista como um compositor irônico, um Noel do portrait-charge. Não importa o instrumento ou o suporte, o lápis ou a voz. O caricaturista da canção deixou uma marca: a do humor que despe o objeto até o núcleo.


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