sábado, 11 de junho de 2011

Mozart, o gênio da música

À medida que os anos passam, Wolfgang Amadeus Mozart continua a intrigar os estudiosos mais racionais com aquilo que se convencionou chamar de "gênio". Mesmo que essa noção tenha sido refugada, a genialidade do compositor austríaco segue intocável. Ninguém até hoje forneceu uma explicação final para as façanhas daquele que ainda é tido como o supremo mestre da mais secreta das artes. A civilização ingressou no terceiro século de devoção a Amadeus como as gerações passadas: pasma com a leveza e a qualidade abissal de suas peças de câmara, missas, óperas e sinfonias – gêneros em que esbanjou intuição e sabedoria. É preciso descobrir o que faz a obra mozartiana pulsar mais grandiosa do que nunca numa época de niilismo e de autoproclamada morte da arte.

Quem se debruça no assunto é tragado por uma vertigem de fantasias que encontram solo em meias-verdades que se encaixaram à vida do artista. Ela foi tão curta como bem documentada por testemunhos da família e contemporâneos e a correspondência do artista com parentes, amigos e mecenas. O conjunto de textos somado à produção do artista (mais de 650 obras) ergueu um vulto cultural. Isso sem contar a ficção que o explorou como tema literário do gênio injustiçado pela inveja e a fatalidade: novelas de E.T.A. Hoffmann, o drama Mozart e Salieri (1826), de Púchkin, e outros textos que inspirariam o escritor americano Peter Shaffer em Amadeus, peça estreada na Broadway em 1979 e, cinco anos depois, convertida em filme por Hollywood. Que parte da sonata de mistificação executada em torno da posteridade de Mozart em ritmo cada vez mais obstinado é real e aproveitável hoje em dia?

Há um fundo real no magma de fabulas e dados. Sua biografia é uma sucessão de feitos notáveis. A começar pelas do menino-prodígio. Ele nasceu em Salzburgo, às 8 horas da noite, em 27 de janeiro de 1756, filho do músico Leopold Mozart. Aos 4 anos, começou a estudar cravo. O pai anotou: "Entre 9 e 9h30 da noite de 24 de janeiro de 1761, Wolfgangerl tocou pela primeira vez uma peça ao piano, um Scherzo de Wagenseil". Nesse período, escreveu suas primeiras peças para violino e cravo. Leopold decidiu excursionar com o filho pelas cortes européias, para exibir a criança-prodígio. Em Londres, em fevereiro de 1765, suas primeiras sinfonias foram apresentadas. Com 17 anos, já havia se tornado sábio em todos os ramos de sua atividade, aclamado por óperas sérias em centros como Milão e Munique.

Adulto, superou a precocidade e atingiu os níveis mais altos da arte dos sons, sem ser recompensado. Um maestro famoso como Franz Joseph Haydn, jurou a Leopold em 1785 que seu filho era o maior compositor de que ele havia tido notícia. Em contraste com seu engenho, Mozart exibia uma personalidade desregrada e pueril, que colaborou na criação da imagem do "divino Amadeus", símbolo do gênio involuntário. Apaixonava-se com facilidade, iniciou-se sexualmente com uma prima (Bäsle) – do caso restaram cartas repletas de palavrões e escatologias típicas da índole salzburguense –, apaixonou-se pela cantora Aloysia Weber, e, quando esta o desprezou, resolveu se casar com sua irmã mais nova, Constanze, também cantora. Não sabia administrar bens nem cuidar de assuntos pessoais. Loiro, baixinho, irrequieto e sensível, orgulhava-se do talento e do papel que ambicionava exercer na história da arte. Aos 25 anos, brigou com o poderoso arcebispo Hyeronimus Colloredo, senhor de Salzburgo. Não lhe agradava fazer plantão pela manhã na antecâmara do quarto do nobre e servi-lo como um criado. No ano de 1781, a despeito da insistência do pai para que ficasse, mudou-se para Viena. Ali, trabalhou como autônomo. Casou-se em 1782 com Constanze e passou a morar com ela em apartamentos pequenos e escuros, onde não faltava a mesa de bilhar, o único passatempo que praticava. Apesar de ganhar bem, viu a carreira barrada pela inveja de um inimigo poderoso, o compositor Antonio Salieri. Além disso, sua música era considerada difícil pela platéia do tempo. O músico concatenava idéias com rapidez avassaladora, num ritmo que os ouvidos não acompanhavam. Suas composições se apoiavam na forma-sonata, linguagem nova que aplicava o raciocínio lógico ao material sonoro a fim de ampliá-lo – e levou tempo até ser assimilada pelas audiências. Desde a primeira resenha que Mozart obteve, na revista Magazin der Musik, de 1783, os críticos chamavam a atenção para a velocidade das melodias e do contraponto e o atrevimento em certas combinações harmônicas.

Como corolário do mito, ele amargou o fim prematuro em circunstâncias estranhas, que induzem à hipótese do assassinato. De acordo com a viúva, Mozart acreditou até morrer que havia sido envenenado e o envenenador (suspeitava de Salieri) sabia quando morreria. Teria administrado uma poção italiana, acqua toffana, capaz de corroer lentamente os órgãos até o ataque final, em data pré-estipulada. Por esse motivo, imaginava o músico, um fidalgo anônimo teria lhe encomendado uma missa de Réquiem, serviço para o qual pediu uma fortuna. "Estou compondo a missa que vai encomendar meu corpo", disse à mulher. Na verdade, tratava-se do conde Walsegg, que queria celebrar a memória da esposa, fazendo-se passar pelo autor da peça. Mozart caiu de cama quando a particella do Réquiem se encontrava quase concluída.

Os momentos finais são relatados na biografia de Georg Nikolaus Nissen, segundo marido de Constanze, editada em 1828. Ele informa que o músico ficou triste ao saber e que o imperador acabava de lhe conceder o posto de diretor musical da catedral de Santo Estêvão: "Logo agora – ele geralmente se lamentava durante a doença – devo morrer quando poderia viver em paz! Agora deixar minha Arte quando não mais preciso ser um escravo da moda, não mais atrelado aos especuladores, quando poderia seguir os vôos de minha fantasia, quando poderia compor livre e independentemente tudo aquilo que meu coração ditasse! Devo deixar minha família meus pobres filhos, justamente no momento em que estaria em melhor condição de cuidar deles..." Mozart trabalhou na partitura do Réquiem durante os estágios terminais de uma síndrome renal que inchava seu corpo e o por fim o deixou semiparalisado. Mas não parava. Na tarde de 4 de dezembro de 1791, promoveu um ensaio da obra. Amigos cantaram alguns movimentos e ele se incumbiu da parte de contralto. Havia instruído Constanze e um aluno, Franz Süssmayr, para finalizar a música. Morreu às cinco para a uma da madrugada de 5 de dezembro. A tragédia se potencializou quando o cadáver foi enterrado em vala comum no cemitério São Marx, nos arrabaldes, e, em pouco tempo, ninguém mais soube localizá-la. A tese do envenenamento se disseminou, e Salieri virou alvo da maledicência, mesmo que Constanze e amigos de Mozart tenham assegurado que tudo não passara de delírio do doente. Salieri morreria em 1825 num asilo vienense, atormentado pelo espectro de Mozart. Durante a sua agonia, negou ter envenenado o rival. Inútil, pois a distorção triunfou. Tantos elementos melodramáticos só fizeram inflamar a imaginação da geração romântica, da qual Mozart se tornou precursor. Para tanto, algumas de suas idéias precisaram ser varridas para debaixo do tapete, como a declaração nada idealista feita em carta ao pai em 1781: "É meu desejo e minha esperança obter honra, fama e dinheiro".

A canonização póstuma se avolumou pela lenda e sobretudo por causa de um catálogo de composições jamais superado pela variedade, envergadura e quantidade. Não foram igualadas nem por seu seguidor, Ludwig van Beethoven – aluno de Salieri, por sinal. O mito do gênio possuído pela música e vítima do destino resiste porque há razões para crer nele. O fabuloso e o real se misturam, e não há musicólogo que os separe.

O fato é que o fenômeno Mozart e o conceito de gênio são contemporâneos e, hoje, sinônimos. Seus dons serviram como inspiração para especulações sobre mistérios da arte. Embora com origem na Antigüidade, o termo ganhou fundamentação teórica precisamente no fim do século XVIII. Um dos artistas que elaborou uma metafísica do gênio foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Baseou-se em Mozart, que ouviu em Frankfurt quando o menino tinha 5 anos. Em conversas com Eckermann em 1828, Goethe atribuiu o gênio a uma "façanha produtiva" de efeito duradouro. "Todas as obras de Mozart são desse tipo", disse o poeta, e só seriam comparáveis às obras de Rafael na pintura e Fídias na escultura, artistas de outros tempos. Para Goethe, Mozart encarnava o gênio contemporâneo. Desde o início do século XIX, ele jamais saiu de moda.

"Ele é meu modelo mesmo quando toco música de vanguarda", afirma a violinista alemã Anne-Sophie Mutter, uma das maiores executantes das peças do compositor. "Nenhum músico atual escapa de sua influência. É impossível ignorar seu gênio. É um modelo estético e ético porque defendeu na música os valores humanos mais importantes".

Em termos objetivos, Mozart viveu como um cidadão comum, com ideais iluministas e dono de uma competência extraordinária para escrever partituras. Dizia ouvir óperas inteiras na cabeça, antes mesmo de lançar a primeira mancha na pauta. Tudo o que produziu foi resultado da facilidade incalculável, e pode ser submetido à análise estrutural. Mas há componentes em sua obra que teimam em escapar à formulação teórica. Ela chega aos ouvidos do público tanto pela consistência, beleza e equilíbrio internos, como contaminada pelas fábulas e referências místicas que carrega. Tornou-se objeto de um culto que sonha em abalar o ceticismo deste século pela intercessão da música. Mozart ecoa como fantasma-prodígio. E parece correr mais rápido que os ouvidos da História.

Os instantes finais das filmagens de Harry Potter

Os dias derradeiros de Daniel Radcliffe e elenco nos estúdios que abrigaram por 10 anos as filmagens da saga

 

A imagem do adolescente Harry Potter (Daniel Radcliffe) correndo com os amigos Hermione (Emma Thompson) e Rony (Rupert Grint) de uma ameaça bem conhecida está espalhada pelo mundo em todos os cartazes do filme Harry Potter e as relíquias da morte – parte 1. Outros pôsteres mostram o bruxinho com um olhar de medo e a expressão estafada. Harry parece farto de uma aventura que durou dez anos de filmagens – e o público também se prepara para se despedir dele. A imagem-símbolo de uma geração começa a sair de cena. Também já era hora: o simbolismo resultou em um empreendimento lucrativo. O que a varinha de Harry toca se transformou em ouro. Os filmes e o livro já movimentaram mais de 5 bilhões de dólares e deram origem a parques temáticos. Ainda em ação, os personagens de Harry Potter já estão congelados na própria lenda, figuras de cera antes de deixarem as telas.

Será que todos cansamos de Harry Potter? Mesmo em caso positivo, vamos sentir falta da companhia dos personagens. Nos arredores de Londres no final do ano passado, em uma set visita que fiz aos Leavesden Studios – onde a série foi rodada desde o primeiro filme, no ano 2000 -, pude conversar com Daniel Radcliffe, a personificação de Harry, sobre a sensação de despedida. Com os olhos marejados, o jovem ator disse: "Este lugar fez parte da minha vida, aliás eu pensava que aqui era a minha casa, porque comecei a vida aqui. Então será duro e triste para mim dar adeus a tudo isso."

A atmosfera melancólica pervade as tomadas dos dois últimos filmes, produzidos ao mesmo tempo entre 2008 e 20 de agosto de 2010, quando foram feitas as últimas tomadas. A divulgação do penúltimo filme da "saga" de Harry e amigos (não sei por que tudo hoje vira "saga", mesmo que seja um romance ou, como no caso da história de J.K. Rowling, uma aventura de fantasia e horror em sete partes) antecipa o que vemos no cinema: uma fuga desesperada com música insistente e imagens que se sucedem ao modo de um videoclipe, como se o filme inteiro fosse um trailer cheio de efeitos visuais e versões da sensação de pavor. O filme que começou infantil evoluiu para uma aventura adolescente e, por fim, em um thriller de ação que envolve jovens adultos com os hormônios prontos para explodir. O próprio público do filme acompanhou a passagem e as metamorfose dos tempos. As crianças de dez anos atrás hoje entram no mercado de trabalho, como mostramos na reportagem em ÉPOCA: as transformações dos personagens e do público correspondem à dos gêneros da superprodução: de fábula infantil a suspense de terror, passando por policial, a fantasia, o romance adolescente...

De acordo com a trama imaginada pela autora inglesa, a primeira parte do sétimo e último romance da série de J.K. Rowling trata da fuga de Harry de a sanha assassina Lorde Voldemort. O bruxinho do bem, "o Eleito" que irá salvar o mundo da maldade e restaurar a moralidade no mundo dos mágicos, acaba de escapar da escola de magia de Hogwarts. Ele precisa se esconder dos Comensais da Morte, liderados por Voldemort, o bruxo rival de Alvo Dumbledore, mestre de Harry recém assassinado na escola. A primeira parte de HP e as relíquias da morte narra a história de um fugitivo que, ao completar 17 anos, perde a proteção das forças mágicas. Harry é um criatura que remete aos tipos patéticos dos romances vitorianos de Charles Dickens. À maneira do protagonista de David Copperfield (1850) e de Pip, de Grandes Esperanças (1861), criações de Dickens, Harry perdeu os pais muito cedo, foi criado pelos tios e, no entanto, possui uma marca que o levará à glória.

O achado de J.K. Rowling foi acoplar uma aventura dickseniana de superação do órfão a uma história de fantasia e horror ao gosto da belle-époque. Na trajetória da formação e da transformação de Harry, as entidades sobrenaturais se intrometem na vida cotidiana. E assim, feito um Oliver Twist-Parsifal do fim do século XX, o feiticeiro enfrenta a um só tempo as misérias sentimentais da orfandade e os perigos do Mal. Quem for ver o filme pela primeira vez talvez não entenda nada disso e pense tratar-se de uma aventura de ação, porque é preciso estar familiarizado com o destino de Harry para ter a experiência completa do filme. Nesse sentido, a adaptação para as telas se escravizou em parte aos ditames do romance (para mim, o romance é superior ao filme). O diretor David Yates aplicou um combustível extra na poção, encenando sequências quase eróticas entre Harry e Hermione. Os dois chegam a aparecer nuns em uma visão monstruosa, aos olhos do ciumento Rony. O filme tem um quê de outra saga, Crepúsculo. Mas, no geral, é fiel à narrativa original.

Em As relíquias da morte – parte 2, será travada a batalha entre o exército de Dumbledore, capitaneado por Harry, e os Comensais da Morte, de Voldemort. Um epílogo com cara de épico, mas que encobre a verdadeira intenção da escritora: contar a história de formação de um menino que, enfrentando as dificuldades e sundo o narcisismo infantil, conquista a cidadania. Nada mais politicamente correto. Mesmo assim, J.K. Rowling chegou a ser perseguida pela Santa inquisição...

Em julho de 2011, entra em cartaz a derradeira sequência. Mas o filme já está todo feito. Comprados pela Warner Brothers, os Leavesden Studios fecharam as portas depois de 15 anos de produções e vão dar origem ao Museu Harry Potter, um parque temático com turnês pelo verdadeiro mundo em que Harry Potter foi gerado. Quando estive lá, no final de setembro de 2009, a metamorfose já estava se processando. Localizada na vila de Hertfordshire, a 29 quilômetros do centro de Londres, local onde anteriormente a Rolls-Royce instalou sua fábrica de automóveis, a sede dos estúdios conta com prédios e equipamentos distribuídos por uma área de 320 mil metros quadrados. O enorme barracão em que a maior parte do filme foi realizada conta com os cenários originais da superprodução, quase todos desativados quando os vi, cobertos de penumbra: o refeitório de Hogwarts, a sala de conferência, a biblioteca de Dumbledore, o laboratório do professor Snape, repleto de tubos de ensaios e retortas. Emma Watson (Hermione) filmava sobre uma enorme tela verde (green screen), montada na vassoura de bruxa, mantida por uma grua. Emma sorria e se divertia com a repetição da cena, e acenou para os jornalistas, muito animada. É como se estivesse pilotando uma vassoura pelos céus. Logo adiante, a rua de casinhas modestas em que viveu Harry Potter ainda se encontra erguida. O departamento de criação de objetos de cena se localiza ao lado do barracão principal. Ali foram moldados as esculturas em papel mâché dos monstros, da Fênix, da aranha gigantesca, além dos objetos de cena, como as varinhas de condão, as perucas, as roupas e máscaras.


Considero as visitas a locações de filmagens, a convite dos estúdios, a experiência mais interessante para um jornalista que cobre cinema. Minha excursão às filmagens das duas partes de Harry Potter e as relíquias da morte, com um grupo de jornalistas internacionais, não poderia ser mais significativa. Quando entramos no estúdio principal, Emma Watson nos cumprimentou de sua bicicleta. Desde pequena ela se acostumou a se locomover pelo local em uma bicicleta, bem como seus amigos. Apesar do sorriso espontâneo de Emma, a melancolia pairava no ar. Em um determinado estúdio, os restos de uma festa de casamento rodada na noite anterior pareciam o dia seguinte de uma festa real, com toalhas e copos amarfanhados. Fomos convidados a almoçar na cantina. O sujeito que estava à minha frente na fila do bandejão era o ator Alan Rickman, o insidioso professor Severo Snape. Foi engraçado vê-lo se servindo de frango e purê, em meio a risadas e papo descontraído. Depois, tive o privilégio de assistir a uma sequência mil vezes repetida em que Daniel Radcliffe (Harry) beija Bonnie Wright (a Gina, sua grande paixão). Bonnie foi a primeira a vir conversar com os jornalistas. "Tenho planos de continuar a atuar", disse. "Mas ainda não me acostumei com a ideia de que este aqui não é meu mundo!"

Despojado de uma possível máscara de celebridade, Daniel Radcliffe respondeu nossas perguntas com a inteligência que ele mostra desde menino, apesar de muito cansado. Sentou-se em meio à roda de jornalistas, suspirou e não conteve as lágrimas. Ele havia sido informado que a nossa era a última das centenas de visitas que os repórteres fizeram aos estúdios nos últimos dez anos. "Esta é a visita final, não é?", perguntou. "Pois é. Estou sentindo o clima de despedida mais do que ninguém. Muitos dos meus velhos colegas de elenco já não estão por aqui, e estamos nos aproximando das últimas sequências. Não posso deixar de me comover. Estes estúdios fazem parte da minha vida. Eu nem sabia que era ator e que estava trabalhando quando entrei aqui para filmar Harry Potter. Um pouco de todos nós será deixado aqui. Somos todos amigos e tenho certeza de que vamos todos sentir falta desses tempos que já estão indo embora." Daniel cumprimentou todo mundo e, mais controlado, voltou a suas cenas de beijo.

Quando embarcamos no ônibus, contemplei os prédios e a paisagem plana que iam se afastando. Então me veio a seguinte sensação: as ações reais que se desenrolaram por uma década naquele espaço podiam se encerrar, mas o cinema se encarregava de eternizá-las nas telas e nos monitores. Qual é, então, a realidade mais real, a que vemos pelas películas dos filmes ou o trabalho em grupo entre artistas, cineastas, técnicos e operários que abarca uma vida? O que vale mais, o produto ou o processo de sua construção? No caso da turma de Harry Potter, a vida e a arte parecem ter se plasmado para sempre. Só não sei se teria gostado tanto de acompanhar a "saga" se não tivesse conhecido ao elenco e a equipe tão de perto esses anos todos.

Adeus à lâmpada

A invenção de Thomas Edison está condenada a sair do mercado em 2016. Quem vai sentir sua falta?

 

Adoro a luz amarelada das lâmpadas incandescentes. Acostumei-me à serenidade de seus raios suaves e ao seu calor, e me agrada pensar que daqui a alguns minutos vou ler um bom romance antes de dormir ao lado de um abajur dotado de uma lâmpada de 60 watts quase igual à que Thomas Alva Edison lançou no mercado em 21 de outubro de 1879. Nela vibra o esforço do inventor americano em suas várias tentativas até descobrir que um filamento de tungstênio submetido a alta temperatura em um meio rarefeito poderia produzir luz sem se derreter. A lâmpada surgiu como uma espécie de prisão de vidro que guardava o vagalume artificial que ardia por tempo indeterminado. Passaram-se 132 anos desde que foi criada, eu a conheço desde bebê, e ainda hoje a lâmpada me queima os olhos como uma emanação misteriosa. Para mim é fascinante contemplar o filete de luz sustentado em dois polos de estanho dentro de um globo transparente, na ionização que oscila para além da percepção humana. Mas tal brilho de aparência eterna vai se extinguir aos poucos, e por decreto público.

Os governos de quase todos os países do mundo já acordaram que vão eliminar a lâmpada incandescente, porque ela representa um gasto excessivo de energia para os padrões atuais. Uma lâmpada produz apenas 8% de luz. O resto é calor. Por isso, ela está sendo substituída por lâmpadas fluorescentes compactas, dicroicas e de diodo (LED), consideradas mais econômicas, frias e duráveis, embora bem mais caras. A União Europeia iniciou o processo de eliminação da lâmpada em meados de 2009 – e estabeleceu a data-limite para o descarte das últimas lâmpadas de 40 e 60 watts para agosto do ano que vem. No Brasil, o governo estendeu o prazo até 30 de junho de 2016. É um desafio de grandes proporções, já que ainda hoje 80% dos lares brasileiros são iluminados pelas antigas lâmpadas. Duvido que nas zonas rurais elas serão banidas tão cedo.

Será que se eu começar a estocar lâmpadas a partir de agora poderei manter o hábito para daqui cinco anos? Sei que há gente pensando nisso desde já; pessoas que não irão se acostumar a viver sob os raios alvos e trêmulos das luminárias fosforescentes. Sou uma delas. Isso Porque não aguento lâmpadas dicroicas, por exemplo. Elas emitem raios que parecem atravessar as pálpebras e não me deixam dormir. As fluorescentes me causam cegueira temporária. As de LED me ferem as pupilas. Definitivamente não consigo ler com as novas invenções. Não sei o que fazer. Em breve só vai me sobrar o sol e, talvez, a chama bruxuleante de uma vela, candeia ou lampião – que não deixam de ser precursores da luz cerúlea de Edison. Sim, vou sentir falta dela.

Qualquer mudança de tecnologia provoca esse tipo de reação nostálgica (para não dizer retrógrada) que me acomete agora. As grandes cidades ganharam iluminação elétrica nos anos 1880. Foi assim em Nova York e Paris. O Brasil, as primeiras cidades com luz elétrica foram Rio de Janeiro, Campos(RJ) e Juiz de Fora (MG), ainda na década de 1880. Em alguns pontos remotos do Brasil, as redes de iluminação só apareceram no final da década de 10 do século XX. Minha avó me contava da saudade que ela tinha dos lampiões de gás que alegravam a casa de negócios de seu pai, e a estação ferroviária em Carlos Barbosa, no Rio Grande do Sul. Ela me dizia que a luz dos bicos de gás era muito mais brilhante, “os rostos das pessoas ficavam azuladas à noite”, me contou, e quando havia fandango nos salões as cores e os contrastes eram mais berrantes. Havia uma nitidez que em seguida a lâmpada de Edison ofuscou, com a sua fantasmagoria amarela.

Em alguns lugares do mundo, como nos centros históricos de Londres e Berlim, as prefeituras mantêm até hoje a iluminação urbana a gás, para evocar os tempos idos. Já andei por esses lugares. A impressão é de um cenário irreal. Imagino o quão irreal não pareceram as lâmpadas de Edison aos olhos de quem estava acostumado ao bico de gás... Em 1855, José de Alencar escreveu uma crônica para falar de seu espanto quando a luz de óleo de baleia deu lugar aos bicos de gás, e o Rio de Janeiro saía da penumbra, perdendo alguns de seus mistérios.

 

Em muitos recantos paulistanos ainda é possível viver a luz espectral de tungstênio. Aliás, na maior parte da cidade. Suas favelas são iluminadas assim, seus botecos, seus museus, algumas escolas. Aos poucos, tudo sofrerá uma alteração tecnológica: a revolução como revelação de uma extrema claridade que tudo pode desmascarar – inclusive a alma. Em janeiro deste ano, a iluminação da avenida Paulista aumentou em 300% com a substituição das lâmpadas de mercúrio pelas de diodo. Está tudo mais claro e sem nuances de cor na Paulista. Como se a prefeitura acionasse o contraste do aparelho da cidade. E assim o espaço urbano passa a ganhar cenografias inesperadas. Trocará em breve o dia pela noite, como o Times Square de Nova York. É um novo espetáculo que entra em cartaz – e ao qual não desejo, mas serei levado a assistir. Todos seremos obrigados a acender luzes excessivas que queimam nossa pele sem que ela sinta.

Volto à leitura do livro à luz quente da lâmpada de Edison. As pálpebras pesam. Suspiro. Minha vontade é de sorrir e me apagar com ela.

Bim bom, bim mau

As melhores e piores gravações de João Gilberto

 

O gênio excêntrico João Gilberto tem encantado os audiófilos do mundo todo nos últimos 53 anos, desde que lançou, em 1958, o disco de 78 rotações Odeon com as canções “Chega de saudade” (Tom Jobim-Vinicius de Moraes) e “Bim bom”, de sua autoria, produto que veio a se tornar o marco inicial da Bossa Nova. Nos 62 anos de carreira - ele a iniciou em Salvador em 1949, aos 18 anos, quando trocou Juazeiro pela capital baiana, e ali atuou na Rádio Sociedade da Bahia –, foi cantor de rádio, crooner de grupos vocais (de 1950 a 1952, nos Garotos da Lua; de 1953, nos Quitandinha Serenaders de Nilo Ruschel e em 1954 como substituto de Léo Vilar nos Anjos do Inferno), acompanhador ao violão da cantora Elizeth Cardoso em duas faixas do LP Canção do amor demais (selo Festa, 1957), Chega de saudade e Outra vez (Tom Jobim) e, finalmente, revolucionário da canção brasileira. Mas sua grande proeza foi ter criado um estilo de cantar e tocar o samba, com voz sussurrada e violão com acordes de jazz e ponteios sincopados. Um estilo que viria a ser chamado de Bossa Nova pelos jovens que passaram a seguir João Gilberto como se ele fosse um deus. Seu biógrafo, Ruy Castro, afirma que João criou a “batida” da bossa nova no ano de 1955, quando se afastou do público. Foi nesse período, no “exílio” em Porto Alegre e Diamantina, que João teria inventado o novo som. Alguns detratores dizem que ele teria tido um problema de nódulo vocal e, por isso, teria renunciado ao canto impostado de barítono que mostrara nos Quitandinha Serenedars e passado a cantar baixinho. Dois fatos são documentados: aí por 1955, João começou a curtir os LPs do trompetista e cantor (nesta ordem) americano Chet Baker; e, em 1956, de volta ao Rio, frequentou a boate Plaza, onde se apresentava o revolucionário Johnny Alf, que naquele ano de 1956 criava o samba-jazz com a gravação de “Rapaz de bem”, samba moderno que Johnny vinha mostrando na noite carioca desde 1953.

Mesmo os gênios precisam se inspirar naqueles que os precederam. Um dos pecados de João, a meu ver, foi ter ocultado a influência do canto do carioca Mario Reis (1907-1981), cujos 30 anos da morte precisam ser lembrados neste ano. Mario lançou o samba moderno em 1928, três anos antes do nascimento de João, e é claro que João se inspirou nele no início da carreira: o canto suave, a palavra doce, a síncope, a divisão do samba, todas criações de Mario. Foi o canto de Mario que afetou o de Léo Vilar, dos Anjos do Inferno, antecessor de João. Mas João jamais deu crédito a Mario Reis. Talvez João quisesse ocultar a fonte direta. O que me leva a pensar que ele não tenha sentido angústia da influência – e, sim, inveja da influência. O próprio Mario ironizou em 1971: “Nada a ver. Eu é que sou seguidor de João Gilberto!” Minhas faixas joão-gilbertianas favoritas são aquelas em que ele lembra Mario Reis. As gravações que detesto são as que João gravou por gravar – e que nada acrescentam à sua glória. Minha eleição, portanto, é viciada e suspeita. Vamos a ela.

 

Os cinco clássicos:

 

“Bim bom” (João Gilberto) - Disco 78 rpm (Odeon, 1958)

Este transbaião está no Lado B do disco que traz “Chega de Saudade”. A letra é um mantra de dois versos: “É só isso o meu baião/ E não tem mais nada não”. Como se o cantor reduzisse ao grau zero o manifesto “Baião”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, lançado pelo grupo 4 Azes e um Coringa, em 1946. É João Gilberto no auge de sua cintilância e tônus rítmico. É também a prova de que a Bossa Nova começou influenciada pelo mambo cubano.

 

“Samba de uma nota só” (Tom Jobim-Newton Mendonça) – LP O amor, o sorriso e a flor (Odeon, 1960)

No seu segundo LP, o cantor-violonista apresenta a primeira e melhor versão do samba metalinguístico de Tom Jobim em parceria com o boêmio e pianista Newton Mendonça. A música serviu como iniciação às aulas de violão e canto de várias gerações de emepebistas. João se mostra perfeito na emissão, no uso variado dos acordes em clusters ao violão e na ironia. Divisão de samba precisa e minimalista.

 

“O grande amor” (Tom Jobim-Vinicius de Moraes) – LP Getz/Gilberto (Verve, 1964)

Muitas vezes, ao longo de sua carreira, o cantor traiu suas influências. É o caso da gravação do samba lento “O grande amor”. Na verdade, trata-se de uma regravação do sucesso lançado por Mario Reis no LP Mário Reis canta suas criações em hi-fi (Odeon, 1960). A façanha de João no registro com Stan Getz ao sax e Tom Jobim ao piano foi compactar ou condensar os achados do arranjo original de Lindolpho Gaya para o LP de Mario Reis. E imitar Mario Reis com enorme talento. Afinal, João é um seguidor inconfesso do Bacharel do Samba.

 

“Guacyra” (Hekel Tavares-Joracy Camargo) – CD João Gilberto Ao Vivo (EPIC, 1994)

João sopra vida no belo samba lançado em 1933 na Victor pelo cantor e galã Raul Roulien. Influenciado por Mario Reis, Raul Roulien já usava o canto solto, coloquial, o jeito brasileiro de cantar inaugurado por Mario. Mas há uma melancolia típica de Roulien, que João recobra no registro feito no antigo Palace em São Paulo. O som é impuro, a mixagem ruim. Mesmo assim, o talento de João em metamorfosear enquanto recupera clássico é notável.

 

“Desde que o samba é samba” (Caetano Veloso-Gilberto Gil), CD João voz e violão (Universal, 1999)

A homenagem da dupla Caetano e Gil ao gênero surgido no Recôncavo Baiano ganha uma abordagem definitiva na gravação de João Gilberto. Já com voz de baixo-barítono, pois o registro ficou mais grave com a idade, o músico transfigura a canção em um hino quase-religioso à baianidade.

 

 

Os cinco deslizes:

 

“Amar é bom” (Zé Keti-Jorge Abdala) – Disco 78 rpm (Todamérica, 1951)

O jovem crooner do grupo vocal Garotos da Lua se esforça por imitar Lúcio Alves nesta que é a primeira gravação da carreira de João Gilberto. O resultado é patético, pomposo, sem graça. João investe nos glissandos e nos vibratos, tornando a audição hoje quase insuportável. Não por outro motivo, o cantor cortou de seu cânone as participações nos Garotos da Lua.

 

“Besame mucho” (Consuelo Velazquez), LP João Gilberto em Mexico (Orpheon, 1970)

Esta faixa pode ser definida como um triunfo às avessas. Até em seus piores momentos, João Gilberto se destaca. Pois se trata, talvez, da pior gravação entre todas jamais realizadas do bolero da compositora cubana Consuelo Velazquez. O sotaque baiano aplicado ao castelhano empastela qualquer enlevo da parte do ouvinte. E a voz de João se mostra melosa no mais alto grau.

 

“Undiú” (João Gilberto), LP João Gilberto (Polydor, 1973)

Até hoje não entendo por que João cometeu esta canção de uma palavra só, que nada significa, não serviria nem mesmo com “palavra-valise” dos poetas concretos. Ele se limita a cantar “undiú, undiú, undiú”, uma churumela insuportável só piorada pela melodia monocórdica. O cantor deveria cortar essa faixa do disco de 1973, aquele que traz “Avarandado”, de Caetano. Mas João tem razões que só a razão desconhece...

 

“Estate” (Bruno Martino-Bruno Brighetti), LP Amoroso, (Warner Bros, 1977)

Bom, se João é péssimo em espanhol, que dirá em italiano. É um desastre completo, quase chego a ouvir uma desafinação a certa altura da gravação. Eu sempre pulo esta faixa do ótimo LP Amoroso, que traz arranjos e regência do maestro alemão Claus Ogerman. O consolo é que a música italiana do século XX e do Festival de San Remo merece esta anti-homenagem. Seis minutos e trinta segundos de tortura!

 

“Me chama” (Lobão)

A certa altura da desastrosa década de 90 – desastrosa para ele e para a música brasileira -, João resolveu fazer uma homenagem ao que de pior se produziu no BRock dos anos 80. A baladinha de Lobão, que já era sem graça, ficou ainda pior no grunhido grave e rouco de um João Gilberto fora de forma àquela altura. Foram duas as consequências: João nunca incluiu a música em seus discos de carreira, nem o próprio Lobão gosta do que o cantor fez com ela. Com razão.

Uma página expulsa do internato

Raul Pompéia cortou "O Ateneu" pela cabeça. O escritor fluminense fixou o início da versão definitiva de seu romance em um parágrafo mais abaixo, à altura da vigésima terceira linha do projetado texto de abertura. Refugou tudo o que veio antes, o "incipit" do livro, por algum motivo secreto. A decapitação talvez tenha fortalecido a trama: as primeiras linhas retratam o menino Sérgio levado pelo pai à porta de um internato. "Vais encontrar o mundo", diz-lhe o pai. "Coragem para a luta." A situação remete à porta do Inferno de Dante e do Labirinto de Creta; ela antecipa os sofrimentos que o protagonista-narrador viverá no internato, entre eles o despotismo tecnocrático do diretor Aristarco, o comportamento sexualmente ambíguo dos colegas e o incêndio apoteótico reservado ao último capítulo. O romance saiu em colunas verticais (e não no rodapé habitual dos folhetins) na "Gazeta de Notícias" entre 8 de abril e 18 de maio de 1888, com grande sucesso, e, em seguida, em volume, pela tipografia do jornal. As duas primeiras versões mergulharam o autor na placenta da glória. Mas delas e das vindouras foi extirpada uma parcela essencial.

Tudo isso se deixa revelar em uma folha de papel almaço cortada pela metade, escrita face a face, de um só lado, com tinta violeta e lápis. As 22 linhas em questão que fazem parte da folha ficaram trancafiadas por cerca de 40 anos num cofre da Divisão de Manuscritos no terceiro andar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, sem possibilidade de consulta. De acordo com funcionários da seção, somente em 1995 o documento foi liberado ao público. Até então, dividia espaço com canetas e outros objetos de celebridades intestinas da BN e volumes mais ou menos raros, ocultos como objetos para um museu ulterior. Mesmo assim, nenhum estudioso se comoveu com a folha porque ela era guardada com uma cópia de um artigo do crítico Eugênio Gomes, intitulado "Um inédito de Raul Pompéia", publicado em 10 de novembro de 1951 no jornal "Correio da Manhã". O artigo analisa o texto inédito e apresenta uma transcrição preliminar do manuscrito. O fac-símile da folha foi estampado na revista "Poesia Sempre", de outubro de 1895, sem comentários, com fins ornamentais. O artigo e a reprodução tiraram o fragmento do páreo junto aos caçadores de inéditos que alimentam a indústria de teses e dissertações acadêmicas. Além do que Pompéia saiu de moda na universidade, depois de "O Ateneu" ter sido entronizado por Afrânio Coutinho - o último grande especialista em Pompéia, falecido em 2000 - como iniciador do Impressionismo no romance brasileiro e comparado ao livro "Chansons de Maldoror" (1868), de Lautréamont, por Leyla Perrone-Moisés, em "O Ateneu: Retórica e Paixão", de 1988; como era moda na época, a crítica denominou o livro de "antropofágico". Mesmo fora da onda e tendo nada a ver com Oswald de Andrade, "O Ateneu" permanece como base da ficção supra-realista nacional. Traz a sátira ao sistema educacional e ao meio social - o "ouriço invertido", espinhando quem dele toma parte - do Brasil do Segundo Império, um país que o narrador define em termos nada carinhosos: "Charco de 20 províncias, estagnadas na modorra paludosa da mais desgraçada indiferença." Seus 12 capítulos exibem um "tom de pânico", nos termos forjados ainda em 1889 pelo crítico Araripe Júnior, que se expande numa escritura "quebrada" semelhante às imagens de lanterna mágica. Araripe Júnior ensina que Pompéia confeccionou "gnomos verbais" cuja energia de expressão se fundamenta na "impropriedade dos vocábulos". Em 1943, Mário de Andrade denominou a obra de "biografia intelectual". Para José Guilherme Merquior, em "De Anchieta a Euclides", de 1979, ela narra uma paixão e reflete a personalidade "fragmentária e camaleônica" do autor. Em "Prosa de Ficção, de 1870 a 1920", publicado em 1950, Lucia Miguel-Pereira vê no livro o segredo do destino de Pompéia. Para ela, o romance traça o "drama da solidão" de um menino tímido e hipersensível. Pensa que não é romance de tese, apesar de defender uma - a de que os internatos massacram a sexualidade: "Não faz o feitio de Sérgio depender das suas condições físicas e, se apresenta a homossexualidade como quase geral entre rapazes privados de contatos femininos, não a explica em termos biológicos; aliás, não explica nunca coisa alguma."

Não bastasse a megafortuna crítica, o romance recebeu pelo menos duas edições "definitivas", confrontadas com os originais: a de Afrânio Coutinho (Civilização Brasileira, 1981) e a de Therezinha Bartholo (Livraria Francisco Alves, 1976). Esta edição comentada é, apesar das críticas de Coutinho, a mais completa, pois se debruçou sobre os originais de 126 páginas que o autor vendeu à Alves & Cia., juntamente com 43 desenhos a crayon (mais tarde vendidos à BN), por um conto e meio de réis em junho de 1894. Ao examinar as nove edições "oficiais" anteriores, lançadas de 1905 a 1956, Therezinha concluiu que o original emendado pelo autor havia sido desrespeitado. Este já consistia em uma cópia tipográfica. Munido dela, Pompéia fundiu e separou parágrafos, reposicionou os pronomes átonos e corrigiu palavras e nomes próprios. Ao todo, 18 modificações não haviam sido incorporadas à edição canônica. Elas foram restituídas à versão de 1976. A prova supostamente desapareceu em um incêndio da editora, no fim dos anos 70. O esgotamento das leituras, a consolidação do texto e a morte dos principais estudiosos levavam a supor que o tema estava encerrado.

Só que nenhuma das edições de "O Ateneu" menciona o fragmento da Biblioteca Nacional. De fato, ele não tem o condão de alterar o destino e muito menos o arcabouço de "O Ateneu". Sugere, porém, uma nova leitura sobre fatos e motivações estéticas em que a obra foi engendrada - aspecto que Gomes intuiu. Considerou que, "pelo imprevisto da idéia original da narrativa autobiográfica", o trecho era uma revelação a ser canonizada pela crítica. Mas não obteve repercussão e seu texto se converteu em raridade.

Eugênio Gomes (1897-1972) calhou ser o literato certo para a ocasião. Teve acesso ao texto porque foi diretor da Biblioteca Nacional entre 1951 e 1956. No período, o teórico baiano se valeu do cargo para fazer descobertas, que anunciou em brilhantes artigos de jornal. Entre outras façanhas, achou uma carta de Byron e, machadiano que era, o manuscrito da peça "Forcas Caldinas", de Machado de Assis, jamais encenada. No artigo sobre Pompéia, informa que a folha foi doada à BN pelo historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927).

A partir desse ponto, três fatos intrigantes se justapõem. Capistrano foi amigo de Pompéia. Quando este estreou no romance com "Uma Tragédia no Amazonas", editado pela Typogaphia Cosmopolita, em 1880, Capistrano profetizou que Pompéia se devotaria à narrativa esteticista. A incerta altura da década de 1880, Capistrano perdeu um artigo de jornal que o amigo lhe confiara; pode ser até que tenha extraviado e reencontrado a folha com o início de "O Ateneu". O fato gerou fúria e o rompimento com Capistrano. O segundo fato está em Pompéia ter sido diretor da Biblioteca Nacional, tal como Eugênio Gomes. Apoiou a ditadura de Floriano Peixoto e foi convocado a dirigir a instituição. Ocupou o cargo de 21 de junho de 1894 a 30 de setembro de 1895 e foi exonerado no primeiro despacho do novo presidente da República, Prudente de Moraes. A terceira situação é que, atormentado por um artigo injurioso de outro ex-amigo, Luiz Murat, e do adiamento da publicação de um texto seu em "A Notícia", Pompéia se suicidou, aos 32 anos, na tarde do Natal de 1895. Seu bilhete dirigia-se ao jornal para o qual colaborava, aliás gratuitamente: "À 'Notícia' e ao Brasil declaro que sou um homem de honra." Atribuía alta importância aos tipos impressos e a seus escritos. Como se dizia naquele tempo de classificações lombrosianas, tratava-se de um "nevrótico".

Publicado originalmente no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil, a 18 de maio de 2001

A blague do blog

Tornou-se famosa a blague do magnata da mídia Assis Chateaubriand, o Chatô, que costumava ralhar com seus empregados: “Quem quer ter opinião, que compre um jornal!”. Hoje, quem quer ter opinião só precisa “postar” num blog na internet.

“Blog” é a corruptela de “weblog”, diário da Web, termo inventado em dezembro de 1997 pelo nerd e teórico americano Jorn Barger. Ninguém tem de saber linguagem ASP, PHP ou a já anciã HTML para publicar num blog; ele não passa de um site simplificado, organizado em ordem cronológica, com recursos básicos dos sites, como possibilidade de dar upload (carregar) de imagens e links. A ferramenta, grátis, revela-se tão fácil quanto um programa de e-mail sediado na web. Tecnicamente, o blog, instrumento público, transforma qualquer usuário da Internet em emissor de idéias, em “blogueiro”, como se diz no jargão internético local, ou “blogger”, na expressão consagrada em inglês. Há dezenas de sites que fornecem gratuitamente espaço para blogs.

É fácil deduzir as conseqüências da facilidade: proliferam blogs como baratas Internet adentro, alguns deles com cérebro de insetos. Outros atuam feito bombas de dissuasão/persuasão. É preciso compreender se o fenômeno é modismo ou representa a sonhada democratização dos meios de comunicação.

A blague do blog é que, a despeito de seu amadorismo fragmentário, ele está balançando as estruturas da imprensa. De um salto, os blogs grudaram as ventosas na jugular do “quarto poder”, sugando seu sangue e sujando seu nome. Isso porque o assunto favorito dos blogueiros tem sido a mídia. Blogs são “fantasy shows” contra a imprensa. A exemplo do Napster, que livrou a música do CD e quebrou o show business, os blogs provocam a metástase das palavras e podem levar a mídia à bancarrota. Jamais a espetacularização da informação foi tão anarquizada quanto com o advento do blog. A curiosidade do internauta não resiste. A blogagem triunfa porque chamou a atenção da imprensa – ela própria feitora de blogs às ocultas em redações.

E pensar que os blogs começaram como esconderijo de adolescentes onanistas nos idos de 1994... Na época, a Netscape lançou o primeiro navegador com interface gráfica. As homepages ganharam relevo, principalmente com o site Geocities, que oferecia (e ainda oferece) hospedagem gratuita de sites. Naquele tempo não se falava em “portal” nem em blogs. Milhões desenvolveram páginas pessoais. Mas elas exigiam do usuário algum conhecimento de linguagem HTML, o que significava “pegar o touro com a unha” e montar vírgula com rotinas e códigos. Logo os pré-blogueiros caíram do touro bravo e até hoje sites-zumbis, com sintaxe arcaica, erram clamando por um log-off de misericórdia. Em 1997, nerds simplificaram o processo, oferecendo modelos pré-fabricados, os blogs. O site Infosift foi o primeiro a compilar weblogs como categoria à parte. Em 1999, apareceram ferramentas que melhoraram a operação. Resultado, a comunidade blogueira sofreu um pop-up em escala malthusiana.

Onã foi o deus fundador da genealogia blog. Diários íntimos deram a largada. Avatares de cartoons comentavam clipes no anos pré-MP3. As mulheres encontraram na ferramenta o meio ideal de ampliação de suas febres eróticas. Na extrema-unção da década de 90, era fácil topar com precursoras do livro A Vida Sexual de Catherine M. – que não passa de um blog às antigas em papel. Os aliases, como são chamados os pseudônimos na Web, viraram procedimento comum. Os blogs se expandiram para todos os fins e línguas: diários íntimos, receituários, blogs de escárnio e maldizer, de amigo, de comentários sobre blogs, blogs de blogs de blogs. Ao sol do caos, a árvore cresceu frondosamente.

Dados do site de busca Blogdex, do MIT, da conta de mais de 500 mil blogs no ar no mundo. Três anos atrás, segundo a mesma fonte, havia 23 weblogs. O site BlogTree escrutina as árvores genealógicas de blogs. Ostenta hidras com milhões de cabeças que engendram outras tantas.

O fato atual peculiar reside no deslocamento da expressão subjetiva para o plano da circulação pública de informação. A opinião, esta quimera, foi promovida à carta magna da nebulosa blog. A intimidade escancarada do diário dá lugar ao questionamento da mídia, à agonística – a luta pela leitura crítica – no mundo impalpável da Rede. Onã anseia em ser Aeropagita, polemista de grandes causas, e debater-se no areópago gigantesco da infovia.

É lícito remeter a discussão à Aeropagítica, de John Milton, discurso que o poeta proferiu em 1644 no parlamento britânico pela liberdade de imprensa. Cria Milton que o saber é um processo dinâmico, construído com opiniões e deslizes que alumiam o progresso: “Onde é grande o desejo de aprender, é também grande a necessidade de discutir, de escrever, de ter opinião. Porque a opinião, entre homens de valor, é conhecimento em formação”.

O opínio-onanismo da cultura blog ganhou impulso na razão direta das megafusões das empresas de comunicação, na virada deste século. Quanto mais fortes e automáticas as corporações, mais bagunçada soa a ala blog. AOL-Time Warner contra o gonzo – imprensa de gozação surgida nos anos 70 nos EUA. O fundador do gonzo journalism, o americano Hunter S. Thompson, cunhou um aforismo sobre sua atividade e que serve como profecia: “Quando as coisas ficam bizarras, os bizarros viram profissionais”.

Adentrar a selva selvaggia dos blogs pode ser uma expedição desgastante, mas hilária. Há uma profusão de brasileiros blogados 24 horas, morando na rede, transmitindo notícias e boatos, exaltando o palavrão e a gíria. Embaralham expressão, opinião e diálogo. Blogs perigam degenerar em monólogos lunáticos. Reclama-se da ausência de ética de alguns. Mas talvez o que mais lhes falte é talento. Há os que se ocultam em aliases, como as garotas ousadas dos anos 90, para destilar verrinas. Protegem-se no anonimato, causando distorções, pois há os que usam a máscara para enxovalhar a vizinhança. São centenas de blogs intrusivos dedicados a tal fim – e os mais visitados. Existe, porém, uma maioria de blogs responsáveis. Jornalistas blogaram porque viram sua seara sofrer concorrência nerd, para não falar da crise na profissão. Pena que usem blogs como sites tradicionais.

Os bloggers desejam ser vistos como heróis da contracultura deste início de século. O medo deles é de que ocorra uma invasão da civilização off-line. Esforçam-se para se manter na idade adâmica do vale-tudo e separar blogueiro de jornalista. Se o nome é o patrimônio do jornalista, o alias é o do blogueiro.

Até agora, a Rede passou incólume às garras da lei. Blogueiros não temem a dura lex... Talvez lhes falte senso de responsabilidade. Mas os conteúdos mudam e blogs se profissionalizam. O resultado é que os bizarros teimam em ser ainda mais absconsos.

No pólo oposto, Globo e iG lançaram serviços de blog, seguindo a mídia internacional, que percebeu o perigo da agitação da opinião pública causado pelos blogs e está tratando de domesticá-los e anexá-los. É o caso do jornal inglês The Guardian, cujo blog, mantido pelos jornalistas do veículo, é melhor do que o site. A rede MSNBC também tem o seu, apresentado por seus melhores âncoras.

A internet jogou de tal forma os meios de informação na vala comum, que é impossível vigiar conteúdos. Blogs são filhos do descontrole. Os megagrupos querem tragá-los para reorganizar sua essência. Hoje, como no tempo de Chatô, os meios de comunicação são instrumentos de domínio da opinião. A dos articulistas pode não representar a do dono, mas é chancelada por ele. Traz um imprimatur em marca d’água. Qual a diferença entre um blog attachado a uma gigacorporação e os portais que elas sustentam? Nenhuma, salvo a rapidez da operação. Os blogueiros têm furado os portais noticiosos; é urgente manietá-los.

Ainda que se avizinhe uma batalha entre a razão off-line e a fantasia internética, blogs continuam sendo ferramentas que proporcionam a sensação da liberdade de expressão, infensos à censura do imprimatur. Muitos blogs fazem a apologia da opinião leviana, mas abrem uma válvula de escape necessária em um universo tecnológico, autômato e irrespirável. Os fatos resultam cada vez mais bizarros e a realidade perde o pé no universo virtual. Ao preço de não abdicar do sacramento do livre pensar, todos nós, profissionais ou não, talvez tenhamos de nos converter em gonzos. E nos aturarmos uns aos outros.

Originalmente publicado na revista Bravo! de setembro de 2002.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Quem vê carro quer ver coração

Não posso reclamar de solidão porque vivo cercado de gente. Por isso, para mim os momentos em que passo sozinho não são nada dolorosos. Ao contrário, servem para refletir, ouvir as músicas que amo, fazer planos para os próximos minutos e mesmo pensar em abstrato, sem um alvo fixo. Mas hoje a solidão dos outros me contagia. Estou só no carro, indo ao trabalho. Ouço um triste quinteto com piano e cordas e olho para frente com lágrimas impostas pelo compositor nos olhos. Vejo apenas as traseiras dos carros que nervosamente passam à minha frente.

Sou devagar no carro, não acelero muito talvez para não sentir o tempo passar. Os outros são diferentes, e não formam exatamente o paraíso que inventei em alguma história. É isto: ao dirigir o carro, escrevo mentalmente histórias, que podem ser chamadas de crônicas porque no Brasil poema em prosa é crônica. Sim, estou distraído no meio do trânsito, os outros buzinam e sou puxado por todos os lados, tenho de acelerar e parar quando me forçam a isso. O clima está meio frio, as janelas de todos os veículos estão fechadas. É um hábito recente, derivado do excesso de violência e assédio nas esquinas.

Lembro que não havia solidão no trânsito quando todo mundo andava de janela aberta, batia papo com o motorista do carro do lado, ou mesmo o insultava com ímpeto. Eu gostava de observar a madame nervosa que esnobava os outros de seu carrão alto; o mocinho que, ao volante, enchia o peito se fingindo de adulto; o profissional paramentado para ir, todo ereto no banco, ao trabalho; o mano dançando com som alto; a mãe que transportava um enxame de filhos barulhentos, mais o cachorro tomador de vento; o folclórico velho de chapéu que rareia, até porque chapéu voltou à cabeça dos jovens... Essa divertida fauna sobre jaulas motorizadas sumiu para dentro dos veículos superprotegidos, que mais parecem incubadoras ou foguetes. Hoje, as pessoas se esconderam por trás do insufilm – já quase não é possível observar o quem está dentro dos carros.

Talvez para compensar o isolamento, começaram a surgir adesivos nas traseiras dos carros. São adesivos de identidade, de todos os tipos e feitios. Eles pretendem obviamente revelar as personalidades, os gostos e até os origens do motorista e dos passageiros. Os carros agora querem dizer coisas específicas, enviar mensagens determinadas para quem está fora e em volta. Os bairristas exibem orgulhosamente as bandeiras de seus estados, só mesmo conhecida e compartilhada por seus concidadãos. Descubro hordas de gaúchos pela cidade, já que muitos fazem questão de usar a bandeira verde, vermelha e amarela do estado, que eu conheço por ser de lá (confesso: eu próprio já usei a bandeira farroupilha no meu carro, para assim ser reconhecidos pelos conterrâneos, e só por eles). As gentes manifestam sua fé, ao grudar no carro símbolos religiosos: cruzes, peixes (sabe-se que é um carro evangélico), estrelas de Davi, terços de imagens da Virgem Maria. Curiosamente, para falar na religião mais forte do pais, poucos ousam exibir símbolos de times de futebol, por medo de depredação da torcida rival. Médicos e advogados trazem suas respectivas credenciais simbólicas em suas respectivas traseiras. Parecem dizer: “olha o respeito, você aí!). Há aqueles motoristas que, ao contrário, espantam o medo ao querer infundir pavor, e se jactam de pertencer a algum clube secreto ou a uma tribo temível. Esses ostentam um símbolo como uma carranca amedrontadora. Como não temer a caveira do metaleiro, o distintivo de algum tribunal de alçada ou o esquadro e o compasso de um maçom veloz e intrépido?

Em tempos recuados, havia a filosofia dos parachoques de caminhão. Os caminhoneiros eram os maiores solitários do Brasil. Viviam longe de namoradas e da família. Só lhes sobrava um pouco de humor para compartilhar com quem os ultrapassava. Quantos aforismos maravilhosos não li em alta velocidade: “De pensar, morreu um burro, e, aposto que ainda não entendeu!” “Estrada reta é igual à mulher sem cintura, só dá sono.” “Divórcio é igual engenho, só devolve o bagaço.” “Há males que vem para pior.” “Se a prática conflita com a teoria, muda-se a teoria!” “Do frio do sul ao calor do norte, montado na morte, à procura da sorte” “Se a vida é um buraco, esta rua é cheia de vida”. Essas frases geniais dos caminhoneiro – que valem uma crônica à parte - estão desaparecendo das estradas, talvez porque tenham arranjado companhia fixa, talvez porque instalaram DVD-player na boleia, ou porque a nova ortografia aboliu a palavra “para-choque” e a substitui por uma feiosa “parachoque”. Com isso, os motoristas de caminhão estão perdendo o traço que os distinguia dos outros. Hoje a maioria usa o símbolo banal da companhia de seguros ou então os dizeres colados pelo dono da empresa de transporte com uma pergunta específica: “Como estou dirigindo? Ligue para...” Não existe mais metafísica nem mesmo no seu último baluarte: as carrocerias dos caminhões.

De um tempo para cá, noto que os carros e até os caminhões andam exibindo bonequinhos que representam um grupo de pessoas. São figurinhas simples, quase desprovidas de senso artístico que começaram a povoar todo tipo de veículo. Elas não estão ali apenas para fins de decoração, como anos atrás acontecia com Bart Simpson, Pink e o Cérebro e outros personagens de desenho animado. Não: as novas imagens têm um sentido específico, elas representam quem está dentro do carro, ou melhor, quem o ocupa habitualmente: a conjuntos com pai, mulher e filhos; outros já trazem o gato e o cão; há os que incluem até a sogra no alegre grupo de passageiros. A moda pegou. Trata-se de uma nova forma de afetividade. É também uma forma de informar que dentro do carro tem gente, tem muita gente. E também de parecer inofensivo aos outros motoristas. Alguns especialista chegam a dizer que as “familinhas” põem os passageiros em perigo, pois assim os bandidos podem detectar facilmente quem está dentro do veículo que pretendem assaltar. É um pouco de paranoia desses experts.

Não vejo perigo nem desdouro nos adesivos de identidade. Eles são veículos de proteção e de aproximação, formas de expressão de credo, origem, profissão e vínculo. Nada mais. Aqui do meu carro lento, suponho que o problema não seja o que desejam dizer, mas o que evitam dizer: as figurinhas passaram a servir como substitutos das relações humanas reais. Funcionam como uma anestesia à solidão que, apesar de toda a nova iconografia, insiste em existir. Quem vê carro quer ver coração. Mas acaba por enxergar o vazio que quer se ocultar sob a aparência de algum sentido.